AUTOR: IVO MARTINS 
EDIÇÃO: E-Zine Vector [www.virose.pt] / Website Jazz Portugal [www.jazzportugal.ua.pt]    DATA: Junho de 2003, Outubro de 2003 





Uma vez estava a fazer algumas tarefas habituais das minhas relações com o jazz e enquanto aproveitava para
pensar surgiram-me várias questões passadas que fui percebendo durante as minhas experiências pessoais no
campo da música e da arte. As interrogações apareceram e dessas dúvidas fui construindo um discurso mínimo
de racionalidade, que me ajudou a ir caminhando neste território tão extensamente depauperado de certezas e
que eu tenho de perceber por discursos simplificados e desprovidos de conteúdo.

Já sabia que as pessoas ao escutarem música estão sempre a colocar no que ouvem a sua capacidade de entender.
Já sabia que em muitas outras formas da nossa vida continuamos a pensar segundo os nossos interesses, tantas
vezes os mais mesquinhos. Percebi, também, que esse processo era realizado de uma forma natural e que lhe está
implícito o acto de compreender. Neste sentido podemos considerar que a este mecanismo de busca, está
subjacente a procura de uma certificação de normalidade. A normalidade que advém de aferirmos a nossa
audição através de gostos que se exprimem numa maioria dita "normal". Aquilo que nos é dado ouvir
transforma-se num mero acto de atenção, que é antes de mais um teste pessoal, às necessidades de aspirar
pertencer a um colectivo normalizador e protector, uma síntese de muitas formas de ouvir e das quais uma
avaliação desinteressada do que se escuta, permite que se possa falar de um gosto colectivo e uniformizado.
Baudlaire afirmava que "o gosto exclusivo do Verdadeiro (nobre aptidão, quando aplicada aos seus fins próprios)
oprime o gosto do Belo"(1).

De facto, a verdade manifesta-se como um elemento de análise fundamental, desde que não impeça a captação
do belo. Se as pessoas continuam mais preocupadas com a sua verdade, - a verdade pessoal, o que é ainda mais
grave - do que sujeitarem as suas aptidões mais ou menos esclarecidas à aceitação pura do belo, esse mecanismo
de segurança que se traduz em entender automaticamente o que se escuta deixa de parte as experiências mais
interessantes do processo aberto de compreensão. O que interessa aqui passa por saber o que de facto se quer,
quando se desconhece as limitações que este tipo de atitude contém. Mas quando percebemos que associadas a
estas razões defensivas estão outras que se prendem com a protecção da sua integridade pessoal, a manutenção
do seu território, do seu espaço de influência, a validade da sua força de interacção no grupo, podemos ver como
estes interesses estão distantes das verdadeiras atitudes de pesquisa do belo. A arte acaba, para todos eles, como
mais uma actividade social, política e económica, numa pura retórica de estilo.

"A nossa visão da vida moderna tende a dividir-se em dois níveis, o material e o espiritual: algumas pessoas
dedicam-se ao «modernismo», encarado como uma espécie de puro espírito, que se desenvolve em função de
imperativos artísticos e intelectuais autónomos; outras situam-se na órbita da «modernização», um complexo de
estruturas e processos materiais - políticos, económicos e sociais - que, em princípio, uma vez desencadeados, se
desenvolvem por conta própria, com pouca ou nenhuma interferência dos espíritos e da alma humana"(2). O
problema que aqui se coloca, é a sua tónica numa acentuação negativa sobre como pode ser feita com sucesso a
passagem do pensamento ao acto, sem que nenhum destes momentos se profane ou actue destructivamente sobre
o outro. Ambos revelam-se premonitórios, na medida em que se distingue perfeitamente o «homem fáustico
como aquele que faz a história» do outro, que permanece e vive no velho mundo. A esmagadora maioria das
pessoas já não existe em «pequenos mundos», a vivência actual talvez só consiga representar de uma forma
metafórica a nostalgia dos nossos mundos perdidos. Talvez a arte possa representar essa mesma representação e
por isso mesmo sempre sujeita a uma atmosfera interior de destruição, de perda e de morte. Talvez assim, as
pessoas tenham também muita dificuldade em conviver nas melhores condições neste difícil contexto, onde a
sensação de colapso eminente se frutifica nas mais pequenas formas de incerteza e onde as ansiedades buscam
afanosamente posicionar-se por mecanismos mais activos onde o peso da componente ideal é sucessivamente
descarregado através de uma prática activista, militante, voluntariosa e como tal «modernizadora». Quando este
processo é adoptado pelos artistas, aqueles que por princípio deveriam saber conviver neste terreno sem perdas
de identidade ética, apresenta-se nos seus gestos o resultado de uma grande pobreza que não vai além de
pequenos vícios de um mundo "fáustico", sempre a confrontar com a morte a sua reles vida sobrevivente. Julgo
que actualmente as relações dos artistas e de todos os que circulam na sua órbita, apuram-se por questões de
mera retórica, entre o político, o social e o económico. Não acredito pois, numa arte orientada para exprimir os
valores do belo. As relações públicas ocupam, um cada vez maior espaço de intervenção nos mecanismos em que
se organizam e as estruturações dos interesses comerciais andam aí para extrair mais dinheiro. Vivemos no
espectáculo da vida elegante onde tudo é fugaz e difícil de apreender. Estabelecemos ligações superficiais que nos
permitem não arriscar muito os nossos conteúdos, ou porque não existem e porque dão muito trabalho a
transmitir ou porque em sequer são necessários. Existimos segundo um regime de mínimo comprometimento,
onde o público e o privado quase deixaram de ser relevantes. Somos só uma imagem.

