AUTOR: IVO MARTINS
EDIÇÃO: Guimarães Jazz 2022 - Câmara Municipal de Guimarães/ Associação Cultural Convívio/ A Oficina DATA: Novembro de 2022
1ª Parte
[ Sobre a consciência da deriva ]
No jazz tudo ocorreu muito rapidamente, e o seu percurso inscreveu-se na narrativa histórica no espaço de poucas décadas. O jazz parece ser uma música urgente, uma arte feita e desenvolvida a destempo, vivida numa vertigem ou na pressa de ser ouvida anteontem. A velocidade é o principal leitmotiv desta música – no jazz o tempo escapa. Para o entendermos completamente nunca será necessário usar visões estéticas mais ou menos estáveis e integradoras, uma vez que as modificações que lhe sucederam se revelaram sob a forma de uma evolução caleidoscópica, com muito desvario à mistura. Quanto mais se olha mais de perto para cada estratificação, mais óbvio se torna que a superfície do jazz é feita de zonas cinzentas, áreas fugidias, vizinhanças indefinidas, espaços de ambivalência entre momentos com consequências imprevistas. Neste sentido, uma das dificuldades mais evidentes que enfrentamos quando fazemos a análise da sua história é a de discernir linhas visíveis de distinção entre cada uma das suas fases de crescimento. Esta dificuldade complica análises e avaliações, mas por outro lado esse elemento torna esta música ainda mais interessante – por ser uma linguagem musical de construção rápida, nela tudo se transforma a alta velocidade, obrigando-o a transformar-se num som flexível, adaptável e em permanente mudança. Todos estes fatores contribuem para que seja extremamente difícil identificar no jazz, em termos artísticos, uma frente criativa eminentemente reconhecível.
Genericamente, podemos dizer que existem três tempos diferentes de evolução neste processo de criação do jazz, embora estes momentos tenham acontecido de forma intrincada e contínua. Na sua primeira fase deteta-se o lado mais tribal – os músicos e pessoas convivem e tocam em longas reuniões pela noite dentro, em sessões improvisadas, no meio de algum caos sonoro. Nesse contexto primordial fazia-se música muitas vezes aproximada ao barulho, e os músicos agiam de modo intuitivo e instintivo, imitando-se uns aos outros. Neste processo descobriam-se novas soluções através de ações tentativa/erro e procuravam-se novas fórmulas que por sua vez se convertiam em processos de reprodução. Numa segunda fase, os improvisadores consciencializaram a componente performativa do seu labor musical, o que implicou atingir níveis mais apurados estados de consciência e autoconsciência na sua prática. Esta fase foi marcada pela repetição de ocorrências; não verdadeiramente ensaios, mas antes testes de mecanismos de aprendizagem, experimentações posteriormente transformadas em padrões mais ou menos estabelecidos. Este nível de desenvolvimento do jazz permitiu a possibilidade de se fazerem correções deliberadas no modo de tocar, pelo que podemos chamar a este momento, a era da “domesticação do jazz”, caraterizada, tal como a classificação indica, por um maior grau de controlo e perceção. Finalmente, entramos numa terceira fase, talvez a mais evoluída, ou se quisermos o último estágio desta música – chamemos-lhe a “idade dos improvisadores estéticos”, músicos profissionais, profundos conhecedores do processo de execução, que por força da memória histórica que está incorporada neles, passam a conceber uma música exigente e inteligentemente trabalhada em processos híbridos de tensão e contenção. Neste último estádio, o jazz passa a ser percecionado como objeto de arte, representando assim o tempo em que a sua mensagem essencial é verdadeiramente lançada ao mundo enquanto manifestação cultural investida de esperança e compromisso.
O problema que se coloca a quem necessita de dividir o jazz em estilos é o de saber se essa separação contribui de alguma forma para que esta música se resolva em termos estéticos. No entanto, nós sabemos que este processo de identificação é um caso sem solução, onde no todo integral formado pela palavra “jazz” cabem todo o tipo imaginável de sons. A divisão do jazz em diversos subgéneros tem vantagens e desvantagens intrínsecas; se por um lado representa uma evolução linear desta música numa perspetiva progressista partindo do mais simples para o mais complexo, por outro lado todas as arrumações classificatórias não são senão sínteses aproximativas de mudanças, simplificações forçadas que expõem limitações e fragilidades de vária ordem. Os atos de rotular, classificar, sinalizar ou identificar podem servir para definir o novo, criando assim a oportunidade para promover uma espécie de simbiose equilibrada entre cada perfil estilístico que possa emergir. O problema desta solução é como resolver as ligações entre as diversas fórmulas do jazz, as quais em teoria podem estabelecer-se ad infinitum, empilhando divisões em cima de divisões, o que significa produzir novas denominações que se revelam complexificações das categorias mais antigas e já obsoletas. No limite, este esquema de raciocínio obriga-nos a assumir que é praticamente impossível cobrir todas as elaborações desta música em géneros, especialmente tendo em conta que estes aparecem muitas vezes expostos em padrões sonoros embutidos noutras formas de tocar. É possível aceitar que os estilos definem zonas de identificação, mas é necessário ter em conta estes espaços não são exclusivistas, pois os sons ou se sobrepõem ou se localizam em zonas de fronteira indefinidas, tornando assim difícil determinar com exatidão o lado a que pertencem.
