AUTOR: IVO MARTINS
EDIÇÃO: Revista Cuadernos de Jazz #79 DATA: Novembro de 2003
I
Quando nos aproximamos de um objecto sonoro, temos uma reacção alargada de todas as nossas capacidades
cognitivas; agimos sobre ele ainda a refazermo-nos de inúmeras tentativas de identificação, comparação,
assimilação, percepção, intuição - começamos a chamar a este acto um processo de conhecimento, definido pela
detecção de um limiar mínimo que nos situa entre os conceitos que temos sobre a música e o ruído. Paramos,
tantas vezes, nessa imensa fronteira localizada entre estes dois pequenos pontos sensíveis, a qual foi sendo
modificada, alterada, deslocada e avaliada através dos tempos e dos espaços da nossa vivência.
Os músicos são os verdadeiros obreiros dos instrumentos, situação que ainda acontece em várias partes do
mundo. Todo o instrumento musical e a sua prática de elaborar ou juntar sons, actuam como um meio decisivo
para o desenvolvimento das ideias criativas. Estes elementos tiveram e continuam a ter um papel essencial de
mudança onde, agora, todas as experiências acumuladas através de uma história intensa e estruturada na
exploração e extensão das suas possibilidades técnicas, passou a abranger também locais exteriores à forma
tradicional de utilização, ultrapassando em muito todas as finalidades iniciais. O contexto formado por estas
situações determinou muitas das mudanças que aconteceram e que mais tarde vieram a reflectir-se nas
abordagens levadas a efeito sobre a música e sobre alguns dos elementos que a constituem. Assim se reconhecem
várias fases de evolução técnica na construção dos instrumentos que foram, de certa forma, uma procura de
aperfeiçoamento, na tentativa de captar sons da natureza e do meio ambiente em redor, traduzida na
modificação dos processos de extracção de sonoridades. Neste sentido, a expressão musical foi ampliada com a
utilização de métodos que pressupõem outro tipo de tecnologia e parafernália nada conotados com instrumentos
musicais.
As mudanças verificaram-se na sequência de operações ordenadoras da compreensão, ao exprimirem, em
simultâneo, uma capacidade de reconhecimento que obriga cada um dos intervenientes - músicos e audiência - a
apresentar, face às inúmeras exigências pessoais que acompanham os actos de ouvir música, conhecimentos dos
mais diversos tipos, deixando perceber dificuldades de análise em relação ao que se escuta e a todas as suas
implicações estéticas; processos que contêm importantes informações sobre as atitudes e os procedimentos dos
músicos no acto criativo. Essencialmente pretende-se descobrir uma forma de, por meio da prática, se dar uma
satisfação pela descoberta, procurando o ponto de equilíbrio entre os nossos interesses individuais e colectivos
perante a música. Esta satisfação de cunho pessoal, pressupõe uma nova ultrapassagem, outro tipo de vontade de
experimentar, avanço para uma evidência que, de forma subjectiva, começa a aparecer de dentro de nós. Vamos
tentando responder aos seus apelos mais imediatos - em primeiro lugar, às necessidades de prazer, o que
acontece sempre de uma maneira diferente da que se tinha inicialmente pensado; em segundo, ao cumprimento
da função estética da obra de arte. Algumas pessoas não procuram ir mais além, não pesquisam para lá dos seus
próprios limites, abdicando da tarefa de sair do casulo estabelecido pela ideia de satisfação atrás referida,
situação que configura uma atitude de insuperável passividade receptora. Outras, fazem precisamente o
contrário, e é neste último caso que estão contidos todos os ingredientes de compreensão orientados para a
descoberta - a procura de uma simplificação redentora das sonoridades, como se estas fossem a nossa invenção
individual. Deste modo passamos também a ser criadores, embora do lado de fora do objecto artístico, fazendo a
partir desta assimilação multidisciplinar, vários encontros comparativos entre o nosso saber, a obra musical e
cada um dos momentos essenciais sobre a ideia de finalidade estética.