Sabemos que existem muitas músicas urbanas, elas são uma consequência de um drama existencial que a grande
cidade vai proporcionar a partir do séc. XIX. No prefácio de Spleen de Paris, Baudlaire proclama que "la vie
moderne" exige uma nova linguagem: «uma prosa poética, musical mas sem ritmo, suficientemente flexível e
suficientemente rude para se adaptar aos impulsos líricos da alma, às modulações do sonho, aos saltos e
sobressaltos da consciência» (3). O que impressiona é que Baudlaire, fez estes poemas em 1860 e neles estão
contidos os pressupostos essenciais da arte para o século seguinte. Podemos interpretar que a música sem ritmo,
suficientemente flexível e suficientemente rude, terá sido pela primeira vez transformada em conceito num
tempo e num espaço que não lhe diz respeito e que foi visto com uma extrema clareza. Apesar deste facto, ainda
hoje continuamos a sentir a arte e a música segundo uma visão conservadora contra a sublevação e a renovação
permanente dos modos e das formas. Sendo que esta é ferozmente imposta por aqueles que dominam o mercado,
tudo fica subjugado a uma competição implacável onde não agir equivale a pura e simplesmente desaparecer.
Inovar para manter o negócio, controlar para manter o lugar, prescindir da livre vontade, acatar as maiorias,
aceitar a pressão do colectivo, passaram a ser alguns pontos de convergência de uma desintegração que actua
como força mobilizadora, logo integradora. Todos nós aspiramos estabilidade, mas esse estado significa,
entropia, morte lenta. Talvez se possa compreender, agora, como se torna essencial para a sobrevivência artística
existir um processo de mutação constante nas estratégias da concepção de projectos.

Pertencemos ao imenso grupo dos banalizados e depois disto tudo tenho dificuldades em pensar no que me vai
acontecer a seguir, ainda que os sinais que vou sentido por parte dos que estão perto de mim me deixem inquieto.
Não é que esteja preocupado em achar um futuro, esse contrato entre mim e o Diabo. Milhões de pessoas são
vítimas, todos os anos, de desastrosos planos de desenvolvimento, da incúria de tantos e tudo parece estar a ser
naturalmente aceite. Aquilo que possamos fazer neste estado de coisas parece-me muito pouco.

Na arte, na música, como na vida todas as classificações são abusivas. Os cobardes constróem sempre
estratagemas.

