AUTOR: IVO MARTINS 
EDIÇÃO:
Guimarães Jazz 2023 - Câmara Municipal de Guimarães/ Associação Cultural Convívio/ A Oficina     DATA: Novembro de 2023 





Se verdadeiramente o quisermos compreender, o fenómeno jazzístico tem de ser enquadrado nas grandes correntes sociais e musicais do século XX e XXI, e não em análises desinseridas da realidade onde ele evoluiu. Através da observação das diversas alterações ocorridas podem estabelecer-se relações entre o jazz e uma miríade de outros fatores, criando novas composições como se fossem micro-histórias aparentemente sem conexão. A arte, a tecnologia, a cultura, a sociedade, enfim, o mundo, manifestam-se em conjunto sob diferentes modos, em muitos casos desarticulados. Há nas mudanças um fator aleatório e imprevisível, refundado no relato detalhado e significativo de factos importantes que são, geralmente, pouco valorizados. O tempo e o espaço comprimem-se num campo histórico informe que une pensamentos, alusões, ideias, causas, consequências, razões, explicações, argumentos, invenções, descobertas técnico-científicas e jogos de poder. Tudo isto compõe um material irregular e desviante, sem direção definida. As temáticas estão entregues a si mesmas, aparecendo, desaparecendo e reaparecendo em campos de estruturação nem lineares, nem cronológicos, revelando-se, em certo sentido, anti-históricos. Os conteúdos das diversas histórias do jazz são, portanto, abundantes em respostas, nem sempre percetíveis e nem sempre calculados, sendo impossível integrá-los num enorme conjunto de ideias um todo coerente e definitivo. Para os entender é necessário que se desenvolvam alguns tópicos decorrentes de uma história múltipla e fractal nas suas ressonâncias e consequências semânticas; as palavras “jass”, “jazz”, “pop”, “rock ‘n’ roll”, “blues”, “ragtime”, “hip-hop”, “rap”, “estúdio de gravação”, “indústria discográfica”, “tabelas de vendas”, “disco vinil”, “cassete”, “compact-disc”, “Internet”, “pirataria”, “Mp3”, “sampler”, “streaming”, entre muitas outras que designam tecnologias de captação, armazenamento ou manipulação da música, surgem como componentes de uma linguagem de reordenamento cultural que determina a música popular do século XX.

Em 1957 foi lançada a estereofonia, uma invenção que representou ganhos qualitativos importantes para a edição discográfica. Mais tarde, em 1980, com o aparecimento do gravador de cassetes de fita magnética, verificou-se outro grande avanço centrado na componente portátil da música. Este avanço tecnológico aparentemente inocente provocou de imediato uma queda nas vendas de álbuns. A indústria discográfica ressentiu-se deste abrandamento, temendo o pior. Contudo, o referido decréscimo, como se veio a provar, não prejudicou grandemente os seus lucros. Entretanto foram surgindo novas tecnologias de gravação e reprodução, como o cartucho de fita magnética (rapidamente caído em desuso), as cassetes VHS, que também permitiam gravar música, a mini-cassete, o minidisc e, finalmente, o CD. No entanto, foi com a massificação do uso da internet que se deu o verdadeiro salto no desconhecido. Numa primeira fase, esta não apresentava grande potencialidade técnica; não havia recursos técnicos disponíveis para reconverter num ficheiro digital as músicas de um CD ou de um disco vinil. Foi preciso esperar algum tempo para que se inventasse um ficheiro pouco pesado capaz de armazenar música; um programa para o reproduzir; um aparelho para extrair a música de um suporte analógico para formato digital; e software informático para comprimir essa informação por forma a torná-la menos pesada, permitindo a sua circulação em rede. Para reunir todas estas condições foram necessários anos de investigação e sucessivas melhorias; movimentar o ficheiro de um álbum via internet e arquivá-lo em qualquer lugar disponível, dentro de uma rede de utilizadores que crescia diariamente de forma imparável, pressupôs o desenvolvimento de inúmeras soluções tecnológicas. O formato mp3 e, posteriormente, o streaming foram algumas das invenções recentes que permitiram movimentar e armazenar música de maneira rápida e eficaz. Atualmente a tecnologia digital substituiu completamente a televisão tradicional, o LP em vinil e os equipamentos de reprodução e gravação analógicos. Estes antigos suportes geravam, além do gozo de escutar música, um prazer tátil particular, proveniente de um sentimento de posse. Os suportes analógicos propiciavam diversas formas de contacto físico com o objeto que armazenava a música. Hoje, com os novos dispositivos remotos digitais, a realidade é virtual e o apreciador de música vive num espaço imaterial, deixando de ter contacto com o real. Neste contexto, o ouvinte fica dispensado do contacto físico e direto com a música e com os equipamentos que a reproduzem, os quais são cada vez mais inteligentes, multifunções, portáteis, miniaturizados e pessoais, acompanhando o utilizador como se fossem as suas sombras ou fantasmas.

