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AUTOR: IVO MARTINS 
EDIÇÃO:  Website Jazz Portugal [www.jazzportugal.ua.pt]    DATA: Fevereiro de 2000 





1.

“A alegria de reconhecer é muito grande, todavia, a alegria de conhecer pela primeira vez aquilo com que tantas
vezes se sonhou não é o menos e a primeira, obviamente, depende da segunda”(1) Além de estar absolutamente de
acordo com esta conclusão, prefiro sentir, na música, a alegria daquilo com que tantas vezes sonhei do que me
limitar às tarefas de reconhecimento. A música é um elemento ideal para se tentar buscar precisamente esse lado,
que não se domina e que surge inexplicavelmente no encontro com o sonho, um espaço de grande alegria ou de
grande tristeza. Trata-se do confronto entre o interior e o exterior, que só se completa , totalmente, depois da
morte. Esta espécie de acerto final de contas uma compatibilidade última que fornece, como se disse, um
momento fugaz, mas suficientemente forte para apresentar tópicos relativos à direcção que se pode escolher em
relação às muitas experiências possíveis na descoberta da arte e no caso mais concreto do jazz.



2.

Quero situar o acto criativo de outrem, ou o nosso, conforme o movimento e o significado que nele se apreende - o
sentido da vida. “O sentido é atributo da vida, é a própria vida e por isso é a vida quem pode dar sentido à morte,
nunca vice-versa. A morte é um silêncio, um espaço em branco, que necessita de todo o restante âmbito
significativo para cobrar intelegibilidade e excelência”(2). Este encontro, exterior/interior ou duplamente
interior, é qualquer coisa de irrepetível, único nas suas manifestações. A música tem essa essencial qualidade,
aliás como toda a arte, de nos fornecer um sentido, uma ética portanto, ainda pura na sua essêncialidade e que
por isso não se deve confundir com o que veio a seguir - primeiro o estabelecimento de uma ordem depois o seu
desenvolvimento nas leis e numa moral. Quem cria, estabelece, sempre, na sua obra uma proposta de regra
fixadora de certos e determinados elementos que dela fazem intrinsecamente parte, mas a sua ambiguidade
salva-a in extemis , de ser tida como lei. “José Bergamim diz tão penetrantemente, O homem é livre quando se
põe de acordo com os deuses em vez de lhes obedecer ”(3). A ambiguidade permite a possibilidade da obra ser
sucessivamente recriada ou reinterpretada, através dos tempos, salvando-a da sua cristalização em norma. Esta
característica é um factor fundamental, para que a sua renovação aconteça em experiência e memória que são os
elementos constitutivos do mito.



3.

Interessa-me muito mais conhecer pela primeira vez aquilo com que tantas vezes sonhei ou apenas intui do que
permanecer fixado na rigidez dos princípios e das normas, que constróem uma das mais artificiosas prisões
inibitórias. Walter Benjamin deixou-nos na sua escrita imensos alertas e outros tantos avisos que reflectem os
perigos de todo o poder , estruturado a partir dessas premissas - leis, normas, regras, etc. - e quando ele consegue
penetrar ou influenciar a criação artística. Assim sendo convém não assumir o passado como uma coisa que se
fecha sobre si própria (logo adquirindo uma validade que se assemelha ao conceito de um poder soberano) e que
portanto retira-lhe essa extraordinária capacidade de se refazer, naturalmente e em permanência. É, desde logo
sintomático a forma como “O mesquinho substituto sintético pós-modernista para o revivalismo é a
«apropriação», que normalmente significa um artista de talento limitado misturando, sem visão, referências
irónicas às grandes obras do passado. (...) A cultura popular é um laboratório esplêndido para se estudar a
dinâmica artística do revivalismo”(4). Ele “significa o reconhecimento nascente de um elemento intemporal
numa obra ou estilo que parecia datado, confinado ou limitado a um período particular. Consequentemente, o
revivalismo é crucial para o processo de definição da grandeza na arte, uma responsabilidade negligenciada por
demasiadas sumidades académicas actuais”(5). Narrar o passado será neste contexto, o melhor procedimento,
colocando-o sempre em aberto em relação seu conteúdo. Curiosamente não tem sido, ou melhor, não parece ser
essa a forma através da qual se olham, analisam ou são admitidas as reedições de tantas obras musicais do Jazz
(vide as quantidades de caixas antológicas que contêm todas as gravações de determinados músicos, secretas e
não secretas, possíveis e impossíveis, numa espécie de um vale tudo comercialmente falando) que a tecnologia
actualmente permite ter acesso, nas melhores condições de qualidade e comodidade e, onde as razões por vezes
de ordem estritamente não artísticas aconselharam o acto da sua ressurreição. Julga-se que com esta
despudorada e agressiva estratégia de recuperação desenfreada do passado, revela-se uma imensa falta de
respeito por tudo aquilo que vem de novo a ser exposto sem que o seu autor manifeste o menor indício ou sinal de
vontade e que também pode indirectamente prejudicar numa concorrência desnecessária a visibilidade de todas
as excelentes realizações que actualmente o Jazz e os seus músicos continuam a arriscar e a esforçar-se em
produzir. Não é pois de estranhar que muitas das análises que presentemente aparecem nas diversas publicações
adquiram uma perspectiva e um tonalidade arqueológica, excessivamente retro, existindo quando comparadas
com as que têm por objecto as obras mais recentes. Detectando-se com facilidade e de uma forma geral um défice
em relação às situações que estão a acontecer no presente. Deve-se ter em consideração na análise deste tipo de
fenómenos dois importantes aspectos que ajudam a denunciar estes simulacros de exumações, completamente
arbitrários e excessivos, quando se verifica o ressurgimento instantâneo de numerosos registos musicais,
oriundos das mais diversas origens, por vezes com um estatuto, extremamente, duvidoso - legais, ilegais, piratas,
privadas, pessoais - adquirindo, por isso, uma imagem que se aproxima a uma actividade com qualquer coisa de
macabro, induzindo um incómodo sentimento de profanação e uma prática obscura de autêntico tráfico
contrabandista.