No fundo, o que mais impressiona no jazz é esta sua falta de acabamento, isto apesar de sabermos que ele é profusa e repetidamente tocado um pouco por todo o mundo. Quando contactamos com esta música, somos permanentemente confrontados com a sensação de que vemos um mundo, e que a este mundo falta sempre alguma coisa. Este “inacabamento” consentido que torna o jazz incategorizável manifesta-se, porém, enquanto núcleo fundamental de criação, um aparente handicap que, por ironia do destino, se transformou em vantagem.
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Os rios foram sempre no passado excelentes estradas de circulação, prestando-se assim a boas metáforas e fantasias. Presumimos que a origem do som do jazz terá tido como base uma pequena comunidade de pessoas localizada nas margens do Mississípi, um imenso curso de água carregado de significados ocultos e que constituía, na opinião de Mark Twain, “o mais sinistro e sério material de leitura”. Assim sendo, a história do jazz teve o seu berço num rio e num povo olhado como grupo de indivíduos marginais e segregados que, em parte como gesto de resistência a um processo de perseguição e exploração esclavagista, se tornaram os principais protagonistas de uma história paralela de arte e sensibilidade. Os rios tanto podem significar destino como aquisição de conhecimento, uma vez que favorecem encontros e desencontros súbitos com coisas que preferimos não conhecer. No entanto, eles podem também podem simbolizar o tempo – o tempo que nos passa ou a própria vida.
O Mississippi era, com as suas zonas alagadas e escondidas, um espaço de refúgio, e ao mesmo tempo representava uma estrada para a liberdade que se situava mais a norte. Olhando para trás, podemos quase imaginar um grupo de pessoas acantonadas nas suas margens, um conjunto reduzido de indivíduos a viver em circunstâncias que se assemelhavam a uma espécie de exílio a todos os níveis – político, social e também artístico. Os mais criativos procuravam através da criação musical formas de escape e fuga face à dureza do quotidiano; e, nessa atmosfera, a música era tocada em liberdade, um som seminal que nessa fase não passava senão de um murmúrio. Contudo, esta prática expandiu-se para comunidades vizinhas, e a cada avanço ficavam retidas algumas das características desta nova música tão particular. Nesse sentido, o jazz foi sempre na sua essência a manifestação de um movimento de refúgio e de deriva. Gradualmente e de maneira lenta, esta linguagem original alterou-se por meio de novos acréscimos introduzidos por novos músicos, desencadeando assim novos contactos e novos recrutamentos ou, no fundo, novos processos múltiplos de contaminação geográfica e cultural. Neste fluxo ocorreram mais misturas associadas e inventaram-se outros idiomas musicais, reformulando assim a cadeia de contactos, e este movimento ajudou a definir inúmeras individualidades pertencentes a um grupo de pessoas historicamente desenquadradas e culturalmente invisíveis. Estas são as imagens manifestas desta música que fazem parte de uma experiência concentrada em diversos recursos paralelos, num ofegante caminho percorrido desde as margens do rio Mississípi até chegar às grandes cidades industriais e populosas a norte.
A grande diferença do presente em relação ao passado é que ao longo do tempo os novos sons foram perdendo progressivamente qualquer conotação local, mesmo se por vezes expressem sonoridades captadas num determinado território cultural. O jazz foi capaz de se autonomizar da comunidade local e da geografia porque acompanhou mudanças sociais, políticas, culturais e artísticas, por forma a assim reformular novas associações de sons. Ou, dito ao contrário, por ser livre para reformular estas novas associações de sons e, consequentemente, para se autonomizar, o jazz revelou uma espessura de tempo que é em si mesma o reflexo da densidade de história acumulada. Enquanto música em movimento, o jazz foi fazendo o seu percurso diferenciando-se e aperfeiçoando-se. Findo o momento histórico da sua fundação, ele desligou-se e afastou-se dos seus contextos de origem, e a este processo de distanciamento podemos chamar amadurecimento. Se o mundo existente no princípio do jazz era analógico e estava aparentemente menos preparado para, segundo as lógicas atuais de comunicação, fazer circular a mensagem fundamental contida na sua informação, o que é certo é que essa informação circulou e funcionou, mesmo dispersando-se a grande velocidade. Para a sua afirmação na cultura global contribuiu, evidentemente, a coincidência inaudita do tempo do jazz com o tempo da invenção do registo magnético do som que permitiu registar para a posteridade uma parcela significativa dos momentos, frágeis, efémeros e improvisados que constituem a sua história. Na sombra dos seus desvios, esta linguagem musical foi capaz de se consolidar num cânone até chegar a hoje – e sobreviver num tempo em que já não há zonas por iluminar num universo de composições infinitas onde ninguém se perde.