Os avanços tecnológicos desencadeados por estas diversas e importantes invenções pressagiavam o pior para a indústria discográfica, tal como esta era conhecida. A produção musical em formato digital contribuiu para transformar definitivamente a música popular à escala global, tornando-a um produto abrangente, democrático e igualitário, embora incontrolável nas suas consequências culturais. Atualmente, a música intromete-se, interfere, em todos os sectores da vida e em diferentes áreas do quotidiano. O mundo online possui inúmeros atores, cada um deles representado uma intenção. Em 1995, porém, o ciberespaço era um imenso arquipélago, disperso por muitas ilhas com inúmeros servidores domésticos que não comunicavam entre si, um território elitista onde somente operavam os entusiastas e especialistas em computação. Nos anos seguintes, porém, o desenvolvimento destes equipamentos aconteceu a uma velocidade impressionante; a sua capacidade técnica e performativa crescia a passos de gigante e, à medida que isso acontecia, ia aumentando exponencialmente o número daqueles que possuíam as capacidades necessárias para dominar os dispositivos informáticos. A tecnologia cibernética tornou-se assim, numa simples, acessível e poderosa máquina de processamento de informação, melhorando a sua capacidade operativa, solucionando os problemas de comunicação que antes eram difíceis de resolver. Neste processo foi criado um novo espaço comunicacional que, segundo Paul Virilio, define uma entidade desprovida de extensão espacial, inscrita numa temporalidade singular de dimensão instantânea. O computador tornar-se-ia uma máquina insubstituível e a vida das pessoas ressentiu-se desta mudança, uma vez que aquele se transformou rapidamente num equipamento multifunções cada vez mais eficaz e portátil, e também os indivíduos alteraram a maneira como se relacionam com a música.


O contexto musical ressentiu-se radicalmente dos efeitos desencadeados por estas alterações. Os álbuns de todos os géneros de música passaram a estar disponíveis online, acompanhados de discografias completas, minuciosamente documentadas. Poderosos motores de busca permitem que o utilizador encontre instantaneamente todo o tipo de material organizado por músicos, temas, versões de cada composição, álbuns, playlists e perfis de pessoas e artistas onde, além da informação biográfica referente ao criador em causa, são indicados os seus discos e temas favoritos. Nesta nova realidade, o ouvinte torna-se nómada, um ser independente e autónomo, culturalmente omnívoro e sujeito à dispersão da sua intenção e vontade. No mundo digital as pessoas têm total liberdade de movimentos, criando listas personalizadas através da escolha de temas, posteriormente anexados num ficheiro específico que pode ser escutado onde e quando quiserem, independentemente da rede. Cada usuário pode, segundo a sua sensibilidade própria, sequenciar vários ficheiros em listas e ordenações diferentes. O ouvinte passou assim a ser um construtor de sonoridades, um criador de novas realidades sonoras, expressas por listagens musicais por si selecionadas. A arrumação de determinados temas, fora do contexto do álbum donde provêm, gera por si só uma nova forma de ouvir. A possibilidade aberta por estas tarefas introduz o utilizador num campo de ação muito mais vasto, desprovido de uma estrutura intencional inequívoca. A música passou assim a estar sujeita a uma nebulosa atmosfera de influências indiretas, demasiado difusa e contingente.

