No princípio, sempre tiveram a noção que a sua música passava além dos limites circunspectos das ideias
preconcebidas e ficavam surpreendidos quando com esse facto, sem grande importância, sentiam que
aterrorizavam a segurança das velhas construções que glorificavam o sagrado como o centro de todas as coisas.
Não sei até que ponto as ameaças executadas nessas manobras, com o grau de desarranjo que a seguir causavam,
eram de facto autenticamente queridas. Já deixei porém de me preocupar com isso, porque hoje vale mais a
instabilidade e a confusão, causada pelos seus efeitos de apelo para a periferia, do que ter mais ou menos
certezas sobre as finalidades das suas intenções. Contento-me, portanto, em saber que por entre disfarces,
simulações e actos, mais ou menos distraídos, o seu som vai, sorrateira e manhosamente, escorregando por entre
as pessoas, penetrando pouco a pouco nos mais pequenos espaços públicos e privados, sempre à procura dessa
necessidade de revelação limite, que ponha um fim a estes acontecimentos.
Marcel Duchamp olhou para mim sob o toldo, que o próprio tinha construído na sua nova morada e disse-me:
- "Os happenings introduziram na arte um elemento que ninguém tinha colocado: o aborrecimento. Na pintura
não se pode representar o aborrecimento. Fazer uma coisa para aborrecer as pessoas que estão a ver, nunca tinha
pensado nisso! E é uma pena porque é uma bela ideia. No fundo, é a mesma ideia do silêncio de John Cage, em
música; ninguém tinha pensado nisso."(1)
A história do Jazz não é mais do que uma extensão da história de todas as músicas. A luta do homem contra o
silêncio e, pelos vistos contra todos os ataques destrutivos dos aborrecimentos, a dependência do tédio e a
alienação da monotonia. Este estado de insatisfação permanente salvou-o, pela forma como conseguiu sempre
arranjar o engenho suficiente para sair das difíceis situações de sentido único em que se viu apanhado. As
músicas não fazem outra coisa, que dar explicações sobre estes acontecimentos. A experiência e a memória
ensinam que, assim como as águas procuram o mar para a partir daí iniciar a mesma mecânica do seu próprio
renascer, pela mesma ordem de razões a cor procura sempre a luz. Atingi, assim, o meu limiar máximo de
impaciência no movimento de aproximação à cor, não no sentido de que, ao vê-la, estaria perante tudo o que veio
do nada mas, pelo contrário, a cor seria apenas o que, ainda há pouco, ali não estava visível. Para que tal
sucedesse bastou que aquele local tivesse sido invadido por uma fonte de luz fria, uma matéria tão impessoal,
que, nem sequer teve o tempo necessário e suficiente de fabricar calor. Mas se consegui ultrapassar o estado de
indiferença que me permitiu olhar o seu brilho sem grandes consequências para o funcionamento da minha
retina, nunca serei capaz, de, por outro lado, deixar de sentir o calor sensorial da cor apesar da imensa solidão
gelada que, logo cercou todos os que se esforçaram por vê-la.
Jack Kerouac passou por mim na ponte de Brooklyn. Andava a passear para arranjar apetite e disse-me:
- "Don Joseph é um espantoso cornetista que vagueia pela Village de bigodinho e braços pendurados segurando a
corneta, que estala quando ele toca suavemente, ou melhor murmura, é a maior e mais suave corneta desde Bix
ou mais. - Pára junto da máquina de discos automática do bar e acompanha a música a troco de uma cerveja. -
Parece um elegante actor de cinema. - É o grande superglamoroso Bobby Hackett secreto do mundo do jazz. E
aquele tipo Tony Fruscella que se senta de pernas cruzadas no tapete e toca Bach na sua trompeta, de ouvido, e
mais tarde à noite lá está ele a soprar com os rapazes numa sessão de jazz moderno. Ou George Jones que toca
grande tenor em jardins ao nascer do dia com Charlie Mariano, só por prazer, porque amam jazz, e uma vez no
cais ao nascer do dia tocaram uma sessão inteirinha enquanto o tipo batia com um pau na doca a marcar o
ritmo."(2)
Talvez, por causa disso, fui sentindo a presença invisível de uma espécie de desordem que me fez desviar as
atenções no momento crucial em que ainda era possível entender a música como única e indivisível. Nesta altura
reconheço que quis conscientemente desaproveitar todas as oportunidades de encontrar uma solução feliz, um
happy end, como convém a todos os grandes feitos que, logo após o seu registo, a história trata, como sempre, da
sua conservação. O final útil e necessário que proporcionasse a já conhecida e habitual conclusão razoável, um
exit! da centralidade profunda do buraco em que estava prisioneiro, sem possuir a menor pista sobre as razões do
que me prendia ali, nem tão pouco quem seriam eventualmente as pessoas que o fizeram. Passei por momentos
difíceis naquela estranha prisão onde o geometrismo das suas rectilíneas e agradáveis instalações não permitia,
sem causar enormes dores, a menor ideia oblíqua em relação ao sistema. À sua porta era bem visível um out door
onde se podia ler: "Esta é a nossa casa". Comecei a sentir que vivia agarrado à submissão do que se pode chamar
de - «o mais perfeito mundo daltónico dos sentimentos», "broken home"... Por ali não havia a mais pequena
hipótese de comunicar através da cor e o seu grau de pobreza psíquica era extremamente chocante.