Estamos sempre a recomeçar, de uma forma inconsciente, esta busca ansiosa de novas fontes sonoras e a
encontrar várias fórmulas musicais que desafiam ostensivamente o acto avulso da sua rotulagem. Os novos
sentimentos de descoberta encerram autênticos momentos festivos de prazer, surpresa e todas as formas
simplificadoras de definições nos surgem como actos falhados de uma validação inconsequente. A música nunca
poderá ser hostil a ninguém e deverá transformar-se num mecanismo de estimulação individual ou colectiva,
opondo-se a quaisquer subordinações, rejeitando esquemas de hierarquização e valorização antecipadamente
estabelecidos. Ao ser destronado este império de regras, que mais não significam do que um desdobramento na
obediência a uma ordem causadora de uma manifestação tangível sobre a perda do nosso espaço individual de
sentir, concretiza-se o sonho de se achar uma superfície livre para cada um de nós, fazendo dessa nova liberdade
um processo interior de aperfeiçoamento para o uso comum e colectivo da obra de arte. Este tipo de objectivos
defende a necessidade de se concretizar, através da experiência, um modelo aberto de reflexão sobre a música,
sem recorrer a fórmulas fechadas, históricas ou enciclopédicas. O desenvolvimento deste ponto de vista pode ser
um dos programas de actuação mais interessantes a explorar numa actualidade emergente, totalmente
deficitária em referências éticas e estéticas.
Se conseguirmos ser receptivos aos apelos sobre o lado do desconcerto na abordagem musical, satisfazemos as
necessidades de diversão e folia, e encontramos uma liberdade singular e única. Assim, talvez consigamos
estabelecer connosco, e depois com os outros, um equilíbrio reflectido com prazer, na concretização do lado mais
profundo do nosso apetite melódico, estético, social, afectivo e sensível. Quando ficamos sozinhos, totalmente
expostos a um conjunto de sensações que vão permanecendo incrustadas nas músicas que ouvimos, podemos ser
capazes de as fruir, como uma habilidade de assimilação pessoal, acumulando experiências de aprofundamento
intuitivo e melhorando o nosso desempenho analítico sobre o acto criativo. Tudo será repercutido, em toda a sua
extensão, na capacidade de nos maravilharmos perante a obra e atingirmos momentos de percepção onde as
ideias passam a acontecer da forma como realmente as tínhamos pensado.
II
Não sei se foi por mero acaso, mas numa destas tardes pensei sobre uma obra que me deixou um rasto de
memória desde a sua primeira audição. Tinha à minha frente um disco de Lester Bowie, editado em 1981 para a
ECM, com o título The Great Pretender - onde tudo se passa como se o movimento do mundo fosse a realização
serena, no plano inconsciente, daquilo que fizemos dele. Esta obra vive à volta de uma velha canção a renascer
permanentemente das cinzas, numa “utopia cinética involuntária”. Ao sermos capazes de desenvolver um
trabalho de sentir e participar nesse espantoso acto de abandalhamento musical, ajustando-o à nossa medida
numa atitude de elegância cínica, passamos a assumir que toda a arte, como processo reconstrutivo, contém a
partir desse momento, e a par com a obra, a nossa pequena história. Compreendemos Lester Bowie como um
músico que foi capaz de discorrer sobre o seu mundo interior, e no seu seguimento falar sobre tudo o que está à
nossa volta. Ao ouvirmos este disco, participamos numa manifestação de indolência festiva, que se encontra em
todos os espíritos verdadeiramente cínicos, fornecendo-lhes uma descarga sentimental - a sabedoria necessária a
uma sobrevivência mínima, numa sociedade radicalmente abalada pelo medo do medo, ou o equivalente a dizer
que tudo tende para o erro, a catástrofe aparece como a única formulação plausível capaz de o representar. Não é
por acaso de um qualquer sortilégio, mais ou menos estilístico, que este trompetista entrava em palco de bata
branca, reduzindo-nos a uma atmosfera de encarceramento hospitalar. Somos parte de uma doença colectiva e
planetária, num mundo eminentemente em colapso, a fornecer-nos indícios úteis sobre a inevitabilidade de uma
nova cirurgia plástica na música e na realidade. Tudo está a manifestar-se em rápida e agitada movimentação