Em consequência deste novo paradigma, o ouvinte tende cada vez menos a procurar no mercado produtos musicais enquanto objeto corpóreo, dando preferência às experiências dos sentidos. Na realidade virtual as pessoas não contactam com coisas palpáveis, mas com estímulos que mexem com a sua atenção, razão pela qual o consumo cultural, a adoção de diferentes estilos de vida, a busca de sofisticação, a exploração da sexualidade, a exponenciação da comunicação e a implantação definitiva do império do audiovisual, entre outras tendências, se tornaram alguns dos tópicos mais vendáveis que induzem experimentação. Ou, dito de outra forma, e tal como escreveu Mark Slouka, os indivíduos “transformaram-se em consumidores das suas próprias vidas”. A amplitude do ciberespaço ganha aqui um significado acrescido, pois permite movimentos de grande velocidade para todos os lugares e partes do planeta. As pessoas não ficam indiferentes a esta nova realidade e o aparecimento de diversos sistemas de partilha de arquivos, sucessivamente mais avançados, mais sofisticados, mais práticos e conhecidos, criaram o seu próprio ciclo de autorreprodução. Tal situação releva a importância da rapidez nas operações cibernéticas, permitindo retomar uma velha ideia de Michel Foucault: a pessoa transforma-se numa verdadeira obra de arte através da sua reinvenção, criando novos estilos de vida. Esta forma de olhar a existência recebeu uma inesperada confirmação passados alguns anos após a sua enunciação. Neste momento, pode perguntar-se: o que é o presente? A atualidade é tão elástica e abrangente que ocupa tudo; o passado é empurrado para lá dos horizontes visíveis, ficando o tempo reduzido a um único presente. De facto, a questão neste momento é saber quem está no comando das coisas. Na dúvida está implícito o problema de como é feita agora a gestão da arte, qual o papel dos agentes, dos intermediários, dos detentores dos meios de produção, das entidades dinamizadoras, do público e, finalmente, dos artistas, num processo de questionamento da sobrevivência da arte que dura desde o tempo em que as paredes de Altamira se cobriram de desenhos. Neste sentido, o confronto entre os utilizadores e criadores legalmente enquadrados e os outros, marginais ao sistema, é um problema bem mais vasto do que parece. Será que a cultura pode sobreviver à degradação, declínio e perda da eternidade? Os movimentos do mercado são extremamente caprichosos e transitórios, assim como os antecedentes relativos ao controlo da arte por ele, e estão habitualmente repletos de falsas afirmações, prognósticos e juízos equivocados.


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O espaço da internet não é, na sua essência, um campo suscetível de ser dirigido, mas, neste momento, existem razões válidas para que as pessoas se preocupem com os efeitos sobre o seu controlo. As informações que nela circulam não se organizam entre si numa continuidade comum, podendo pontualmente ocupar ou desocupar esse espaço. Contudo, por ser um território fértil em inteligência anónima que permite criar novos sistemas dentro e fora dos já existentes, a internet afigura-se intrinsecamente difícil de controlar. Esta ambivalência e permeabilidade difusa é impossível de ser replicada no mundo real, apesar de se saber que a tecnologia é uma prótese, uma extensão do corpo humano, refletindo o potencial da subjetividade. Neste sentido, a rede digital pode ser percecionada como um desdobramento inteligente, um mundo particular e singular onde se cruzam forças de sentido contrário. Os verdadeiros conhecedores do sistema informático são uma elite e têm um poder inegável, pois movimentam-se através do uso de identidades falsas, em nebulosas de dados e em espaços virtuais mutantes e inconstantes. Um único utilizador pode assumir diferentes máscaras, com apelidos ou pseudónimos diversos, escondendo-se por detrás de uma linguagem críptica que dificulta a sua monitorização. A subversão praticada pelos que estão de fora do sistema tem um efeito mutuamente reforçado, tal como está exposto na teoria das “cadeias cismogenéticas” de Gregory Bateson. Por exemplo, se um comportamento afirmativo não é respondido na mesma moeda, encontrando em vez disso submissão, é provável que essa aceitação promova mais afirmação; a repetição desta reação em cadeia, não sendo simétrica, levará mais tarde ou mais cedo à rutura do sistema. Fora do território material, isolados num lugar despojado de significado social, muitos jovens continuam, de maneira desinteressada, a laborar diariamente e na clandestinidade, aperfeiçoando novos programas e novos dispositivos de software. Essa condição de anti-vizinhança, que os imuniza face às interferências locais no seu jogo secreto de atividades, contribui para melhorar as invenções já descobertas e para acrescentar novas conceções concebidas num espaço esquivo e invulnerável. O seu virtuosismo e eficiência, quer na capacidade de busca e de pesquisa, quer na armazenagem de música, são as máximas de uma frenética construção individual, onde o cubículo em que vivem e o cyber playground no qual realizam as suas ousadias criativas se confundem.