Já tinha pensado sobre algumas das formas de acção que se manifestam entre os que criticam, os que promovem,
os músicos e os outros. Elas revelam uma crença evidente na história como o único meio eficaz de tornar eterna a
sua actividade; eles olham para trás e acreditam no que vêem, sentindo que essa realidade é uma parte intrínseca
das suas vivências. Em vez de se sentirem desorientados, com as inúmeras dificuldades de se ter de viver num
meio onde o movimento e o sobressalto fazem parte integrante de um quotidiano em mutação permanente,
sentem o imenso prazer do participante que acima de tudo se estrutura na crendice de que é actor e que a sua
acção muda alguma coisa. Não somos parte em lado nenhum, passamos o tempo a gerir incapacidades de
compreensão nesta impetuosa pressa que nos atormenta e arrastados sem controlo somos lançados na corrente
dos acontecimentos diários, onde tudo se dilui, metamorfosea e desintegra em algo irreconhecível. A produção e
o consumo tornam as actividades humanas cada vez mais internacionais e cosmopolitas. A relação local
sucumbiu e desapareceu dando lugar a uma escala planetária de comunicações, de elevado índice tecnológico e
de uma requintada sofisticação. A automatização desenvolve-se a um ritmo vertiginoso, numa busca desenfreada
de caçar o instante. Colapsar a diferença de tempo entre o acontecimento e a sua recepção informativa, deve ser
uma das metas a atingir neste drama intensamente burguês e capitalista em que vivemos. As ideias deveriam ser
uma forma de gerar novas ideias, por isso julga-se que todas as que nos aparecem de uma maneira definitiva não
têm interesse. Quando alguém utiliza a possibilidade de falar de um concerto e de transmitir o que pensou, num
modelo fechado, absoluto e final, imediatamente perdeu uma oportunidade de desenvolver uma ideia geradora.
Vivemos rodeados de ideias mortos, que não contêm qualquer incitamento à criação. São narrativas exaustas.
Desprovidas de vida interna. Enclausuradas num redil de pontos previsíveis, onde o prazer de descobrir
estagnou. A retórica do jazz em Portugal apresenta estes tiques anquilosados numa repetição compulsiva. Existe
também nalgumas prosas um desprezo categórico, quase histérico, pelos homens que fazem a música e noutras
escritas o excesso de uma multidão que idolatra, cega na sua avidez mitológica. Todos os regimes totalitários
tendem a levar ao extremo a colectivização de todos os ideários, partir do qual se estruturaram. O jazz por vezes
cai neste tipo de tensões, onde o músico/mito além de ser uma construção de uma mente colectiva frustrada,
manifesta-se antecipadamente superior antes de tocar qualquer coisa. Não posso apoiar este tipo de impulso,
embora o entenda e perceba a sua utilidade numa sociedade que já não possui Deuses para acreditar. Existe uma
puerilidade de circunstância que leva as pessoas a procurarem mitologias alternativas no mundo da arte. O Jazz
que se anuncia em revistas, nos jornais, nos meios de comunicação é uma música fantasma no meio de formas e
símbolos que há muito tempo morreram. As pessoas insistem em perder tempo, a ouvir e falar destas coisas,
encarnado o espírito próprio de uma modernidade do subdesenvolvimento. Por mais que se escreva, fale, sobre o
Jazz ninguém pode controlar as acções e as interacções que nele vão decorrendo, a arte será sempre uma espécie
de zona livre onde todas as forças psicológicas e sociais podem desenvolver-se espontaneamente. Quando o que se
diz tem o peso de ser uma ideia fechada, como atrás referi, resta o ridículo de se sentir a fragilidade dum acto
falhado. Tudo em Portugal soa a acto falhado.

Sinto que falar só de jazz é algo de muito pobre, quando se pode alargar todas as visões para os amplos domínios
da arte. Não tenho qualquer tipo de reserva em relação ao jazz, mas percebo quanto é limitado olhar os
acontecimentos exclusivamente pelo seu prisma. Por isso, muito do que quero referir deverá ser considerado
numa perspectiva mais vasta. Os fenómenos da existência aplicam-se indiscriminadamente a todas as parcelas
da actividade artística e os pontos de vista que só dizem respeito a uma música, a uma obra de arte se não forem
acompanhados de uma compreensão mais global, serão mais uma crónica desinteressante e inconsequente.
Vivemos no sistema das aparições deslumbrantes, fachadas luminosas, espectáculos triunfantes, decoração,
estilo, brilhos e afins. Os rostos estão vazios, encontramos esboços de beautiful people por toda a parte, uma
esfuziante harmonia, preservada no tumulto de tanta gente vulgar em movimento. Quiseram que tudo fosse
sendo estruturado assim, entre habilidosos esboços de fantasia, vida degradante, nas capitais do mundo
civilizado. A arte assemelha-se cada vez mais a anúncios, onde a esplendorosa elegância intelectual transforma o
mundano em provinciano. Somos material de propaganda, sem sermos pagos para isso. Esta é a cultura que
temos. Onde está a aventura espiritual da modernidade tantas vezes proclamada pelos especialistas? Hoje andam
totalmente envolvidos nas campanhas propiciadoras das suas carreiras. Procuram o sucesso do seu negócio como
um vulgar capitalista. Estão pesados, solenes, não sei se usam bigode, não têm olhares, são indeterminados, mas
ressalta das suas faces um semblante orgulhoso de alegria e obediência. São estes os nossos artistas e os seus
acólitos. A cultura é actualmente uma actividade cada vez mais duvidosa e pretende cativar para o seu desfile de
vaidade os espíritos mais livres. Um desfile que reflecte os movimentos rápidos dos expedientes, as agilidades
malabaristas dos oportunistas, as graciosidades hipócritas das avaliações, os sentimentos sem lágrimas pelo o
outro, um brilho gorduroso nos olhares concorrentes e uma cor suficientemente kitcsh que ilumine tudo isto.
Todas as vítimas possuem algumas características básicas comuns que lhes permitem exercer cabalmente as suas
funções nos destinos que lhes estão reservados. Uma vítima não existe sem um destino, uma profecia, qualquer
coisa que antecipe o seu estado de bode expiatório ritual. É honesta e conscienciosa, tímida e modesta e afasta-se
das intrigas que mantêm vivos e interessados os seus colegas de vida. Já sabia que as intrigas e os gracejos
ajudam a passar o dia a muita gente. Mas a vítima assume neste domínio um papel essencial. Congrega dentro de
si estas energias, e existe nela uma espantosa predisposição natural para assumir esse peso do ridículo alheio.
Neste sentido ela possui um papel de higiene social ao dissolver conflitos e receber as culpas quando são
necessárias exportar. As pessoas aspiram coisas tão vulgares como comunicar livremente e reconhecerem-se
como iguais, mas as vítimas incomodam-nas na realização destes desejos, porque os seus olhos questionam-nos e
querem respostas sobre os fins da tagarelice reinante. Os meios de comunicação em vez de unir as pessoas vão
produzindo um abismo enorme entre todos, separando ainda mais as ténues relações existentes. As vítimas
começam a parecerem-se demasiado com as que não o são. Existe uma inefável ambiguidade entre todos que
passaram a ser o molde, a partir do qual se elaboram enigmas. Eles têm o olhar da esfinge.