4.

Quero centrar a maior atenção no acto (neste caso de fazer música) e na sua potência. “Em Aristóteles, de facto,
se, por um lado, a potência precede o acto e o condiciona, por outro lado parece estar essencialmente
subordinada a ele”. (...)“Aristóteles tem o cuidado de insistir na existência autónoma da potência, no facto para
ele evidente de que o tocador de cítara mantêm intacta a sua potência de tocar mesmo quando não toca , e o
arquitecto mantêm a sua potência de construir mesmo quando não constrói”. Por isso, para que a potência não
desapareça sempre imediatamente no acto mas tenha consistência própria, é preciso também que ela não possa
passar ao acto, que seja constitutivamente potência de não fazer (fazer ou ser) , ou, diz Aristóteles, que ela seja
também impotência (adynamia)”. Mas como pensar, nesta perspectiva, a passagem ao acto? Se toda a potência
(de ser ou fazer) de tocar é também, originariamente, potência de não (ser ou fazer) tocar, como será possível a
realização de um acto? “A resposta está contida numa definição que constitui uma das provas mais agudas do seu
génio filosófico e que, como tal, foi muitas vezes mal compreendida: «É potente uma coisa para a qual, na
passagem ao acto para a qual se diz que ela tem a potência, nada será que não possa também não ser» ( Met.
1047 a, 24-26)”.(6). Donde resulta que todos os registos publicados dos actos passados nada resolvem
relativamente ao seu outro lado do não fazer. Somos obrigados a admitir que a obra gravada é, neste contexto,
sempre um objecto mínimo de análise, se colocada em confronto com tudo o que foi tocado, improvisado por um
músico de jazz no decorrer da sua actividade e porque não criado durante toda a sua vida. “E soberano é o acto
que se realiza suprimindo simplesmente a sua potência de não ser , deixando-se ser, dando-se a si próprio” (7).



5.

Quando com insistência se fixam as análises em determinada época, tornando-a numa parte delimitada no
tempo, num período cronologicamente organizado, segundo preceitos que a história soube, de uma maneira, às
vezes, tristemente ridícula, ser capaz de assumir e transformar em coisa certa e fiável. “Na verdade, os fenómenos
da história, tal como se repetem sempre, não têm causas racionais. Dizer, como geralmente se faz, que são
causados pela natureza humana equivale a um lugar-comum”. “Ensinaram-nos a respeitar certas personagens
que agiram de modo tão absurdo, e até a considerá-las grandeshomens. Estamos habituados a submeter-nos à
sabedoria política dos nossos dirigentes e todos estes fenómenos nos são de tal modo familiares que a maior parte
de nós não repara de modo nenhum quanto o comportamento das massas humanas, no decurso da história, é
estúpido, repugnante e indesejável”(8). Pode-se acrescentar em abono das conclusões referidas que ”Articular
historicamente o passado não significa conhecê-lo tal como ele foi efectivamente ”.(9) Fica-se desde logo preso
aos estímulos que dele são irradiados, como coisa fiável e certa, perdendo-se outros pontos de reflexão que terão
elementos muito mais úteis no processo de compreensão e apresentam potencialidades complementares e
criativas interessantes. Como disse Hegel, “o que a experiência e a história nos ensinam é que nem o povo nem os
governos aprenderam algum dia o que quer que fosse com a história ou agiram segundo os, princípios deduzidos
da história”.(10) Será que as pessoas estão conscientes das limitações desse olhar histórico apesar do seu
horizonte parecer aparentemente inamovível? Tenho as minhas dúvidas e começam-me a partir daqui a surgir
com maior clareza os mais primitivos indícios de falta de liberdade, muito principalmente liberdade de pensar,
que pela sua insistente e contínua repetição se transformam em acto banal e carente de significado, adquirindo
todas características que o tornam susceptível de se afirmar como parte integrante da (de mais uma) história. O
narrador é por excelência da sua função o cronista da história . ”O primado da informação contribuiu, nos
nossos dias, decisivamente para que a arte de narrar se tenha tornado rara”.(11) O narrador já não é mais o
cronista da história, e de agora em diante a história ganhou definitivamente o seu imprescindível e actual
estatuto de nada explicar (lembro a propósito a falta cada vez mais notada no nosso quotidiano dos elementos
constitutivos do mito - experiência e memória) para tantas pessoas que se limitam apenas ou simplesmente a
acreditar em acreditar .



6.