Erik Satie e Thelonious Monk apareceram-me juntos. Falamos então de Picasso, sem uma escola cubista, de
Beethoven, sem o classicismo, e de Schonberg, sem o dodecafonismo. Satie avançou para mim e disse-me:
- "Notai que toda a minha música sou eu que a faço... Todos os bemóis (sobretudo), todos os sustenidos (mesmo
os duplos) são feitos totalmente (dos pés à cabeça, pois então!) por mim. Tudo isto é muito curioso e denota uma
grande força de carácter (franco e leal). Também me benzo... Sim. I ... I O músico é talvez o mais modesto dos
animais, mas é o mais orgulhoso disso. Foi ele que inventou a arte sublime de maltratar a poesia. Se alguém
descobrisse alguma coisa verdadeiramente nova, recomeçaria tudo."(3)
Entretanto aproxima-se Monk. Mostrava interesse em ir embora. Parecia que estava atrasado. Que mistério
ocuparia agora as suas mentes? Eles que foram artistas incompreendidos, em permanente estado de auto-exílio,
únicos no seu tempo e que agora andam a passear juntos.
Fui então aprendendo a agir segundo as mais elementares regras da vida clandestina com todos os refugiados e
apátridas que começaram, para admiração de muita gente, a invadir a Europa no começo deste estranho século
XX. (A partir da Primeira Guerra Mundial e num breve período de tempo, deixam o seu país de origem 1 500 000
Russos brancos, 700 000 Arménios, 500 000 Búlgaros, 1 000 000 de Gregos e centenas de milhar de Alemães,
Húngaros, e Romenos, com a consequente introdução, na ordem jurídica, do estatuto de desnaturalização ou
desnacionalização, aplicado em massa aos cidadãos).
Era importante sair dali apesar de muitos daqueles que estavam connosco não sentirem estranhamente essa
necessidade de fuga, nem se aperceberem da brutalidade das condições em que viviam, ou melhor, vegetavam
para sermos mais claros. Era também prioritário achar com rapidez, um retrato-robot dos nossos possíveis
cúmplices de evasão e acabá-lo depressa. Depois de estudadas algumas hipóteses e depois de muitas hesitações,
estava convencido que teria de ser obrigatoriamente alguém que soubesse utilizar a voz de uma maneira
habilidosa, num disfarce de múltiplas aparências e fisionomias e que teria também um cúmplice há muitos anos,
com muito boas mãos, um profundo conhecedor dos riscos de colocar os instrumentos de cordas, de sopro e as
percussões a produzir os mais enganadores cenários que de uma maneira mimética, simulava na perfeição o
ambiente das várias personagens vocais e sonoras que o conjunto ia modelando. Estava perante a mais ajustada
conjugação de artes e manhas que melhor podiam confundir, dissimular e desagravar a estratégia da nossa
saída. Percebi, também, que não me podia queixar, éramos todos prisioneiros das convenções de cada um. Talvez
porque pensávamos ser, ou tínhamos ousado estar superiormente convencidos, durante muito tempo, da idiota e
pretensiosa ideia de que fomos alguma vez o "centro do universo". Nesta altura, desconhecia como conseguir
redefinir continuamente a vida no limiar que articula e separa o que está dentro e o que está fora, uma luta entre
Eros (vida) e Thanatos (morte) que cercava de uma maneira reptilizante todos os que desejávamos iniciar a fuga.