Compreendo que todos pensem que a simpatia pelos fracos e oprimidos fez parte de um certo maneirismo
intelectual racista que o colonialismo português haveria de transformar em ideias politicamente sociais. Mas do
que se pensa à sua prática vão muitas e grandes distâncias. No jazz em Portugal com uma guerra colonial a
correr, esta deferência com os negros americanos sempre me soou a um obscurecimento perverso, um prazer
criado pelos seus sofrimentos. O fascínio da degradação tornou mais evidente esta estranha reacção hiper-
colonial. Nada melhor do que um país como o nosso para se encontrar as pessoas que fossem capazes de idealizar
uma sociedade onde aos negros competia o espectáculo e aos outros o seu fruir. Sempre me dei muito bem com as
arrumações de ideias e quando actualmente revemos umas quantas manifestações de quem escreve sobre jazz,
ainda cheias desse espírito colonial, eminentemente racista, fico perplexo a pensar se eles não estarão a perceber
o que são. Só pode reivindicar, nos dias de hoje, a cor da pele, quem pretende referir que esse facto constitui um
qualquer argumento na arte ou na música. Quem o faz, desconhece os pressupostos essenciais de uma sociedade
moderna. Para alguns a menoridade étnica persiste como mecanismo compreensível de uma certa realidade e o
conceito constituinte de ideias como a do branqueamento do jazz, é ainda uma forma larvar dessa divisão
geográfica do homem segundo a sua disposição natural em continentes, tratando-se de uma espécie de
taylorismo darwinniano, que nem as delícias libertadoras de uma revolução democrática em 25 de Abril de 1974,
conseguiu expurgar do nosso pensamento comum. As perseguições políticas, religiosas e sociais tornam-se
momentos endémicos de existência que estão sempre a reaparecer como desenvolvimentos diferentes segundo as
interiorizações do tempo e do espaço onde se sublimam e repercutem.