Gostava de ir a outras questões que, estão relacionadas com estas que tenho explorado. É interessante reflectir
também sobre o actual significado do acto de aconselhar que pode e deve também, representar uma importante
troca de experiências, sempre útil no contexto de qualquer actividade empreendedora, embora a sua eficiente
aplicação dependa muito da credibilidade de quem aconselha. “O interesse prático e o conselho sapiencial fazem
parte do carácter essencialmente esperançoso da narração”.(...) “ Naturalmente a capacidade de dar conselhos
depende da validade da própria experiência do narrador ou da sua acrisolada fidelidade à memória que conserva
e que transmite. Se já ninguém confia nas suas experiências e o fatigado cepticismo abala os fundamentos da
memória, o conselho converte-se em burla petulante ou na chave do desespero”.(12) Cito mais uma vez Walter
Benjamin, “ «O conselho, entretecido na entretela da vida, é sabedoria. A arte de narrar aproxima-se do seu fim,
porque se está aproximando a extinção do lado épico da verdade, a sabedoria». O outro lado da verdade é a
ciência, que não aconselha, mas legisla e que contribuiu para apagar o enérgico traço moral que guardava a
experiência vivida na lição do conto. Da sabedoria conquistada passa-se à informação adquirida ”.(13) Fico com
a clara sensação que no momento presente, o que tem vindo a ser considerado como actividade crítica, está muito
longe de alcançar a validade ética e humanizante do conselho. Está-se perante actos mais ou menos mercantis,
onde comércio e a indústria quase sempre associados a interesses empresariais são neste caso uma paródia. A
obra de arte depois de ter perdido a sua aura, com as suas sucessivas profanações transforma-se cada vez mais
em objecto de luxo, sujeito às estratégias de venda como um produto qualquer submetendo-se a todas as práticas
que nada mais pretendem do que incrementar o seu consumo. A crítica com a maior ou menor cumplicidade dos
sujeitos envolvidos cumpre o seu pobre papel terrorista. Aparece como necessidade de estancar essa hemorragia
destruidora a importância da atitude de procura, no que ela pode transmitir de actuante afirmando-se
dimetralmente oposta ao sentido de uma postura meramente expectante do sujeito quando em confronto com o
que lhe é, pura e simplesmente fornecido. Quando tudo passou a ser colocado com a mais sofisticada habilidade
à sua disposição, pronto a ser o mais ociosamente fruído, abandona-se a grandeza ontológica da procura para
passar ao acto menor e pobre do simples reconhecimento, terminando-se na completa paralisia daquilo que nos é
servido única e exclusivamente para ser objecto de consumo.

Talvez fosse interessante avançar sobre algumas ideias possuidoras de uma outra evidência que penso ser
possível tornar mais nítida nas suas numerosas tomadas de vista. Voltamos à necessidade de assegurar um
espaço totalmente livre à memória e à experiência tendo em consideração que toda a verdadeira narração, como
uma forma de verdade sendo objectiva,é, paradoxalmente, sempre ambígua. Umberto Eco no seu livro “Obra
Aberta”, estende essa ambiguidade à totalidade da construção artística , que se pode manifestar no facto de, por
exemplo, uma estrutura musical já não determinar necessariamente a estrutura seguinte, isto é, já não existe um
centro tonal que permita inferir os movimentos seguintes do discurso, passando a existir no plano geral uma crise
do princípio de causalidade. “Num contexto cultural em que a lógica bivalente (o aut aut clássico entre
verdadeiro e falso , entre um dado e o seu contraditório ) já não é o único instrumento possível de conhecimento,
mas aparecem as lógicas polivalentes, que dão lugar, por exemplo, ao indeterminado como resultado válido da
operação cognoscitiva, neste contexto de ideias eis que se apresenta uma poética da obra de arte desprovida de
resultado necessário e previsível, em que a liberdade do intérprete actua como elemento daquela
descontinuidade que a física contemporânea reconheceu, não como motivo de desorientação, mas como aspecto
inseparável de toda a verificação científica e como comportamento observável e irrefutável do mundo
subatómico”. (14) Surgem-nos, então, conceitos de elevado conteúdo provocativo, o acaso, o indeterminado, o
improvável, o ambíguo, o plurivalente... que indicam que existe um processo de ruptura em relação a uma ordem
tradicional que o homem do ocidente julgava imutável e que se identificava com a estrutura objectiva de um
mundo. O convencional é apreciado acriticamente e o que é verdadeiramente novo é criticado com aversão ,
como refere Walter Benjamin, que, acrescenta agora ainda mais qualquer coisa na medida em que se sente que
ali está implícito uma diferença entre o acto de reconhecer e o acto de procurar . Ao contrário do acto de
reconhecer, procurar possui na sua essência um movimento incessante de reformulação de uma dinâmica muito
própria, a qual requer do seu protagonista muito mais do que uma assimilação simplista e acrítica. Simples, no
primitivismo e na ingenuidade, em que são utilizados os sentidos e acrítica, no conformismo, na heterodirecção,
no gregarismo, e na massificação que são, precisamente, a consequência de um processo aquisitivo imóvel e
repleto de elementos standards de compreensão como se fosse uma linha de montagem automática e
programada. A procura revela-se neste contexto uma riquíssima manifestação de inúmeros estímulos a partir dos
quais é possível reconstituir sucessivas paisagens utilizando os mesmos olhares. Mas destaca-se pela sua
profunda grandeza entre os vários sentimentos combinatórios possíveis aquilo que se pode chamar de estado de
desamparo, que só pelo facto de ser socialmente julgado, como sinónimo ou sintoma de fraqueza é por isso
mesmo rejeitado e dissimulado nas formas mais ridículas que aparecem associadas a um determinado conceito
sexista possuindo desde logo uma importância vital quando se pretende achar um procedimento expedito sobre o
que é a potência e o acto de procurar. O estado de desamparo que se apresenta como um dos seus elementos mais
clarificadores revela-se que na procura tem de haver, sempre, um trabalho de luto, na medida que ela provoca
permanentes sensações de perda e de incapacidade, na presença de uma realidade totalmente inapreensível, e
com a qual temos a obrigatoriedade de nos confrontar. Sou tentado a citar as palavras de Goethe: “A maior
felicidade do ser pensante consiste em ter explorado o que é explorável e em venerar o inexplorável”.