Encontrei Charlie Mingus que continuava completamente absorvido a tocar piano. Fiquei, como devem
imaginar, um pouco baralhado, não porque eu tivesse algum problema ao vê-lo ali tão perto, sem parar de mexer
com as suas enormes mãos sobre o teclado, mas porque me pareceu ter adivinhado o que eu estava a pensar,
quando disse: - "Un dia me encontraba feliz tocando el piano. De pronto di con una melodia alegre... instantes
después encontré una disonancia que la hizo triste. Me di cuenta entonces que la pieza debía de constar de dos
partes. La historia sería la de un payaso que intenta gustar a su público - tal y como hacemos los músicos de jazz -
pero al que nadie quiere. (...) no me gusta que llamen jazz a mi música, no mi gusta esta palabra. Sabe qué
quiere decir en Nueva Orleans To jass to lady?: pues simplemente joder, joder sin más. Yo cuando jodo, más que
eso hago el amor." (4)
Somos uma espécie de gente emparedada, que vive no espaço intemporal e desocupado do "não-lugar", num
centro pesadamente denso em população, com um número já excessivamente elevado de máscaras por cidadão,
na superfície preguiçosa da apatia perante a liberdade, tantas vezes anunciada e outras tantas adiada,
imediatamente a seguir ao mais recente e pequeno golpe de esperteza saloia e mediática da altura. "Há meio
século que se fala de revolução da ciência e da técnica; outros grupos têm falado, com a mesma insistência, da
revolução do proletariado internacional. Estas duas revoluções representam para os ideólogos e seus crentes as
duas faces contraditórias, mas complementares, da mesma divindade: o Progresso. Deste ponto de vista, os
regressos ao passado e as ressureições históricas são impensáveis ou reprováveis.(...) Se houver uma palavra que
defina estes anos, não é «revolução», mas «revolta». Todavia, trata-se de «revolta» não apenas no sentido de
perturbação ou mudança violenta de uma condição para outra, mas igualmente no de um regresso às origens -
revolta como ressureição".(5) Ainda hoje carecem de saber como utilizar o tacto e a sensibilidade sem perder o
sentido primordial que os guiou durante tantos séculos. Muitos deles agem ainda segundo as leis da providência
divina. No meio de coisas cada vez mais inanimadas acreditam que elas, de facto, existem e são. Quando um dia
descobrirem o seu estado de logro desatento, vão dizer que por causas ainda desconhecidas perderam para
sempre os seus favores. Não sabem conviver entre uma simples linha em movimento que deve ser
permanentemente redesenhada, como o acto naturalmente repetido de vida na periferia. "Life and Dialogue"
passou a ser a minha grande esperança, porque a partir de todos os seus elementos comecei a pensar que era
possível construir o horizonte, que me faltava. Um elemento fundamental de orientação, mínimo para quem
viaja ou foge e que obrigatoriamente tem de sentir para não perder por completo os motivos do seu próprio
caminhar. Comecei, então, a empreender várias tentativas para encontrar as músicas e os seus autores que
fossem capazes de me retirar daquela espécie de escuridão paralisante de todas as vontades, que congelava os
movimentos, sedentarizava-se nas ideias e adormecia pela força, toda a imaginação, endereçando-a
autoritariamente na direcção do pesadelo. Pensei, então, mais uma vez na cor como uma das soluções que podia
fazer alterar esta situação, na medida em que ela está sempre associada a um estado de luz em permanência e
assim, ainda que de uma forma indirecta, podia pelo menos tentar sair da cegueira em que vivia quando a
conseguisse iluminar na sua totalidade. Ao não ser possível compreender, em separado, esta unidade que por
vezes assume estranhas metamorfoses cabalísticas, como por exemplo, na palavra "luzazul", fui obrigado a
admitir que a cor poderia ser uma espécie de salvo conduto, uma palavra-passe, o segredo que vai permitir o
acesso a uma passagem, a saída do interior daquilo em que estava enredado, desde sempre, na mais completa
incapacidade de assimilar uma imensa quantidade de estímulos que me rodeavam. É curioso como neste
momento iniciei a partir da cor, a pesquisa sobre qual seria a melhor direcção do meu olhar para que se fizesse
luz, quando afinal aprendemos, precisamente, o contrário. A luz arrastada pela força da cor vai iluminar um
caminho. Já não me interessa desenvolver muitas considerações e opiniões acerca daqueles que, primeiro
aprenderam e depois me ensinaram a temer os meus próprios caminhos, na obediência das regras de todos os
códigos mais ou menos respeitados. Nem tão pouco me apetece falar dos que ainda hoje querem continuar a ser
como foram - "no life, no saving".