laboral e artística. As pessoas foram transformadas em elementos activos de consumo desavergonhado e
perverso, como obedientes instrumentos de produção. A música denúncia que estamos aqui, numa atmosfera
onde reina um ambiente cortante, de grande teor sarcástico e romanesco, ficando esclarecido o papel do cómico e
do irónico como a única forma de tornar minimamente suportável, tudo o que nos vai acontecendo. Pouco tempo
depois da gravação deste trabalho, era pomposamente anunciado o aparecimento de mais uma super estrela do
jazz e do trompete, que haveria de causar uma agravada série de paixões e desavenças. Apresentado como
candidato ao lugar vazio dos grandes músicos de outras eras, foi apoiado pela mesma máquina que empurra o
nosso mundo para um modelo em que o lucro é o derradeiro valor humano a ter em consideração. Estava lançada
mais uma polémica estéril e demencial, através da qual se passaram a alimentar pequenas vaidades. A disposição
das várias questões que tomam parte nesta insuportável querela movida pelo optimismo e agressividade sem
sentido, situam-se no terreno irreflectido da manipulação dividida em duas massas informes de gente: De um
lado que seguem aquilo a que se pode chamar de “jazz tradicional” (eu próprio não sei bem o que isso é, mas
talvez...), como um género dentro da música improvisada, cheio de estereótipos de circunstância, negritude,
swing, tonalidade e estilo, aderindo a um modelo que não exibe sobre estes elementos essenciais de identificação,
a mais pequena dúvida. Do outro, os que mantêm a atitude de pôr em causa tudo o que está em volta, num
exercício aberto de compreensão. Os confrontos entre estes dois tipos de comportamentos aparecem repartidos
em várias situações dificilmente identificáveis, uma vez que muitos destes actos são formas misturadas de ambos.
O que agitou o nosso pequeno mundo do jazz, e que ainda hoje permanece plena de actividade discursiva, foi
precisamente esta luta, que nos surge como a única coisa verdadeiramente interessante a analisar entre o tédio e
o bocejo de um imenso quotidiano apático, mais acomodado do que vivido, e no qual sobreviveu a música nos
últimos 30 anos.
Falar do hiper-fenómeno Winton Marsalis é como descrever uma coisa que nos avisa sobre a adulteração de
linguagens, ainda que esta não signifique mais do que uma réplica sobre um imenso fenómeno de globalização e
persuasão neo-liberal, actualmente aplicada em todos os continentes, persistindo como a última solução
salvadora das crises do nosso tempo. Não tenho grande simpatia por esta personagem que, tal como tantos
outros músicos, foi transformado numa objecto musicalmente comercial. Quando estava distraído a reflectir
sobre estas ideias agradavelmente especulativas, lembrei-me de Miles Davis a abominar este jovem e talentoso
músico. No jazz existiram desde sempre pessoas que se prestaram a encarnar o lado mais conservador,
reaccionário e retrógrado da sociedade americana, - grupos de pressão que representam os interesses agora
organizados para considerar negros e árabes um alvo particularmente visado por não terem defesa - sempre
desejosas e ávidas de encontrar mais um messias redentor para a sua galeria de ídolos. Alguém que confirme, de
uma forma superior, a sua crença e transforme o jazz numa doutrina para acreditar e seguir fanaticamente a
vida inteira. A busca incessante de um herói, é aquilo que mais tem impossibilitado a concretização das tarefas
de compreensão sobre as mudanças e de tudo aquilo que vai desaparecer nos próximos anos. Este tipo de
abordagem messiânica envolve um número considerável de indivíduos, que ao se tornarem procuradores
encartados de uma música esotérica e delirante, revelam compulsivamente uma falta de referências sobre a
cultura e a arte, com todos os seus problemas de concretização artística. A ignorância tolhe-as, impedindo a
promoção dum modelo de análise generoso, humilde e lúcido sobre o mundo; a sua expressão actua numa
prática propiciadora de bons juízos, desencorajando o aparecimento de quaisquer avaliações críticas
tendenciosas, destemperadas ou egoístas.