7.

Outro modo de abordar a obra de arte, manifesta-se pela constatação de que existe um outro lado através do
qual podem passar muitas das formas de ela se situar junto dos seus numerosos destinatários. A sua afirmação
pode realizar-se no meio de uma complexa rede de relações de poder. Por razões de fácil manuseamento destes
sempre difíceis conceitos quero referir que também é razoável analisar e ter em consideração os seus efeitos
exteriores. Trata-se do lado exterior que se reflecte nas várias tarefas que foram sucessivamente organizadas à
sua volta. O poder de convencer, de persuadir, de elaborar opiniões permite nesse sentido formar também uma
verdade. Hannah Arendt chama a esta verdade assim constituída de “verdade factual” . Ela é muito diferente,
pelas fragilidades que apresenta e pelos elementos que a constituem, da verdade filosófica. Passando a explicar
as suas diferenças temos desde logo que como “a verdade filosófica diz respeito ao homem na sua singularidade,
ela não é política por natureza”. (15) “ Assim, na Declaração da Independência , Jefferson afirma que «certas
verdades são evidentes por si» porque desejava colocar fora de litígio e fora de debate a unanimidade
fundamental dos homens da revolução; tal como os axiomas matemáticos, deveriam exprimir «crenças dos
homens» que «não dependem da sua vontade, mas seguem involuntariamente a evidência proposta aos seus
espíritos». Mas ao dizer « consideramos essas verdades evidentes» reconhecia, sem se dar conta disso, que a
afirmação «todos os homens nascem iguais» não é evidente mas exige o acordo e o assentimento - que a
igualdade, a ter um significado político, é um assunto de opinião, e não de «verdade»”.(16) “Hoje quando quase
nenhuma afirmação filosófica, por mais audaciosa que seja, será tomada suficientemente a sério para colocar em
perigo a vida do filósofo, desapareceu a própria e rara oportunidade de ver uma verdade filosófica politicamente
verificada”.(17) Neste sentido a opinião (suportada pela verdade factual ) vale o que vale. “Não apenas as
afirmações factuais não contêm princípios a partir dos quais os homens possam agir tornando-os assim
manifestos no mundo, mas também o seu próprio conteúdo recusa-se a esse género de verificação. Aquele que diz
a verdade de facto, na improvável eventualidade de querer arriscar vida por um facto particular, cometeria uma
espécie de erro”. Esse equívoco tornado acontecimento possuía uma carga de tal modo cómica e
simultaneamente trágica que seríamos obrigados a achar a sua explicação no ridículo, de encontrarmos uma
tamanha desproporção entre o valor significativo do acto e o seu resultado final - a morte do sujeito. A opinião
surge, actualmente, associada a um processo de comunicação saturado de informações e muito contaminado de
alterabilidade, tem, assim, uma esperança de vida extremamente curta, porque para além das suas qualidades
dependerem do saber e da boa fé pessoal daquele que a dá, cuja credibilidade é garantida pela sua
imparcialidade, integridade e independência, o próprio meio utilizado no processo de comunicar está em crise.
Cito mais uma vez Hannah Arendt, quando afirma:” Enquanto o mentiroso é um homem de acção, o que diz a
verdade, quer diga a verdade racional ou a científica, nunca o é”. O poder de convencer e persuadir os outros será
pois, um outro caminho, se puder ser considerado um caminho. Em Hobbes, por exemplo encontramos um
conflito entre duas faculdades contrárias, «o raciocínio sólido» e o «eloquência poderosa», sendo a primeira
construída nos princípios da verdade, e a outra sobre as opiniões e as paixões e os interesses humanos que são
diferentes e variáveis . Para muitos, ainda vai sendo uma escolha de certo alcance, mas com algum tempo
passado apenas encontramos os vestígios dos objectos efémeros, vazios e insuportáveis durante algum tempo,
sem que não se verifique a necessidade da sua rápida substituição. O princípio da permanente remoção dos seus
estímulos, como a essência de um mecanismo de sobrevivência, destruindo-se para se auto-regenerar. A música
olhada pelo seu exterior será a representação dessa metáfora “ a serpente que se alimenta do seu próprio corpo.
Compreende-se que é sem dúvida, mais acessível reconhecê-la do que senti-la, uma vez que esse sentir passa por
ser também um gerador de incapacidades, dúvidas e angústias que nunca serão percebidos sem um esforço
rigoroso e sério. Não se controlam porque se desconhecem as suas origens, essa actividade exploratória exige
uma atitude despretensiosa e liberta de preconceitos . O poder como modo de agir sobre o exterior e assente na
violência das leis é bem mais simples de suportar do que o medo, este será terrivelmente penoso de aguentar
porque vive intimamente associado a um trabalho de luto, uma procura que só é realizável através de um
profundo e prolongado trabalho interior (de auto-controle, que está magistralmente explicado, no livro de Eugen
Herrigel, “Zen e a arte do tiro com arco”, Assírio & Alvim,1997). Por isso, é que teremos de admitir, antes de mais
qualquer coisa, que como “Eminentes entre os modos essenciais do dizer-a-verdade (...) são a solidão do filósofo,
o isolamento do sábio e do artista, a imparcialidade do historiador e do juiz, e a independência do descobridor de
facto, da testemunha e do repórter”.(18) Quando nos situamos numa imensa superfície em constante mutação (o
Jazz) que se sente em feixes de percepções, cuja a origem dificilmente poderemos exprimir cabalmente e que
para a localizar e conhecer teremos de possuir uma sabedoria da sobrevivência - o conseguir viver com recursos e
meios escassos, somos imediatamente obrigados a perceber a imensa quantidade de variáveis objectivas e
subjectivas que entre si interagem permitindo as mais extraordinárias associações e neste sentido múltiplos e
complexos resultados. “O homem contém em si mesmo um parceiro de que não pode libertar-se, o seu interesse é
o de não viver em companhia de um assassino ou de um mentiroso”, dizia a propósito Hannah Arendt. “Ninguém
se recusa a reconhecer que as tecnologias de comunicação implicam uma imaterialidade crescente das relações
com os diversos mundos. Esta desrealização da permutação humana não é apenas uma ideia de ocasião, de
moda; ela produz-se com a multiplicação das redes e canais, a rapidez de circulação das informações, a
proliferação das imagens televisivas... Tratar-se-á de uma sociedade do vazio?(...) Uma realidade estilhaçada,
fragmentária, uma realidade que não logramos apreender, já que é feita de todos os subterfúgios da
comunicação. Impossível iludirmo-nos com uma «outra» realidade que nos aparece mascarada! Uma tal
abstracção do mundo não impede de viver as emoções, de existir, de ter paixões, uma vez que os distribuidores de
sentido se mostram muito formais, não obstante o seu poder de se insinuar nos hábitos quotidianos de pensar.
Conservam-se tão fictícios como as ideologias, com a falsa aparência de uma liberdade de expressão que
permitirá se acredite sempre no regresso do livre-arbítrio. (...) As tecnologias da comunicação fizeram esboroar
as clássicas relações entre o sujeito e o objecto”. (19)