Não é por acaso que me recordo perfeitamente do livro "A nossa necessidade de consolo é impossível de
satisfazer" e vi Bird à minha frente. Continuava completamente fora da realidade, de tal maneira que cheguei a
duvidar se de facto estaria mesmo ali. Companheiro a tempo inteiro da periferia como o símbolo da
marginalidade, cidadão da alquimia, das drogas e do sub-mundo dos alucinados, a sua aventura parece-me
fantástica, um contínuo "border-line". Penso que naquele momento teria dito o mesmo que "Lady Day", Billie
quando a propósito me contou:
- ..."nos tempos do Log Cabin as raparigas tentavam fazer troça de mim e chamavam-me «Lady» porque
achavam que eu era pedante por não querer ir à mesa dos clientes levantar o dinheiro. Mas o nome de Lady ficou
mesmo depois de todos terem esquecido de como tinha surgido. O Lester pegou nele e juntou-lhe o Day de
Holiday e chamavam-me «Lady Day».(6)
Desculpem mas acabei por não dizer talvez o mais importante, isto é, aquilo que "Lady Day" e certamente Bird
me revelariam depois. Apenas o seguinte: - "Os músicos negros americanos têm que lhes tirar o chapéu. O Charlie
Parker e as pessoas como ele e como eu nascemos com aquilo. E temos de nos exteriorizar de qualquer maneira.
Aqueles tipos não tinham aquilo dentro deles. Tiveram que trabalhar e estudar mais para conseguir chegar
àquele ponto." (7)
Como localizar aqueles que serão capazes de pôr a cor suficiente (ou purificar a escuridão) numa música, de
maneira a não se deixarem anular pelas insistentes pressões e anúncios ameaçadores? - Dos que não querem
afastar-se, dos preconceitos já socialmente contratados; dos que preferem a segurança do centro sagrado da
história; dos que acreditam que toda a sabedoria está guardada no automatismo memórias. Em vez disso, ter de
enfrentar a solidão do periférico, um território que não tem a confiança dos lugares artificialmente iluminados
ou sordidamente vigiados, não suficientemente protegido de riscos futuros e, onde não existe a segurança dos
condomínios fechados, a excelência do moderno campo de concentração reciclado, bem na moda, como convém
em final de qualquer século. Uma organização do luxo, desta vez construída para todos aqueles que preferem a
auto clausura, como um amável distanciamento, longe de contaminações, de más companhias e sem terem de
sentir por perto o cheiro da morte impura e mal enterrada. Fiquei, assim, com a ingrata missão de descobrir uma
cor musical que me liberte em definitivo das obrigações e dos deveres do centralismo e da sua tutela conformada
e uniformizante.
As tarefas e trabalhos empreendidos naquela descoberta constituem uma história sem importância que se passa
num lugar comum. O comum, adquire aqui a ideia de qualquer coisa que pode ter acontecido em qualquer
parte.