Ao deixarmos de lado a exploração de razões validamente construtivas, as ideias passam a assentar no
desenvolvimento de desejos vazios de conteúdo, como na antiquíssima e célebre aspiração sebastianista sobre
aquele que há-de vir. Os movimentos provocados por este tipo de visões retro indiciam-nos que já não somos
empreendedores de coisa alguma, remetendo-nos à categoria de espíritos acríticos. A ausência de motivações e
ferramentas para reflectir sobre aquilo que nos está a acontecer, inibe-nos a capacidade de denunciar a
sociedade norte-americana onde, segundo Chomsky, «os alvos da guerra são antes de tudo os negros». Em Nova
Iorque 40% das crianças vivem abaixo do limiar de pobreza, sem qualquer esperança de virem a escapar à
miséria e à indigência, mas talvez isto não nos diga nada. As pessoas discorrem sobre o mundo de uma forma
egocêntrica, resumindo a vida à dimensão do seu umbigo. Gostam de empreender as suas actividades de uma
forma pacata e primária, adoram as suas vidinhas. Estão como que auto-dispensadas de arregimentar ideias
próprias e não sentem necessidade de ter em consideração este tipo de realidades, fazendo prevalecer as suas
opiniões escritas sobre tudo o que escutam. Esta forma de viver reflecte uma estranha maneira de respirar o
quotidiano, situação verdadeiramente notável e paradigmática relativamente ao que se passa no presente -
demissão e abstenção cívica, actividade de bastidores e política a mais.
A música passou a ser um movimento de intervenção onde os sons devem surgir como denúncias e alertas na crise
da realidade presente. Não basta saber ou querer fazer música para se tocar um instrumento. As características
específicas dos instrumentos ajudam a construir sonoridades, mas não é suficiente que os resultados alcançados
tenham acontecido de uma forma calma e natural, para sermos capazes de entender que vivemos um tempo
difícil.
Neste contexto chega ao nosso planeta imaginário um novo pretendente: Dave Douglas, para muitos apenas mais
um trompetista. O seu trabalho deixava pressagiar grandes vontades de voar acima de todas as genealogias desta
suprema arte, deixando no ar algumas desconfianças. A estrutura de comercialização do jazz esteve sempre
localizada na zona mais brilhante do sucesso e dos grandes consensos; um espaço de comodidades e abastança,
exibindo reclames neon blues, a tremeluzirem constantemente - quem não é por nós é contra nós. Continua a ser
necessário saber destas e de todas as artes de sobrevivência num comércio dito concorrencial e livre, que não é
mais do que um apurado esquema de organização económica e propaganda neo-liberal.
«O clima de desespero, ansiedade, revolta e medo que prevalece no mundo, fora dos limites dos sectores
privilegiados que prosperam e da ”irmandade dos vendidos” que vai cantando hinos à nossa grandiosidade, traço
comum muito marcante desta “cultura contemporânea” supondo que se consegue usar esta expressão sem se
corar de vergonha». Algum do jazz actual, quando confrontado com a simplicidade das palavras de Chomsky,
deixa a pairar sobre nós um terrível sentimento de perda.