Em cada atentado contra a ordem estabelecida, defendida pelas empresas discográficas, há um “ato” de contrapoder, traduzido no facto de alguém anonimamente fazer, de forma simples e direta, a tarefa que a todos competia, não fossem as dificuldades artificiais impostas pelos mecanismos do sistema. A pulsão burocrática cria dificuldades e inventa obstáculos constantemente renovados que impedem o acesso dos que desejam trabalhar de forma desinteressada, pelo que quem desenvolve uma postura independente e autónoma, algo distanciada da lógica de mercado, sujeita-se a sentir um choque traumático com a burocracia. Este embate é seguido por um gozo evanescente baseado na negação, negação essa que só é cumprida parcialmente porque, depois de se ter esgotado o seu efeito libertador, tudo volta ao normal. Enfrentar o sistema pressupõe aceitar-se o regresso à normalidade quotidiana; contudo, depois de ocorrido o acontecimento, este deixa atrás de si rastos e incentivos explícitos a quem esteja disponível a guardar esse segredo. No início da disseminação da tecnologia digital foi graças à atividade de piratas (os comummente denominados hackers) que se percebeu melhor o enorme potencial dos ficheiros digitais, tais como o mp3, e inventados ou melhorados os programas, de que o “Napster” será talvez o exemplo mais paradigmático, os quais, ao romperem com o protocolo da internet, criaram vias alternativas ainda por regulamentar e novas ideias de partilha cultural. Esta situação criou um problema que não era técnico nem jurídico, mas sim eminentemente político e ideológico – quem cria programas de armazenamento e partilha, sabotando os sistemas operacionais de gestão de direitos autorais, geralmente defende uma internet gratuita e democrática, provocando assim um choque com as conceções mercantilistas vigentes. O efeito “Napster” tornou-se um exemplo de igualitarismo e cooperação que abalou o sistema; ultrapassado o seu impacto, e apesar das pessoas terem voltado à sua normalidade quotidiana depois de passada a fase mais exaltante da energia extática, muita coisa tinha acontecido de imprevisto, tendo deixado marcas para serem retomadas – como sempre, a cada crise estrutural segue-se uma ressaca, mas nada fica como antes. A “nova normalidade” que será instituída diferirá necessariamente da anterior; e assim também a internet mudou, tornando-se um campo infinito de novas experiências. O aparecimento de comunidades digitais tribais revelou a todos os que quisessem compreender a nova realidade que o campo social não pode ser totalmente ocupado e dominado pelo aparelho económico e estatal. As inúmeras tentativas de controlo levadas a cabo pelos diversos organismos do poder fizeram com que as pessoas mais hábeis rapidamente aprendessem a superar obstáculos, movendo-se em ambientes virtuais facilmente deslocáveis. A circulação e partilha de música faz parte integrante dessa mobilidade geral que a todos afeta.

Alguns dos indivíduos que se movimentam na internet retomam, de certa forma, a velha ideia anarquista das comunidades descentralizadas que, funcionando de modo direto e transparente, vivem sem necessidade de instituir estruturas de representação alienadas. Hoje, quem habita e atua na internet não é muito diferente de quem habitava e atuava o mundo “real” do passado; se alguns desejam organizar as suas vidas segundo uma ótica de democracia direta, trabalhando para o bem comum, outras são mais agressivas, competitivas, ambiciosas e concorrenciais, não hesitando assumir atitudes disfuncionais, delinquentes ou criminosas para atingirem os seus objetivos. A rede digital é um espaço aberto e obscuro onde existem todo o género de indivíduos e de contextos, pelo que o seu lado romântico, exposto numa rede ao serviço da cooperação e colaboração em prol do bem comum, atravessa uma grave crise existencial que torna difícil antecipar o seu futuro. A determinação ansiosa do consumidor, isto é, o seu alvo ou desejo, é sujeita a múltiplas distorções e, nesse processo, passa a ser entendida como parte da propriedade do bem desejado. Na rede digital a lógica desta ilusão é levada ao limite, pois a diferença entre objeto e sujeito confundem-se constantemente, dando a perceber que ninguém existe fora do quadro de um engano fetichista. Contudo, ninguém é inteiramente opaco para si mesmo, assim como não é possível um indivíduo conhecer-se na sua totalidade, no sentido de conseguir perceber o seu próprio mecanismo generativo. Se seguirmos este raciocínio, e partindo do princípio de que todo o conhecimento pressupõe pensamento, chegamos à conclusão de que a internet não propicia necessariamente este tipo de abordagens. A realidade é sempre limitada e define-se num contexto global, onde a autorreferência cognitiva se dá num fundo obscuro, cujo modelo do próprio é sempre transparente e pré-conceptual. Face a esta limitação pode afirmar-se que sentir-se a si mesmo implica ser parte de uma experiência quotidiana imediata e ingénua, ou seja, sem reflexão.