No princípio perderam-se dos seus lugares de origem e nunca mais foram o que foram. Não é que os possamos
considerar definitivamente estranhos, mas essa tribo donde vieram, uma espécie de ilhas sociais, foi sendo
transformada com o tempo em jangada flutuante. Arrastada por fortes correntes e ventos de feição, afastou-se
irremediavelmente dos seus pontos de partida com temíveis consequências psicológicas e culturais. Aparece,
aqui, pela primeira vez aquela miraculosa e salvadora empatia que torna os membros da mesma horda
invariavelmente transparentes uns para os outros. Este fenómeno vai-se sucessivamente alargando e crescendo
em partes mais ou menos iguais ao tamanho daquela pequena ilha, agora mais intensas e humanamente
luxuriantes. Começam a ficar repletas de pequenos e tímidos sons, barulhos e ruídos que se tornam, com o passar
dos dias cada vez mais familiares. Uma "soundscape", como refere o compositor canadiano Murray Schafer, a
característica de um grupo - uma paisagem sonora, ou "sonosfera", que atrai os seus membros para o interior de
uma esfera psico-acústica. Os indivíduos começam a existir num contínuo de espírito e de som, uma espécie de
colo-fantasma, em parte imaginário em parte real, que se manifesta como uma entidade protectora. Surge a
primeira construção de sons suavemente organizada entre os que são acusticamente perfeitos e imperfeitos,
transformados num espantoso mecanismo de comunicação nunca até aí conhecido e que rapidamente se torna
cada vez mais universal, porque já não depende de coisas tão triviais como o lugar ou data de nascimento, ou que
pelas suas próprias características, fosse possível em sentido inverso atribuir-lhe uma origem. Sabe-se, apenas,
que tinha acabado de ser dado ao mundo o Jazz, e que pela qualidade e número dos acontecimentos narrados
poderia ser também, uma outra música qualquer, que, como todas as outras, guarda dentro de si imensos
segredos impossíveis de serem ouvidos. Ainda hoje persiste a sua parte mais audível que leva consigo discípulos e
seguidores. Revela-se a todos aqueles que a conhecem numa força poderosa de atracção, assumindo-se soberana,
inesgotável e inevitavelmente eterna. Mistura-se intempestiva e descaradamente promíscua com todas as músicas
de ocasião. O seu ímpeto é o nosso ímpeto e na uniformidade do nosso dia a dia sentimos que vale a pena
deixarmo-nos arrastar por ele, numa espécie de contra corrente da vida.
Coltrane passou por mim, apressadamente, e disse-me: - Vou na minha segunda aventura e sinto-me seguro.
Repara que na exacta direcção do teu tema favorito, entre Armstrong, New Orleans e Miles, continua ainda a
existir tanta gente avidamente atenta aos seus afazeres que nunca irão perceber quem são os verdadeiros génios.
Compreendia que tinha acabado de sair da obscuridade do centro e, quando terminei esta pequena narração sem
importância, estava com toda a luz suficiente para perceber as cores que me rodeavam. Eram todas aquelas que
se fixavam na música que pela obrigação de viajar sem deixar rasto tivemos que ir fazendo passo a passo. Mais
tarde, curiosamente, não senti a menor sensação de cansaço. De repente como que ao dobrar de uma esquina
tinha perante mim o seu resultado. Vi então construída uma espécie de Torre de Babel musical - o Jazz.
Ouvi, logo, alguém dizer de uma das suas numerosas janelas: - A história da vossa música não remonta às suas
origens e acaba sempre por tratar das manifestações mais interesseiras, aquelas que servem a finalidade da
própria história. Mas existem muitas mais que têm, também, atrás de si um considerável passado, do qual nada
se sabe e ninguém quer ou está interessado em saber.
Fiquei com uma estranha sensação de desconfiança sobre o que havia sido dito e se pudesse voltar atrás não sei o
que teria acontecido, porque todos os que durante tanto tempo foram capazes de preparar uma saída daquela
enorme escuridão inicial, que poderia pôr em causa a sobrevivência da espécie, acabaram, por ser ultrajados
precisamente por aqueles que a própria música tinha feito existir. Ainda não conhecia o suficiente para perceber
que, essas afirmações iriam ser repetidamente proferidas no decorrer dos tempos pelos mais diversos tipos de
indivíduos. O certo é que a partir de agora vão suceder confrontos de vários géneros com causas e razões,
perfeitamente caóticas, ridículas e estúpidas. Vão também desencadear-se pretensas polémicas que servem
outras tantas necessidades de alimentar a afirmação egoísta e egocêntrica de uns tantos. A partir deste momento
tem origem um novo ciclo, porque aquilo que há pouco tempo parecia possuir um enorme sentido de unidade,
começa a adquirir múltiplas expressões, variedades, géneros e subgéneros. Mas o mais curioso é o facto de todas
estas coisas, em vez de serem a causa de uma forte união entre todos aqueles que empreenderam a sua fuga, e os
outros que se lhes foram juntando no seu decorrer, começaram pelo contrário a ser uma estranha fonte de
conflitos, divisões e vários excessos mais radicais. A imagem negativa destes tristes acontecimentos passou a ser
tão intensa que já nem sequer me lembro da forma como conseguimos fugir do centro, perigosamente pequeno
para conter tanta gente sem lhes causar graves danos na sua integridade. Estava então, naquele pequeno grupo,
que totalmente insatisfeito com a monotonia, o tédio, o aborrecimento, e a mediania quotidiana, resolveu
empreender aquela rota imaginária, sem a menor hipótese de retorno. Julguei durante muito tempo que a
periferia era a nossa terra prometida, o lugar onde estaríamos a salvo do terrível mecanismo nivelador dos
conceitos, tendo na mediania de todas as coisas, a sua deusa pagã, a qual, ainda hoje, exige permanentemente as
mais dolorosas amputações em seu sacrifício.