Ainda que só passageiramente, o que vai aparecendo faz desacreditar da possibilidade de ser evitada uma grande
desgraça e a presente cena mundial indica que tudo tende vertiginosamente para a mediocridade. Parece não
haver interesse em reflectir sobre a música quando estamos cercados de violações de todo o tipo de direitos. A
realização da justiça que associamos ao trabalho/vitória de um artista, deveria ser uma homenagem ao acto
criador e não uma apologia ao modelo self made man, desenvolvido num arquétipo do homem de sucesso, que o
jornalismo e as revistas de conteúdo mole teimam em apresentar e cultivar servilmente. Todo o acto criativo deve
traduzir um confronto com a inevitabilidade de se ser neste mundo, e se conseguir fazer bem feito sem cedências.
Em cada obra existe sempre uma nova oportunidade de se construir alguma coisa singular - uma porta para um
mundo novo.
Andava por aqui há já algum tempo. Nunca cheguei a descortinar porque é que o homem teimava em não ser
aceite pela imensa maioria dos que dizem sentir o jazz. Pressenti que tinha de cair em desgraça; todos caímos.
Não se pode ser alguém num meio culturalmente pobre e débil, em que o valor do músico ainda se mede pelo seu
desempenho manual. Agradam ou desagradam até pela forma como são bons ou maus relações públicas. Uma
falta de simpatia é suficiente para que se passe a ser considerado subjectivamente mau. O artista é visto como um
trabalhador, portador de uma técnica que lhe foi historicamente atribuída e tradicionalmente mandatada pela
sensata sociedade dos homens que o sustentam. A arte passa a ser uma espécie de espaço organizador de ideias,
seguindo um modelo de criação que lhe está fixado desde a renascença. O músico faz parte integrante de uma
corporação que o certifica, adquirindo uma espécie de direito de pertença a um estatuto de artista que lhe é
entregue por todos, desde os tempos imemoriais. Nem as liberdades de espírito de Cage, Xenakis, Reich, Monk,
Ornette, Parker, Coltrane e Miles, conseguiram demover muitos destes pensamentos. Assim devemos promover a
existência de condições para que ao músico sejam dadas todas as possibilidades de fazer a sua música. O
incumprimento dos cânones que são definidos ao longo da história não deve constituir um impedimento à sua
realização.
Quando incentivamos o aparecimento de contextos reactivos sobre o conteúdo normativo e clássico de todas as
regras, podemos aspirar à realização do acto criativo como uma parte integrante do trajecto artístico e validar
todas as escolhas pela via da negação. Ao pintor deve ser dado o espaço de pintar, utilizando as cores de todo o
espectro natural, ou simplesmente não pintar. Ao escritor deverá ser dada a possibilidade de escrever segundo as
regras gramaticais, numa escrita cheia de significado ou negar essa herança. Quando se pode levar a efeito este
tipo de escolhas, confirma-se que não devemos limitar estas estruturas de actuação criativa a um lugar único,
onde impere uma visão solitária, elementar e ordenadora de tudo o que está à sua volta. Devemos lutar pelo
aparecimento de espaços em que todas as espécies, géneros e estilos não estejam desde logo estabelecidos e
orientados em desacordo com o conceito totalitário de arrumação do tipo enciclopédico. Temos de decidir se
queremos ou não que essa organização de ideias esteja intimamente ligada à possibilidade de existir qualquer
tipo de liberdade de expressão. Sabe-se que os grandes momentos de toda a arte e história da humanidade
contêm muitos acontecimentos de sentido inverso e de grande tensão criativa. Como situar a música num mundo
onde tudo começa a contribuir aceleradamente para que os detentores das 500 maiores fortunas continuem a
enriquecer, com a ajuda de uns tantos a quem, no século XIX, a imprensa operária já chamava de “a irmandade
de vendidos”? Também sabemos que existem actualmente «organizações que se dedicam a fazer desviar as
multidões para objectivos inofensivos por meio de gigantescas campanhas de propaganda, organizadas e
dirigidas pela comunidade internacional de negócios, metade da qual norte-americana, e que aplica uma
quantidade enorme de capital e energia na tarefa de converter pessoas em átomos consumidores e instrumentos
obedientes (quando não têm a sorte de encontrar trabalho) isoladas umas das outras e privadas até do que possa
ser uma vida humana decente. Há que esmagar os sentimentos humanos normais, os quais são incompatíveis
com uma ideologia que está engrenada para satisfazer as necessidades do privilégio e do poder que celebra o
lucro privado como valor humano supremo e que recusa às pessoas outros direitos que não sejam o de andar aos
salvados no mercado de trabalho». Face a esta realidade, analisada por Chomsky, e a tantas outras ainda mais
graves, como é que o jazz faz a sua própria denúncia e o que podemos esperar dele?