" Desde os triunfos dos expressionistas abstractos às iniciativas radicais de Davis, Mingus e Monk, no jazz, até
obras como A Queda, de Camus, À Espera de Godot, de Becket, The Magic Barrel, de Malamud, O Eu Dividido,
de Laing, os trabalhos mais interessantes dessa era caracterizam-se pela distância radical em relação a qualquer
meio ambiente compartilhado"(4). Deve-se entender por ambiente o meio urbano da grande cidade - a primeira
construção modernista que surgiu em finais do séc. XIX e que foi um elemento determinante de todo o séc. XX;
construção que haveria de assumir uma necessidade de primeira grandeza num mundo em constante renovação.
Ainda hoje vivemos essa mobilização geral empreendedora de uma sociedade que resiste criando sucessivos
progressos. A cidade passará a ser um local em construção, palco de novos espectáculos onde lâmpadas,
máquinas, operários e materiais realizam o processo de manter o público fascinado. Todos fazem projectos de
novos espaços e recuperam zonas degradadas. Implantam-se parques, avenidas, edifícios, viadutos, pontes, auto-
estradas, bairros, fábricas, escritórios, museus, bibliotecas, estádios, metropolitanos, centros de cultura,
comboios de alta velocidade, aeroportos, orlas marítimas tratadas. Continuámos a procurar uma saída para um
desenvolvimento que se degrada a si próprio. A serpente que se come a si própria entre o fluxo rápido das leis do
tráfego. O movimento insaciável. A arte morre perdida neste auge de criatividade, exuberante, implacável e
deplorável. Todos terão o seu momento de aclamação pública e nada se resolve. Esse momento continua a
inspirar os homens a fazer mais. Entretanto a ideia de reciclagem aumenta as possibilidades de se descobrirem
novos significados de um mundo já de si extremamente depauperado, degradado e ruinoso. O artista irá mais
uma vez vencer as habituais dificuldades de afirmação no meio, cada vez mais alienado, enquanto escolhe esta
nova aberta de acção, preparada para perpetuar o desenvolvimento do mundo burguês. Demolir ficará a ser a
palavra de uma desordem, um empreendimento que lhe levará em dedicação, muitos dos anos da sua existência
obsoleta. Vivemos em épocas de demolições mais ou menos organizadas. Já chegamos a uma fase em que nos
podemos deliciar serenamente, ao pensarmos que podemos demolir tudo. Demolição planetária. Neste momento
em que encontramos a parábola perfeita para a nossa cidade será um andaime permanente de símbolos que se
colam e degradam, como uma parede de cartazes. Surgem murais de coisas inconsequentes, numa ideologia
universal decadente, aterrorizada por insanáveis e ameaçadores conflitos. Nunca a tensão suburbana esteve tão
presente nas nossas vidas de uma forma global. Os espectadores de arte são os membros desta comunidade
falida, e os museus levam as pessoas às cadeiras para olharem a radicalidade pós-moderna. Estamos
enclausurados debaixo de um manto inefável de bronze. Um firmamento a pairar sobre as nossas cabeças. Um
mundo sombrio que liga as nossas linhas de vida como um quadro para uma nova integração da espécie.

As exposições institucionais e os concertos de música em grandes anfiteatros, são paródias à organização da
cultura arremessadas pelo artista. Por vezes o artista e a audiência confundem-se. Não sei a quem me devo
lamentar. Se às circunstâncias que promoveram este uso indiscriminado do entulho como meio de construir
novas formas, ou se ao período em que a participação activa e popular fez da arte um investimento. Do estado
aos messenas todos desejam criar uma beleza cosmética e uma camada protectora que disfarce com fervor toda a
brutalidade e cobiça da glorificação empresarial. Os museus passaram a ser as organizações que melhor sabem
construir uma fachada suave para essa podridão empreendedora. Os artistas vivem cada vez mais na terra do
espírito de fronteira. Aí as hierarquias amolecem, porque todo o território está em movimento. Viajar debaixo
das profundezas enterradas, dirigidos por majestosas visões de ruína, entre salas de degradação e morte e
interrupções descobertas por edifícios de vidro constitui a via rápida da beleza suprema entre cortes de miséria
humana - escorre sempre tinta no local. Estou farto de história. Passo por corpos, abandonados, danificados,
sugados pela insensata avareza de alguns, corpos apaixonados que se movem em cápsulas abertas no fundo de
enigmáticos filmes mudos, redes de comunicações, esplêndidos monumentos, vitalidade e angústias, ruídos,
matérias sonoras e ritmos, música que faz vibrar os tecidos dos nossos ouvidos, enquanto as pessoas compram
automóveis e novas tonalidades de pele. A vida virada do avesso que passa por mim a correr diz que vai na sua
aventura e eu sinto-me seguro. Percebo perfeitamente quando a ruína está acumulada em número suficiente
para que a partir daí se inicie mais uma espantosa diversidade destruidora. Culminar um novo apogeu no espaço
da catástrofe onde dos restos se faz arte.

Até o pó do museu tem cultura; todo o lixo do museu tem imaginação. O poder de recordar e de procurar
esquecer, como uma luta interior. Temos de saber traduzir a realidade, a partir de um manual de instruções.
Tentar perceber que se colocam algumas interessantes questões sobre a actividade de passar para uma nova
língua textos sobre assuntos mais ou menos vulgares como a mecânica, o turismo, a arte e a literatura. Tudo se
transforma num produto inacabado, abrindo caminho para a intervenção criativa.

Isto está ser escrito em circunstâncias difíceis. Estava marginalizado dos interesses de grupo que fazem trocar
favores e dissabores. O que não constitui necessariamente uma desvantagem. Por isso sinto uma pressa em fazer
tudo muito rapidamente, com medo de perder esta possibilidade que uma exclusão como a que estou a viver me
proporciona. As aprovações dos outros, os auxílios, os reconhecimentos, não produzem mais nada do que umas
tantas personagens medíocres a abarrotar de conformismo. Somos seres transformativos em queda degenerativa
de qualidades, a sobreviver numa organização secundária de pilhagens sucessivas assentes em meia dúzia de
dogmas ameaçadores.