Neste momento parece que ouvia distintamente Ornette Coleman a acompanhar W. Burroughs nas anotações e
apontamentos da sua fase pesadamente delirante, de "The Naked Lunch". Que semelhança fantástica entre as
palavras e o saxofone alto! : "Flash...
Rápido e branco... gritos de insectos...
Acordei com um gosto a metal na boca.
Acordei dos mortos com o cheiro incolor da morte.
Parido por um macaco cinzento.
Dores agudas da amputação...
- Os rapazes dos táxis estão à espera de...
- disse Eduardo e morreu com excesso de dose em Madrid.
A carne tumescente estremece em convulsões rosa... orgasmos... movimento para acender um cigarro...
Estava de pé com um chapéu de palha estilo 1920 que alguém lhe oferecera... palavras sussurradas de mendigo
caíam como aves mortas na rua escura...
Mais não... mais não... No mas...
Um mar de martelos hidráulicos recortados no alvorecer de um púrpura acastanhado com o cheiro dos esgotos...
rostos de operários jovens vibrando distorcidos e envoltos pela luz das lanternas de carboneto... tubos
quebrados...
- Estão a reconstruir a cidade.
Lee fez um aceno de cabeça com uma expressão ausente... - Sim... sempre...
Se soubesse o verdadeiro caminho, indicar-lho-ia com muito gosto...
- Não é bom... No bueno...
... Volte sexta-feira.
Tânger, 1959" (8)
Voltei de novo ao centro, só que, desta vez, estava muito diferente daquele donde havia iniciado a minha
aventura/viagem/fuga. Não deixa de ser curioso como mesmo quando não é possível existir um retorno total ao
começo da nossa condição de seres incapazes de ir mais além dos limites impostos pela corrente de impulsos tão
frágeis e elementares arranja-se sempre, as mais inacreditáveis justificações de incompatibilidade, para logo a
seguir, ensaiarmos vários simulacros como imitações grotescas e ridículas em busca daquele tempo e espaço
perdido. Pode-se perguntar se de facto valeu a pena tanto esforço e porque é que quando se achou uma música
magistralmente livre e extraordinária como o jazz, proporcionando o enorme prazer de saborear as mais ricas
colorações, restos de viagens, de gentes e lugares donde partiram, como por todos os outros locais por onde
passaram, imediatamente a seguir senti que muitos haviam iniciado um ponto sem retorno na direcção
incorrecta, do que é mesquinho e acessório, inútil e desarmonioso, desconfiado e vazio. Voltei a ter uma estranha
sensação de perseguido bem diferente da vida clandestina, que outrora, por razões de sobrevivência fui
aprendendo. Começaram todos a falar uma linguagem que ninguém entendia a não ser o próprio e de imediato
passaram a agir e a comportarem-se como perfeitos desconhecidos. Estamos sempre a voltar ao princípio caótico
de todas as palavras.
(1) Marcel Duchamp, Engenheiro do tempo perdido, Assírio & Alvim,1990, p. 156.
(2) Jack Kerouac, Viajante Solitário, Ed. Minerva, 1975, p. 156.
(3) Erik Satie, Escritos em forma de grafonola, & etc, 1993, p. 103.
(4) Cuadernos de Jazz , Charles Mingus (1), n.º 39, 1997, pp. 37-38.
(5) Octavio Paz, Uma Terra, quatro ou cinco mundos, Presença, 1989, p. 80.
(6) William Dufty, Lady sings the Blues, biografia de Billie Holiday, Regra do Jogo, 1982, p. 63.
(7) Ibid, p. 241;
(8) William Burroughs, Refeição Nua,"The Naked Lunch", Livros do Brasil, 1959, p. 241.