8.

O deserto, o mar foram durante muito tempo locais sem referências e que por isso acabaram por ser mitificados
como lugares inumanos. A exterioridade é um lado que contem outras facilidades permitindo que os múltiplos
estímulos que daí emanam vão fornecendo condições de reconhecimento e auto-reconhecimento essenciais a um
sentimento de segurança e confiança que são fundamentais no enfrentar da vivência quotidiana. “A principal
definição de «confiança» no Oxford English Dictionarydescreve-a como « segurança ou credibilidade numa
qualquer qualidade ou atributo de uma pessoa ou coisa, ou na verdade de uma afirmação». (...) Ao mesmo
tempo que reconhece que a segurança e a confiança se encontram estreitamente ligadas. (...) numa situação de
segurança, uma pessoa reage ao desapontamento culpando os outros; numa situação de confiança deve arcar
parcialmente com culpa e pode arrepender-se de ter depositado confiança em alguém ou em alguma coisa”. (20)
Não deixa de ser interessante verificar como o meio onde vamos construindo as nossas relações assumem cada
vez mais a ausência de um lugar vazio ou noutras situações a presença excessiva e repetitivamente homogénea de
um lugar não - lugar . Vislumbra-se, então, a primeira necessidade de se achar uma identificação no meio dos
outros, para que depois se possa começar o tempo da integração. Através da construção da identidade. O
convencional como aquilo que está repleto de referências, torna-se neste sentido um poderoso mecanismo de
atracção, para aí se confirmarem, a nossa normalidade nos ritos socialmente aceites, ao representar tudo o que
está devidamente explicado, normalizado e regulamentado. Mas do que, de facto, se trata é saber como ser entre
aquilo que é novo acompanhado de todos os seus riscos, sempre diferentes e sempre insuficientes para explicar
tudo. O saber pode ser entendido como uma qualquer coisa que se perde, sempre, no momento imediatamente a
seguir, perante a totalidade do saber. O difícil é, de facto, aguentar as vagas desse sentimento de perda
permanente, de maneira que perante essa verificação, consigamos ainda ser capazes de ter vontade de apreender
no dia seguinte. Vivemos rodeados de tantas, insuficientes e frágeis, aproximações do que é actualmente tido
como arte. Oapagamento da personalidade , “O indivíduo, paradoxalmente, deve-se negar permanentemente se
pretende ser um pouco considerado nesta sociedade”. (21) O que significa ser, no presente, o divulgador, o
crítico, o promotor, o produtor, o empresário, de um produto que é, também, comercial e no qual estão
envolvidos interesses que nada têm haver do Jazz como arte? Haverá ainda condições para manter devidamente
separadas e estanques cada uma das funções enunciadas? Não existirão suficientes indícios para concluir que
vão sendo instaladas no terreno informe da arte e do Jazz, em particular curiosas cumplicidades e pacatas
promiscuidades entre aquelas actividades?
9.

