AUTOR: IVO MARTINS E JOANA DE DEUS
EDIÇÃO: Revista Op. #21 DATA: Dezembro de 2006
I. As pessoas separadas
As ruas estão cheias de pessoas separadas. Na Primeira, no Verão, no Outono e no Inverno. As pessoas que não
parecem separadas simulam cenas e gestos. Há motivos que não conseguimos perceber nelas, nem nas suas
posições, no entanto parece sempre mais difícil situá-las - realmente situá-las - quando elas estão acompanhadas
de muita gente. Até porque as pessoas dispersas normalmente transportam verdadeiras multidões às costas. Nas
escolas, nos supermercados, dentro das casas e dos apartamentos, nos restaurantes e nas festas, algumas pessoas
procuram aprender o que de errado aconteceu nas suas histórias, e porque razões se sentem tão angustiadas com
os seus assuntos. Para cada uma delas há uma narrativa própria, uma espécie de história clínica, um relatório, e
depois há toda uma parte que se explica na linguagem comum, nas definições técnicas dos dicionários, nas
palavras, etc. Mas não existe nenhuma fórmula capaz de justificar os espaços vazios no processo de irradiação
entre as pessoas e as outras pessoas. E então a matéria biológica separa-se e fragmenta-se, os corpos passam a
caminhar e a moverem-se numa maneira de ser absolutamente fechada, e nem a retrospecção de momentos
passados ajuda a atenuar tentativas de reunião perdidas.
II. Pouco
Um diamante num monte de lixo é pouco. Ter pouco material é, de alguma maneira, ser pobre, e ser pobre
também é não ter coisas valiosas. Por vezes na pobreza encontramos uma forma muito particular de destruição,
que em muitos casos resulta em imagens de profundo sentido cómico na utilização e aproveitamento do que é
matéria. Há qualquer coisa de escandaloso na impossibilidade de participação num mundo construído para se
interagir com objectos industrialmente transformados. A aplicação ocasional de um produto adoptado, fora do
uso primordial que lhe deu origem, intensifica um desfasamento ao nível dos olhos, quando, num espaço
desprovido de riqueza, encontramos pequenas tentativas de exorbitar o excesso através de processos de
intensificação do brilho.
III. Quebra e cola
As colagens recuperam coisas que se partiram. E recuperam-nas sempre de uma forma diferente, quando são
verdadeiras. Ao estabelecerem novas possibilidades de reconstrução visual, assumem novos comprometimentos,
adquirem formas renovadas para os olhos, e incentivam a consolidação. As colagens são desenhos arquitectados.
Outras vezes são apenas movimentações que ganham novos empregos no espaço e no tempo. Outras vezes não.
iv. Subtítulos
Pequenos títulos aparafusam-se-nos à consciência como nos rodapés das televisões, de um lado para o outro,
repetidos e recalcados vezes sem conta nos nossos pensamentos. A fronteira entre o que pensamos e aquilo que
fazemos é muito ténue. O pensamento incorpora a acção, mas nem sempre a potencia. No entanto a acção passa-
nos sempre pelo pensamento, mesmo quando não dá a entender. Muitas vezes pomos em prática actos e
pensamentos por razões de tédio. Ao contrário dos subtítulos, os títulos são maiores e quietos.
V. Quinquilharia
Quinquilharia suscita arrumação. Podemos arrumá-la só de olhar para ela e fazer com que cada objecto se
interprete a si próprio e se estruture em função do que o rodeia. É quinquilharia uma característica do Homem.
A quinquilharia não pensa, e tem um grau de estabilidade e regularidade que lhe permite ser quinquilharia
eternamente. O Homem não é pessoa eternamente. E pensa. E expressa qualidades desreguladas, ou de
abandono, face à sua quinquilharia. A quinquilharia só é boa quando favorece a organização das ideias de quem
a possui, na medida em que espera que actuem sobre ela. Também é boa quando não se pode ver.
VI. Afecto
As pessoas recuperam permanentemente coisas que outras pessoas abandonaram e constroem pequenas e
grandes histórias a partir daí. Essas histórias tornam-se compridas, pesadas, importantes, incontornáveis,
abrangentes, consoante o tempo e a dimensão das coisas recuperadas, e a capacidade das pessoas lhes darem
novos significados. Recuperar é um acto de afecto. É muito mais fácil recuperar objectos do que pessoas ou
animais, porque o objecto é regular, como a quinquilharia, e torna-se mais fácil estabelecer relações duradouras.
Algumas vezes conseguimos relacionar-nos com os objectos ao mesmo nível do que com pessoas ou com os
animais, porque há qualquer coisa de existência neles. Cada objecto abandonado expressa um afecto perdido.
Quando encontramos um objecto e lhe atribuímos um afecto, esse objecto entra numa espécie de buraco interior,
com o qual ajustamos um preenchimento. Quem recupera objectos é uma espécie de pescador de afectos.
VII. Ideia / acção
Uma ideia só obtém resultados quando é fruto da diversidade e da liberdade de pensar. Uma ideia é um
preparado, constituído em forma de síntese, de compromisso entre várias pessoas e várias ideias, que ao mesmo
tempo tem de conter liberdade, no sentido em que todas as pessoas tenham todas as condições para se
manifestarem, e que essa manifestação tenha uma relação directa com a capacidade de agir e de ser delas…
senão é treta. Por vezes na absoluta passividade, ou no silêncio, essa ideia é permanentemente transmitida.
Pessoas silenciosas mantêm vivas uma única ideia durante décadas, e zelam pela sua comunicação na
passividade. A ideia é sempre uma saída de um fechamento do nosso desejo. Ao idealizarmos temos uma grande
responsabilidade de estabelecer métodos de concretização, gerir valores, um conjunto de coisas que se não
tivéssemos ideias não eram precisas. O universal é a capacidade que temos de corresponder a elas.
VIII. O que tu tens
- Sabes qual é o teu problema?
- Escreve “sabes qual é o teu problema”.
- Oh, ouve, o que tu tens é o seguinte…
- Escreve “o que tu tens é o seguinte”.
- SOCIABILIDADE INSOCIÁVEL. Percebes?
- Sim.
- E sabes porquê?
- Escreve “sabes porquê”!
- PORQUE PRECISAS DOS OUTROS MAS GOSTAVAS DE NÃO PRECISAR.
- Boa…
- E sabes o que é que acontece quando precisas dos outros mas gostavas de não precisar?
- Conta.