Estamos permanentemente sujeitos a uma prática de encontros cada vez mais anónimos, experimentais e
fugazes, as pessoas não têm rosto, nem corpo, nem história, sendo apenas aquilo que deixam revelar e neste
contexto desenvolvem-se novas fórmulas de relacionamento e de organização da vida quotidiana que urge ser
repensada. Começamos a estar confrontados com outras concepções do espaço e do tempo. Não sei se a velha
questão do tempo real interessará para as novas perspectivas de interacção que se avizinham. O conceito bem
netiano de virtual passará para outras dimensões que se ajustam a mundos e visões extrasensoriais. Aquilo que o
uso de drogas, álcool e químicos de certa forma, desde sempre, anunciaram. Ultrapassar os sentidos numa
primeira fase, a seguir o corpo e a seguir o espírito, a caminho de outras dimensões. As pessoas estão demasiado
inocentadas pelo mecanismo corrente da irresponsabilização que se foi instalando de tal modo que para que se
possam levar muito a sério, teríamos de criar uma nova linguagem. Quem entra neste jogo tem de saber
caminhar sem noções de escárnio e mal dizer. Tem de estar impune ao mau trato e ao processo de pensar sobre
si.

Detesto definições. Todos nós aprendemos a usá-las desde pequenos e isso vai embotar as possibilidades futuras
de acharmos intuições reveladoras. Ficamos réplicas de réplicas. Para alguns a cultura sempre foi um processo de
"desenvolvimento e enobrecimento das faculdades humanas". Esta visão acabaria de passar de moda. Gosto mais
daquela que a associa a modos de "pensamento e comportamento que são transmitidas por interacção
comunicativa". Ou então aquela que diz que o "homem é um animal suspenso em teias de significação que ele
próprio teceu". Onde "portanto, a sua análise não é uma ciência experimental em busca de lei mas sim uma
ciência interpretativa em busca de sentido"(5). Não quero, porque não sei, achar explicações para esta
necessidade de se definirem coisas. É evidente que esta tarefa está enraizada nas nossas práticas ancestrais,
constituindo uma parte importante no mecanismo de acumular e transmitir informação num mundo muito
limitado em meios de comunicação. Mas agora quando se sabe da quantidade impressionante de recursos
disponíveis, alguma coisa terá de mudar forçosamente. O que mais me seduz numa estrutura são aqueles que,
agindo no seu interior, não se manifestam favoráveis ao seu desenvolvimento. Num certo sentido todas as
construções geram automaticamente forças contrárias que intervêm para o seu próprio fim. Esta tensão entre
pontos de orientação diferentes pode chamar-se de cultura. Existe um efeito de colagem, que como diz Giddens ,
"a apresentação dos media assume a forma de justaposição de histórias e elementos sem nada em comum além
do facto de serem oportunos e sequenciais". A vida surge como uma realidade, aparentemente unitária, quando
ela é a sobreposição de vários elementos radicalizando, globalizando, reproduzindo, recombinando e criando
novos conteúdos. Todo o acto exige uma participação. O processo, também, arrasta atrás de si uma
hierarquização onde actuam poderes políticos, económicos e sociais. Existe pois, uma estratificação de planos
onde se encontram indivíduos e organizações. O que mais me admira nas pessoas, porque nada do que até aqui
disse não podia ser objecto de análise sem elas, é a coerência, a paciência e a serenidade. O irónico e o sentido de
humor completam as características que considero mínimas para se possa viver despercebido numa
multiplicidade de factos. O difícil é saber retirar deles uma análise coerente. A simplificação desta tarefa só se
torna possível quando tudo o que se sente é uma consequência da forma infatigável de ser. Quem ensina pela
prática? Muito poucos.

Se temos de denunciar o que se passa é porque tendemos para silenciar aquilo que pode gerar a oposição das
pessoas e que, portanto, interessa ser omitido. Os nossos diálogos parecem cada vez mais respostas a cartas. São
escritos por um computador qualquer.