Volto a Walter Benjamin. “Mesmo na reprodução mais perfeita falta uma coisa : o aqui e agora da obra de arte -
a sua existência única no lugar em que se encontra ”. É, todavia, nessa existência única, e apenas aí, que se
cumpre a história à qual, no decurso da sua existência ela esteve submetida. O aqui e agora do original constitui
o conceito de uma autenticidade”.(22) Estas questões poderão ser mais um dos grandes problemas que envolvem
o Jazz como a música improvisada, precisamente, porque se prendem com o valor das suas formas de
autenticidade. Os registos existentes representam uma ínfima parte de um espólio que se perdeu
irremediavelmente para sempre e os suportes recuperados e escolhidos pelos avanços das tecnologias não podem
cumprir cabalmente a sua missão histórica. Além disso, o número de publicações que anualmente temos acesso
sofre, na maior parte dos casos, de uma antecipada formalidade, que se resume nas inevitáveis influências do
acto de se gravar que lhe retira ainda mais o seu sentido. O Jazz tem como nenhuma outra música ou outra arte
essa terrível falha, a da improvisação, que na sua plataforma histórica, é mais ou menos equivalente a um
crónico lapso de memória, que a não existir a ajudaria a resolver-se como tal. “Com os diversos métodos de
reprodução técnica da obra de arte, a sua possibilidade de exposição aumentou de forma tão poderosa que o
desvio quantitativo entre ambos os seus pólos tal como inicialmente existiam, se traduz numa alteração
qualitativa da natureza. Nos primórdios, a obra de arte, devido ao seu peso absoluto que assentava sobre o seu
valor de culto, transformou-se, principalmente, num instrumento da magia que só mais tarde foi, reconhecido
como obra de arte. Da mesma forma, actualmente, a obra de arte devido ao seu peso absoluto que assenta sobre
o seu valor de exposição, passou a ser uma composição com funções totalmente novas, das que se destaca a que
nos é mais familiar, a artística, e que posteriormente, talvez venha a ser reconhecida como acidental.”(23) Pensa-
se que podemos aplicar algumas das questões tratadas, anteriormente, ao Jazz, quando começamos por olhar os
seus princípios. O seu valor de culto assentava num instrumento de magia proveniente da suas origens e do
desfasamento existente entre as raízes culturais dos negros, primeiro, num regime esclavagista e depois numa
sociedade racista. Se esse valor de culto inicial se transforma em obra de arte, o problema do Jazz ser uma
música improvisada coloca problemas redobrados relativamente à sua reprodutibilidade no espaço e no tempo.
Brecht dizia que quando a obra de arte é transformada em mercadoria, teremos de abandonar esse conceito com
toda a prudência se não quisermos sermos nós próprios a liquidar essa função. Ela terá de passar essa fase “não
se trata de um desvio facultativo do caminho certo, pois o que aqui lhe acontece é uma modificação radical, o
apagar do seu passado, de forma tal que se o antigo conceito fosse recuperado (...) não evocaria qualquer
recordação da coisa que, no passado, designaria”.(24) Queria, com toda brevidade, introduzir aqui uma palavra
sobre o músico, citando Eisler: « Também na evolução da música, tanto na produção como na reprodução, temos
que aprender a reconhecer um processo de racionalização que se torna cada vez mais forte... o disco, o filme
sonoro, as máquinas de música, tanto na produção como na reprodução da música, podem vender óptimas peças
de música... como mercadoria de conserva “(24). Estas questões levantam uma nova necessidade de situar a
música por forma a eliminar os antagonismos entre executante e ouvinte e entre técnica e conteúdos “Foi, desde
sempre, uma das mais importantes tarefas da arte criar uma procura para cujo a satisfação plena ainda não
chegou a hora “. “A obra de arte” diz André Breton, “só tem valor na medida em que vibrem nela os reflexos do
futuro.”(25) E acrescento, ”Toda a criação pioneira de procura, fundamentalmente nova, ultrapassa o seu
próprio objectivo. Quando uma obra tem como principal exigência provocar escândalo público, que dizer então
dos limites da criatividade?” Uma vez que, assim sendo, se transformou numa atitude contrária, ao que é tido
como maioritariamente e convencionalmente aceite como normal na arte, e negou para sempre o lugar donde
tinha partido. “Quando se lida com os sentidos “elevados” a visão e a audição, costumamos ter atitudes típicas de
produtores, não de consumidores. Contentamo-nos perfeitamente em usar o nariz por puro divertimento, mas
olhamos e ouvimos para daí retirar proveito. A maior parte das utilizações da visão e da audição na vida urbana
são funcionais. Até a audição recreativa pende para um fim funcional - vamos a um concerto para relaxar, para
dizermos a nós próprios e aos outros que esta é a altura parar e ouvir. Muitos vão aos concertos tal como
praticam desportos, como um dever (mesmo se não estiverem a fazê-lo profissionalmente).” Citação do livro de
Jacques Attali - Noise: The Political Economy of Music, na pele da cultura de Derrick de Kerckhove. Mas dirão,
que existem pessoas capazes de repudiar liminarmente, qualquer tipo de sensação de escândalo mesmo quando
ouvem musica. Certamente que não se contesta esse direito, mas isso em nada adianta. Quantas musicas foram
incompreendidas no seu tempo? Quantas obras adquiriram importância muitos anos depois dos seus autores
terem desaparecido? Quantos insultos? Quantas injustiças? Quantos desacordos? Nada mudou o sentido da
obra, nada diminuiu o seu significado e importância.



10.