Herb Robertson é o nosso homem. Um maldito da corneta e de outros artefactos extraídos do nosso lixo
quotidiano, a fomentar a profanação do sagrado ritual do nosso palco, que como todo o ambiente circundante,
está totalmente contaminado. A sua música estimulava a independência do pensamento, a anarquia da criação, o
caos dos sentidos, a descompostura da pose, a incerteza do som, a paciência tolerante da incompreensão, o
humor infatigável e a nossa vergonha de gente imensamente aburguesada e ridiculamente acomodada. Herb
Robertson tem mais liberdade em cada minuto de sopro do que magotes e magotes de público assistente a
assobiar e a gritar aplausos horas a fio. Todos parecem preocupados em encontrar uma terapia colectiva para a
incapacidade de sair de si próprio, insistindo em fazer figura de corpo presente nos concertos. Quem não trata da
sua capacidade de compreensão, não tem de se queixar da insegurança e do incómodo que esta lhe pode causar.
Estou convencido que não é necessário, depois de tantos assuntos interessantes e paralelos a referir, dizer quanto
prazer existe nesta espécie de ajuste de contas com o destino. Quando é que um dia se faz emergir por entre
tantas lembranças esquecidas, tudo o que já se escreveu erradamente sobre o jazz em Portugal? Porque o tempo
também dentro de si a suprema ironia de apagar tudo o foi editado. Quando um dia falarem de Herb Robertson,
outras realidades vão forçosamente influenciar a sua forma de comunicar o seu discurso e tudo continuará como
se nada tivesse acontecido.
III
O jazz, como toda a arte, dá a possibilidade de perceber os graves problemas que afectam tanta gente,
permitindo uma análise da realidade do mundo. Se não existissem músicos minimamente comprometidos na
tarefa de denunciar este estado de coisas, eu ia embora daqui no segundo a seguir. Não é possível acompanhar o
jazz como parte de uma experiência humanista, sem procurar respostas que expressem o desagradável recreio
voluntarista em que vivemos e sem negar as desgraças das actividades de lazer e tempos livres que distraem
activamente milhões de alienados por dia. Gostava de dizer quanto detesto e embirro com o fraseado jornalístico
que me resume a mais um amante do jazz - uma treta nauseabunda e de imenso mau gosto que me deixa
revoltado. A arte não precisa de espíritos seduzidos para ser vivida; requer outro tipo de conteúdos bem mais
importantes - valores e princípios que definem uma ética, cada vez mais em falta no nosso país. Quando não
conseguimos sentir as nossas próprias pulsações, provavelmente não fomos capazes de fazer o que devíamos,
nem consolidamos um processo colectivo de reflexão que tivesse introduzido mecanismos de elaboração crítica
sobre as questões da nossa realidade circundante. Conseguir acompanhar a arte e o jazz sem medos,
ultrapassando a incapacidade de o perceber totalmente, num dado momento, pode ser um objectivo interessante
a alcançar. É necessário estabelecer um relacionamento aberto com a criatividade, emitindo um sinal de alerta
sobre a obrigação humanista de participação crítica no acto criativo.