Já lá vai o tempo em que a arte assumia um papel fundamental na perspectivação das ideias mais radicais. Hoje
o discurso político e religioso percorre sozinho o caminho até ao desvario na procura de uma sociedade
minimamente possível. O fluxo ininterrupto de acções construtivas e destruidoras compõem a aparência de um
terreno que se muda e refaz sob os auspícios de muitas organizações correctoras. Devolvidas segundo uma lógica
da sistematização perfeccionista e na maior parte dos casos, constrangidas por crises sazonais de
desenvolvimento, estas medidas de apuramento funcional contribuem, quando postas em prática, para que
passemos a ter a noção de que não podemos ir muito mais longe nos nossos devaneios regeneradores. Procuramos
um paraíso onde cada um pudesse viver segundo as suas naturais aptidões e necessidades pessoais. Aparecem
depois aqueles que pensam as suas vidas como se existisse a possibilidade de se fazer algum compromisso entre a
emoção e a razão. Diremos que o lado intelectual - palavra de indefinição e de sentido pouco claro - tenta
orientar-se de uma forma apaziguadora relativamente aos impulsos interiores das nossas vidas espirituais. Gosto
deste tipo de simplificações, visões dualistas, que se dividem, como o eu dividido da anti-psiquiatria.
Encontramos assim gente que se orienta neste terrenos utilizando formas de pensar tão pueris e que ao mesmo
tempo não tem vergonha de escreverem e tornar públicas estas ideias. O seu sentido crítico é pura e simplesmente
transferido para os outros, os que são objecto das suas visões, eles estão, assim, como que autodispensados de si.
Encontramos sempre as mesmas tendências, os tempos mudam, mas os actos multiplicam-se de uma forma
igual. Onde é que tudo falhou? Estamos numa terra devastada por excessos.

Nunca saberemos o que nos vai acontecer a seguir. Mas todos falam como se soubessem. É este desespero
causado pelo modo como se pode acreditar em tal coisa, que me faz sentir a imensidão do dispêndio de energia
aplicada em tantas revoluções falhadas. Esta fé imprevidente, que nos rodeia e deixa antever mais momentos
perdidos. Somos uma miragem, habitantes de uma cidade-fantasma, cuja grandeza e magnificência se dissolvem
no ar putrefacto de cadáveres e projectos falidos. O nosso urbanismo cheira a urna. Construímos
incessantemente casarões, monumentos, uma manifestação de um simbolismo espectral que pretende ser a
própria existência de um dinamismo e uma determinação salvadora. Fazemos o mesmo nos nossos sepulcros,
embelezando-os como se fossem apartamentos. Os cemitérios são talvez um dos lados mais autênticos da
actividade quotidiana, sendo que neles tudo existe para esse fim - o nosso. Mantemos viva uma estética do
subdesenvolvimento porque os artistas venderam-se a uma política de trabalho forçado por entre as formas e os
símbolos da criação, agindo como trabalhadores por conta de outrem. Os museus e as organizações paraculturais
fazem as tarefas de principais angariadores desta rede de trabalho escravo, que se deixou enclausurar numa
servidão entre o poder e a arte. Criámos um sistema sem motor, adormecido, num peso morto que trata a arte
como um movimento de mercadorias. Sabemos quanto se torna importante que possamos viver num espaço onde
a volatilidade e a instabilidade de uma cultura aconteça de uma forma natural, que gere uma polarização
duradoura dos horizontes da imaginação, afastando os tacanhos processos de reconhecimento dos seus
patrocinadores e exprimindo uma resistência permanente à prática tida como correcta - manifestada segundo
modelos de disparidade radical, prescindindo de cultos exteriores majestosos que apenas escondem podridão:
«capas de civilização». Depois todos cultivam um ritual de inimizades brutais e um desprezo categórico, quase
histérico, pelo o outro. Recriam um clima sórdido, narcisista, onde todos correm para admirar a sua imagem
vulgar, numa representação da realidade que se define no desprezo acrítico pelas pessoas reais que se movem à
sua volta. Vivemos um segundo espectáculo da vida elegante, como se existisse um ponto suficientemente crucial
de todo este novo heroísmo.

Sabíamos que estávamos perdidos, apesar de que numa parte considerável das coisas comuns, as pessoas
pareciam continuar a fazer o seu melhor. As vezes deixavam cair a sua máscara e mostravam a sua face
torturada. Todos aprendemos a não sofrer muito com estes actos de nudez aparente. Era a festa de todas as
inimizades brutais, que se manifestavam numa vulgaridade, efémera, volúvel e frívola de cumplicidades e
sentimentos. A podridão atrai podridão.