Mas se as pessoas, se dão habitualmente muito mal com aquilo que lhes escapa à sua capacidade de arriscar, no
terreno não conhecido, e expor-se às angústias e às inseguranças daí decorrentes, tudo bem. Aqui surge “uma
velha queixa de que as massas procuram diversão mas que a arte exige recolhimento por parte do observador.”
Trata-se de um lugar comum. Este será um examinador distraído e também por isso rejeita o valor de culto,
sendo um sintoma das mais profundas alterações na sua capacidade critica. Existem ruídos a mais para que se
realize uma comunicação sem perdas de percurso e por isso também irreparáveis num mundo onde a
banalização do dia a dia impera com a maior solenidade. Aldous Huxley escreve: “ Os progressos técnicos...
conduziram à vulgaridade... a reprodutibilidade técnica e a rotativa possibilitaram uma policópia de escritos
imagens (e sons). A escolarização, em geral, e os ordenados relativamente altos, criaram um grande público que
sabe ler e pode adquirir material escrito ou ilustrado (e gravado). Para o disponibilizar criou-se um indústria
significativa. Mas o dom da arte é algo de raro; daí resulta... que, em cada momento e lugar, a maior parte da
produção artística tenha sido de qualidade inferior. Mas hoje a percentagem dos resíduos da produção artística
global é maior do que jamais... A prosperidade, o gramofone,e a rádio criaram uma audiência de ouvintes cujo
consumo cresceu desproporcionalmente ao respectivo crescimento demográfico e, por conseguinte, ao
crescimento normal em músicos de talento. Assim permanecerá enquanto as pessoas continuarem a consumir em
excesso material de leitura, ilustrado e de audição.



11.

Discutir no presente o Jazz pela óptica do ser ou não ser revela-se totalmente a contrário, contra os elementos
fundamentais que ajudam a compreender o fenómeno artístico. Hoje quando se manifestam todas as formas de
inquietação perante o que nos é dado, imposto em nome de um conjunto de opiniões mais ou menos consensuais
e maioritárias - bastará para o efeito olhar à nossa volta e sabemos do que se trata - será manifestar no mínimo
uma forma de inconformismo, de resistência, de rebelião, de liberdade, muito principalmente liberdade de
pensar. Já não se encontram razões para discutir o que é Jazz, estas são autênticas perdas de esperança perante a
sua memória e as experiências que novos músicos empreendem actualmente explorações do seu talento com a
maior das suas paixões. Este tipo de análises redutoras por dentro e por fora levam sempre ao nada. No nada
como grau zero de toda a construção criativa (ou sua tentativa) impede-se, sempre de crescer qualquer coisa. No
território do nada é fácil estabelecer leis, basta ter poder (por exemplo, a lei do mais forte) mas ficamos centrados
na construção de mecanismos para o seu controle e aplicação deixando ao abandono a missão da actividade
criativa. Como já se disse o Jazz vive dessa manifesta capacidade de constantemente renovar-se, pelo que
necessita de espaço livre por forma a cumprir o seu destino. “Ouvir mais é saber como encontrar o som por detrás
do som, para lá do frenesi da cidade e para lá da cacofonia dos media . Ouvir mais é aprender com David Hykes e
o Harmonic Choir que, sim, durante séculos obliterámos os harmónicos dos sons que suportam o significado, os
únicos que sabemos ouvir. Durante séculos não conseguimos ouvir as divinas subtilezas das ressonâncias e a
combinação de harmonias no meio ambiente. John Cage disse que o silêncio é a soma de todos os sons do meio
ambiente. Poderia também Ter dito que o silêncio está vivo. Sentir mais é o mais importante. Paracelso disse que
a orelha não é uma extensão da pele, mas que a pele é de facto uma extensão da orelha. É evidente que, depois de
aprendermos a ler e escrever, fechamos dentro da nossa pele os silenciosos conteúdos da nossa mente.
Aprendemos a usar a pele como um dispositivo de exclusão. Ganhámos terror ao toque, ao contacto corporal, aos
corpos das outras pessoas e ao nosso, mais do que qualquer outro. Desse modo a pele só pode doer. Precisa da
protecção de camadas de roupa. O toque das outras pessoas só pode magoar. A nossa privacidade exige a
protecção da culpa”. (27)



12.