A transparência reclamada pela herança anarquista subentende uma sociedade autogovernada numa rede de mecanismos a funcionar sem atritos e invisivelmente, sem problemas. Porém, tal não é possível, nem a internet consegue ser um meio integralmente não alienado. As suas formas revelam-se em estruturas complexas de substituição que a fazem funcionar, pelo que a sua organização nunca poderá operar segundo um modelo de autogestão, pelos menos a curto ou médio prazo, e, neste sentido, torna-se impossível perspetivá-la como local de total liberdade e autonomia. Talvez o melhor seja então encará-la como forma inevitável de alienação e tentar orientá-la, direcionando-a, “apesar de tudo”, para um funcionamento menos problemático e conflituoso. Sabemos que o mercado permanecerá sempre na internet e explorará todas as suas potencialidades, uma vez que é impossível escapar às lógicas apropriadoras do capitalismo; no entanto seria bom dar-se mais espaço a modelos não-alienadas de funcionamento cuja liberdade e autonomia sustentem comunidades espontâneas que, pelas suas aspirações, queiram estabelecer relações desinteressadas, assentes na liberdade de cooperar e colaborar sem restrições. Numa sociedade baseada no individualismo extremo, onde cada qual trata de si, dispondo-se a explorar e a desconsiderar os outros, o mercado é sempre preponderante, e o espaço cibernético não escapa a este paradigma. A realidade virtual atira o indivíduo para um mundo sem referências estáveis, no qual as tradições desaparecem ou são destruídas, favorecendo assim o crescimento exponencial do consumo. Neste contexto, o mercado causa pânico e insegurança porque também ele tem as suas crises e porque opera sob o princípio da cadeira de comando vazia: não existindo um responsável a quem atribuir culpas, o poder será sempre exercido no vácuo.

A este impasse talvez possamos encontrar uma resposta plausível no jazz. O sofrimento causado por processos de controlo e exclusão está inscrito na génese deste género musical e permanece no seu âmago como sinal identitário, uma vez que foi fundado a partir de esforços simultaneamente de libertação e negação de desejos. Na essência desta música procura-se essencialmente a integração e cooperação de culturas, reunidas num todo musical a que chamamos “o mundo”. Ouvir e criar jazz significa, portanto, reagir e resistir perante a dificuldade, enfrentar o desconhecido, penetrar no insondável e conceber a resistência como uma inversão da impotência face ao imenso campo onde a música se manifesta. O sistema social de onde provém o jazz está contaminado pela força de uma negatividade salvadora, tornando-o uma arte que se vê e sente no difícil papel de expor verdades incómodas, de fazer denúncias subliminares, de negar rasuras, separações e divisões. Esta música está repleta de inúmeras mensagens contra a degradação, a decadência, o cinismo e a mentira, mensagens que simultaneamente provocaram e refletiram muitos acontecimentos políticos, económicos, sociais, culturais do século XX. Adquirindo força de documento e elemento de memória, e tendo sido projetado numa realidade comunitária ideal radicada nas suas origens musicais, o jazz alcançou dimensão antropológica universal dotada de um importante significado simbólico. Ao conseguir afirmar-se como estratégia de aglutinação de comunidades e de proteção das suas tradições, o jazz foi capaz de encontrar um processo indireto de afirmação de identidade, composta não de valores abstratos, mas de coisas bem concretas que incarnaram uma rede densa de práticas quotidianas banais. Esta será talvez a lição mais importante que esta forma musical terá para oferecer ao contexto de desterritorialização digital que carateriza a rede contemporânea: a ideia de que é necessário algo mais radical, uma espécie de distanciamento brechtiano assente numa experiência existencial difícil, cruel e profunda, através da qual será possível reconhecer o estrangeiro que há em nós. A visão comunitária nunca é suficiente; convém reconhecer o que somos e que cada um de nós é, à sua maneira, um lunático excêntrico a necessitar urgentemente de encontrar um modo de convivência tolerante entre diferentes estilos de vida e mundivisões. Esta constatação implica superar isolamentos de grupo e descobrir um compromisso coletivo, num longo processo de solidariedade universal e de construção de uma causa suficientemente forte para atravessar mundos e modos diversos de encarar a vida.
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