Em certos momentos fico triste. Um esmero de inúmeros sentimentos inacabados passam a correr. Fugazes como
um olhar. Entretanto continuava a perder tempo em palavras. Os gestos eram destituídos de sentido prático.
Pareciam-me meneios de uma rusticidade transfigurada em montes de razões imersas. Um lugar húmido
apoderou-se do local onde estava a reprimir-me. A minha infância surge com uma nitidez inquieta, que se
confunde sobre o momento presente e real. Estou vazio e a definhar por dentro.
[ FRANÇAIS ]
Todos sabemos que defender a possibilidade de criar numa sociedade monolítica - em que a uniformização das
ofertas tanto na escala nacional ou internacional, levam a que tudo nos surja simplificado e pouco diferente - é
uma das tarefas mais importantes para o tempo que virá. A diversificação dos produtos está longe de ser o
equivalente a uma variedade de gostos. A concorrência numa lógica libertina de procura de um lucro máximo
num tempo e com custos mínimos, não pára de regredir e a concentração no aparelho produtivo e de difusão
continua. Existe actualmente uma poderosa censura imposta pelo dinheiro de quem investe. Os favorecimentos
descarados de um grupo detentor, arrasta consigo todos os abusos de posição que resultam do domínio exercido
nos circuitos de divulgação. Nunca o lucro teve associado a uma estética de curto prazo, como acontece
actualmente, uma ideia eminentemente empresarial que se manifesta dolosamente desleal em relação a todas as
formas de acção independentes. Esta nova prática monopolista vai ganhando uma posição preponderante no
universo das produções culturais. Este sistema precisa de montar uma estrutura que fundamente o sucesso
artístico e comercial, com a irrupção de novas estrelas mediáticas. O artista e o negócio surgem-nos assim numa
relação diferente de rentabilidade máxima onde o criador se aluga numa totalidade comercial, seguindo uma
lógica que é a negação estrita da cultura. Quando chegamos a este ponto de destruição em massa dos valores e
dos princípios, a troco de compensações incertas e irrisórias, percebemos que tudo isto faz parte de um enorme
discurso sobre uma ideia de neoliberalismo fixado por processos de doutrinação colectiva nas consciências do
chamado grande público. A cultura vive cada vez mais do sofrimento de umas tantas vítimas anónimas que
sucumbem diariamente, num falecimento desconhecido, contribuindo com o seu sacrifício existencial na sua
soberba realização. Gombrich dizia que quando "as condições ecológicas da arte" são destruídas, a arte não tarda
a morrer. Tudo está seriamente ameaçado enquanto vivermos nesta atmosfera de colapso eminente. A ansiedade
causada por este estado de existência favorece o aparecimento de estranhos mecanismos de destruição. Parece
que sentimos uma dispensa de seguir os mecanismos mínimos de vivência colectiva, abandonando ou
suspendendo o contrato social regular de convivência pacífica com o outro. Passámos a olharmo-nos
doentiamente segundo uma lógica de medo individualista que nos impele para práticas egocêntricas de
sobrevivência a todo o custo. Tudo vive sob a ameaça do que é comercial, pela dominação dos agentes que detêm
o poder económico ou pelos seus empregados servis, pelos críticos que servem este sistema, pelos artistas que se
vendem em time-sharing às várias organizações comerciais que os seduzem com sucesso e bem estar. A arte está a
ser transformada numa mercadoria e cada afluência a uma exposição, a um concerto, a um filme, o seu número
de vendas, as criticas publicadas ou as suas incidências mediáticas, passaram a ser uma espécie de plebiscito ao
grande público, certificando uma aparência de apreciação democrática para todo gosto. Quando falo sobre estas
coisas tenho a noção que me comporto de uma forma, a que facilmente se atribui o estado de quem exagera.
Serei mais uma clássica personagem a figurar no museu dos profetas da desgraça. Fico numa posição
extremamente difícil para estabelecer uma análise eficaz sobre este momento presente cheio de imensas
contradições e penosas degradações. Cultiva-se no meio da catástrofe um ar de modernidade progressista,
quando tudo se revela perigosamente retrógrado e duramente conservador. Estamos rodeados por uma retórica
insidiosa, invasora e banal, que se estrutura na utilização abusiva de fórmulas curandeiras contra o mal das
visões sociais, cujo valor encantatório vai recrutando adoradores, vendilhões, empregados, vigaristas, corruptos,
políticos, amanuenses da cultura e outros tantos doutrinadores e doutrinados. A descarga avassaladora da treta
mais ou menos verbal está situada no cume de uma hierarquia onde nos surge como figura suprema deste
desvario a imagem do "intelectual mediático". Este incidente de ordem cultural tem vindo a ser orquestrado,
como uma arte suprema do cinismo, que se revela na verdadeira face de toda a história da cultura ocidental,
agora rendida à magnificência do lucro e dando total cobertura à violência que lhe está subjacente. Estamos
perante um novo sistema de controlo sobre o que é pensamento e expressão.
Quando defendemos a nossa singularidade, estamos a defender os valores mais universais.


(1) Marshall Berman, Tudo o que é Sólido se Dissolve no Ar, Edições 70, Lisboa 1989, p. 154;
(2) Ibid, p. 145;
(3) Ibid, p. 162;
(4) Ibid, p. 333;
(5) James Slevin, Internet e Sociedade, Temas & Deabates, Lisboa, 2002, p. 107.