Pode-se pensar que este estado de coisas aproveitaria a alguém. E voltamos a dizer que existem imensas maiorias
que olham o mundo. Depois claro que temos, sempre, as desculpas, dos erros do passado, a destruição e a
substituição dos seus mitos; tudo se perpetua no mesmo, continuando a ser o mesmo. Voltando a Bill Evans e à
sua obra, este músico (como todos os músicos) tem que tocar e certamente tocou muitas vezes melhor do que
aquilo que se ouve nos seus discos. Os registos agora publicados (várias versões do mesmo tema, takes, etc.)
permitem a sua reprodutibilidade, mas também contribuem para banalizar uma obra, pela insistência
possibilidade da sua constante repetição nos mais diversos contextos muitos deles absolutamente estranhos ás
suas finalidades primordiais. Quando se diz que” Certos tipos de música desaparecem num segundo. Outros
permanecem uma vida inteira, armazenados nos membros, no cérebro ou mesmo no coração. Quando tocava
alguma coisa que funcionava bem, acontecia uma coisa estranha aos meus ouvidos: logo depois de tocar ouvia
um zumbido a ecoar no quarto como se as minhas orelhas se tivessem tornado numa espécie de radar,
detectando ao mesmo tempo tudo o que me rodeava. Normalmente o meu acesso ao ruído ambiental é selectivo,
não é global. Se não tenho necessidade de um som, não o ouço, a não ser que seja realmente intrusivo. Mas neste
caso, era como se ter estado a tocar tivesse tornado o meu corpo num sistema de monitorização programado para
detectar a expansão do ser. Conseguia ouvir mais e mais profundamente do que era habitual. Pensava ser a
recompensa do músico. Não é preciso dizer que me dava um grande gozo. Aliás hoje não sei dizer se as minhas
improvisações funcionavam bem por causa desta qualidade especial do som, ou se esta qualidade especial do
som se devia à minha performance . Uma coisa é certa, tocar assim ajudou-me a mudar-me do modo letrado
para o modo oral. Mais do que nunca precisamos disso”. (28) O Jazz não é uma supra-entidade administradora
com um sem número de zelosos guardadores que de lá de cima “manipulam” tudo, mas uma actividade criativa
que respeita a liberdade humana e que mais do que intervir nos acontecimentos ajuda o homem a encará-los e a
reagir á luz da fé. O que neste momento está em causa já não é sacralizar os factos, mas encontrar um sentido e
uma esperança para além e apesar desses factos.



13.

Um registos magnético, digital, tem a menoridade de ser sempre um momento que pode ser mais ou menos feliz.
Num concerto as coisas passam-se mais ou menos da mesma maneira, a audição intensiva colocada ao dispor de
todos, oferecida pelos vários processos de registo e reprodução, vai retirando a aura de uma obra que se define
“como a manifestação única de uma loucura por mais próxima que seja”; mais não representa do que a
formulação do valor do culto da obra em categorias de recepção espacial e temporal. - de novo Walter Benjamin -
“É evidente que a secularização posterior de obra, afasta-a do valor do culto inicial, suplantada pela
singularidade do artista ou sua realização estética na concepção do observador.”



14.

“A obra reproduzida torna-se cada vez a reprodução de uma obra, libertando-se da sua existência parasitária do
ritual”. Este afastamento faz emergir dois novos elementos indispensáveis, o artista e o público, que surgem como
factores intervenientes, activos na sua resolução, através dos tempos e dos espaços. O disco, o concerto, encerram
sempre um movimento, que curiosamente, podem ser hoje em dia reproduzidos audio-visualmente nos mais
diversos contextos. A partir daqui qualquer abordagem sobre o seu conteúdo peca desde logo uma enorme
fragilidade comparativamente á totalidade da obra, á vida do seu autor e aos seus momentos de procura.
Leonardo da Vinci compara a pintura á música usando as seguintes palavras: “A pintura é superior á música
porque não tem de morrer logo que lhe é dada vida, como sucede com a pobre música... a música que se esvai
logo que surge é inferior á pintura que se tornou eterna como o uso do verniz”. Não deixa de ser interessante uma
ideia que muitos anos depois perde consistência, por razões de ordem técnica.



15.

Mas perderá totalmente essa consistência? O que atrás disse revela algumas questões que se podem pôr, em face
da fragilidade das suas reproduções e dos seus momentos, quando em confronto com uma totalidade
inapreensível - a obra. Das perdas que representam para uma procura que se revela transcendente, logo
irrepetível. E agora podem eventualmente interrogar-se sobre o que o Jazz com tudo isto. Nada absolutamente
nada nas explicações desnecessárias.




(1) Fernando Savater, A Infância Recuperada, Presença, 1997, p. 39.
(2) Ibid. p. 33.
(3) Ibid. p. 36.
(4) Camille Paglia, Vamps e Vadias, Relógio d' Água, 1997, p. 423.
(5) Ibid. p. 424.
(6)Giorgio Agamben, O Poder Soberano e a Vida Nua, Editorial Presença, 1998, p.50-51
(7) Ibid. p. 53.
(8) Konrad Lorenz, A Agressão, uma história natural do mal, Relógio d' Água, 1992, p. 247.
(9) Walter Benjamin, Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, Relógio d' Água, 1992, p. 159.
(10) Konrad Lorenz, A Agressão, uma história natural do mal, Relógio d' Água, 1992, p. 248.
(11) Fernando Savater, A Infância Recuperada, Presença, 1997, p. 27.
(12) Ibid. p. 25.
(13) Ibid. p. 26.
(14) Umberto Eco, Obra Aberta, Difel, 1989, p. 84.
(15) Hannah Arendt, Verdade e Política, Relógio d' Água, 1995, p. 36.
(16) Ibid. p. 35.
(17) Ibid. p. 39.
(18) Ibid. p. 54.
(19) Henri-Pierre Jeudy, A sociedade Transbordante, Edições Século XXI, 1995, pp. 76-77.
(20) Anthony Giddens, As Consequências da Modernidade, Celta, 1995, pp. 24-25.
(21) Guy Debord, Comentários à Sociedade do Espectáculo, mobilis in mobile, 1995, p. 45.
(22) Walter Benjamin, Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, Relógio d' Água, 1992, p. 77.
(23) Ibid. p. 86.
(24) Ibid. p. 87.
(25) Ibid. p. 148.
(26) Ibid. p. 105.
(27) Derrick de Kerckhove, A Pele da Cultura, Relógio d' Água, 1997, pp. 127-128.
(28) Ibid. p. 161.