Sempre tive a noção que o processo de marginalização cultural está tão instalado dentro do grupo de gente que se
julga experimentada e portadora de autoridade nas questões da avaliação da música, como naquele que lhe é
totalmente exterior. Continuo a ficar estarrecido com a densidade de acontecimentos paralelos à arte que não são
objecto de uma imediata apropriação crítica por parte dos intervenientes, quando se sabe que uma das forças
mais relevantes do acto criativo é o seu poder de antecipação analítica perante as crises do mundo. Estes
momentos difíceis, que agora começam a ser detectados, ainda não foram objecto de trabalho crítico consistente,
explorando todas as suas forças em estímulos cheios de necessidade de denúncia. Por outro lado, perdem-se
energias em assuntos banais. Se já não chegava a descarga maldizente à porta dos concertos, temos agora outros
actos similares, por aqueles que da sua pequena cátedra, tentam liderar interesses e provincianas posturas de
opinião. Os argumentos continuam a ser muitos e as palavras também. As discussões andam à volta de pretensas
estéticas a emergir de uma semântica fast-food. A estética do jazz ocupa uma parte obscura e considerável da sua
utilização. Parece-se com uma palavra-lixo que serve para tudo. A periferia começa a ficar cheia de avaliadores e
todos estão desejosos de tomar parte no protagonismo centralista. Vivemos momentos nos quais estão
constantemente a aparecer processos criativos muito semelhantes. Quando procuramos deixar marcas
dissonantes na superfície das músicas que escutamos, esquecemo-nos que já foram tocadas muitas vezes por
outros e assimiladas por nós durante anos. Estes actos equivalem à realização de pequenas revisões. Os temas
passaram a integrar novas mensagens que nos surgiram como mudanças de linguagem. Quando somos
apanhados de surpresa, levantam-se em nós várias questões - a liberdade de expressão não permite que nos
façamos ouvir no meio da enorme cacafonia circundante. Qual poderá ser o seu sentido?
Algumas saídas aproximam-se, providencialmente, deste encarceramento do meu espaço livre de audição.
Muitas vezes na arte nada mais se pode esperar do que a velha estratégia de rememorar o artefacto retirado do
seu contexto para que assim - détournement - se possa achar um novo significado. Quando se revela um acto de
desilusão perante o imobilismo e o conformismo corrente, podemos encontrar os pressupostos da ideia de
decadência, que é também uma auto-ilusão. A exploração do modelo de audio-colagens foi, desde sempre, capaz
de nos trazer soluções apaziguadoras para as nossas ansiedades e misérias. O prazer de descobrir fica cingido ao
prazer de ouvir alguém que mistura a arte, com a paródia de quem está por fora das coisas, num
comprometimento generoso. A arte terá o seu fim. Quanto mais importância atribuirmos às questões da
representação na música, mais ela assume nas nossas vidas uma centralidade inevitável. Podemos tentar
perceber quem representa quem, ou até se alguém representa alguma coisa.
A minha geração herdou ideias das duas ou três anteriores e a representação neste sentido foi um processo de
reflexo e espelho. Começamos a sentir o perigo da cultura a transformar-se numa globalidade onde as ilusões vão
sendo acumuladas como bens omnipresentes de consumo. É claro que todos admitem, sem ressentimentos, tratar
a cultura como uma questão de acessório que pode ser tirado ou posto - a música, dado o seu carácter abstracto,
acabará num rumor entre produtos de marca. A imagem da música global flutua acima do planeta como se fosse
uma eufórica alucinação comercial: Happy Meal, com sabor a mão-de-obra barata, numa atmosfera de
abundância.
Devemos estar imensamente gratos a todos os artistas que nunca perderam o senso de espiritualidade. Enquanto
ficámos ocupados a analisar a beleza de todas as imagens projectadas, não fomos capazes de perceber que a
cadeira onde estávamos sentados já tinha sido vendida, no mais puro acto de especulação, num paraíso fiscal
algures no mundo. É disto que somos feitos.