2ª Parte
[ Sobre o assunto da sobrevivência do jazz no século XXI ]
No livro “Das Bactérias a Bach E Vice-Versa, A Evolução das Mentes”, Daniel C. Bennett faz uma reflexão muito interessante: “...independentemente da notação musical, os sistemas de escalas não-escritas – como os sistemas de linguagem antes da escrita ser inventada – eram por si só uma digitalização suficiente para preservar melodias e harmonias simples “de ouvido.” Ou, dito de outra forma, a música chegou antes da palavra que a define, tal como acontece com a linguagem. No mesmo sentido, o termo jazz vem depois do músico, surgindo como ideia classificatória; e, no entanto, contra todas as evidências, esta música escapou sempre a todas as categorizações e definições.
Nas profundezas deste enorme movimento artístico chamado jazz subsiste, portanto, um enigma por resolver, um todo musical identificável e autónomo que se retroalimenta e influencia a si mesmo, consequentemente influenciando as outras músicas. Existem muitas coisas sobre esta música que não sabemos, mas sabemos em definitivo que o jazz não foi inventado por um indivíduo específico. Muitos músicos e críticos deram importantes contributos para codificar e aperfeiçoar determinada prática, inserida na notação musical do ocidente, mas é impossível atribuirmos uma autoria em concreto – chamemos “sistema jazz” a este conjunto de conhecimentos que pode ser qualificado como uma intersecção particularmente bem-sucedida de evolução cultural darwinista e design inteligente. A capacidade do jazz de absorver influências e de se deixar influenciar por outras músicas, movimentando-se entre teias musicais intrincadas que se autossustentavam nas estruturas naturais da música, fez com que esta música se estabelecesse como uma sonoridade de mediação, construindo assim pontes sobre um espaço em processo de constante auto-redimensionamento. Isto significa que o jazz é, na sua essência, uma música entre músicas, caraterística que o tornou, em certa medida, pioneiro do fenómeno global, uma vez que ele conseguiu propagar-se e fixar-se em poucos anos em toda a parte, mesmo se desconhecendo as implicações futuras da sua expansão.
Poderá parecer uma agradável provocação dizer que o jazz encontrou sempre formas vantajosas de se identificar, mas quando aplicamos ao jazz o termo “selecionar”, queremos sobretudo relevar o seu processo de desenvolvimento e dizer que esta música não dependeu de uma mente orientadora superior vinda de cima para baixo. O jazz, sendo na sua essência música popular, é, e sempre foi, igualitário e democrático; quando o descobrimos, ele já vinha com esse carimbo e, como tal, não tínhamos dúvidas sobre a sua identidade e origem. Contudo, o jazz antes de ser o que é hoje era uma sonoridade totalmente anónima, algo que se desenvolveu transformando-se no sentido da elaboração de som complexo, mas cada vez mais definível. Não admira, pois, que nos seus primeiros momentos o jazz tivesse sido imitado abundantemente e que se tenha, depois de um primeiro impacto, expandido a sua força e energia naturais por uma miríade de territórios musicais e geográficos.
É por isso natural que, quando se olha retrospetivamente para a história do jazz, nos apeteça dizer que este passou por uma espécie de seleção natural, como se tivesse existido uma mão invisível que o ajudou a sobreviver guiando-o entre muitas sonoridades, uma mão que o ajudou a transformar-se e aperfeiçoar-se enquanto processo de elaboração de sons e estruturas sonoras complexas. No jazz pareceu ter existido uma mente intuitiva que o conduz; e, no entanto, não podemos ignorar que pressentimos que esta terá sido não uma mente individual, mas talvez uma forma de inteligência coletiva, não perfeitamente linear ou racional, que se foi descobrindo e apurando em amplos esquemas musicais através de processos espontâneos de tentativa/erro.
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De cada vez que ouvimos um som o ato de escutar perde imediatamente a sua neutralidade, o que pressupõe que o ouvinte penetre na sua própria lógica explicativa, uma na qual tendemos a usar diversos estratagemas para disfarçar essa impotência de tudo conhecer. A história do jazz não é senão uma lista de advertências que atestam a nossa necessidade de termos de encontrar razões para o que ouvimos; e essas razões serão, portanto, o suporte uma atitude intencional dirigida para a ação. Neste contexto, agir revela-nos uma situação que nos leva a presumir que existe no nosso pensamento e na nossa capacidade crítica uma certa medida de racionalidade. Estamos, desta forma. permanentemente sob exigência de termos de acompanhar o ato de ouvir com palavras, formando narrativas que muitas vezes não coincidem com as nossas experiências pessoais.
Quando ouvimos o tempo alarga-se e, porém, tudo permanece difícil; contudo, o mais importante é não ficarmos reféns dessa estranha obrigação que nos invade de termos de encontrar razões suficientes para esclarecer o que ouvimos. É certo que podemos ouvir sem compreender, e esta maneira de escutar não é melhor, nem pior do que qualquer outra. Em geral, o que não gostamos é de ser compelidos por um estranho processo de compreensão que acaba sempre por se tornar tirânico e militantemente contra a beleza da razão intuitiva e inconsciente. A partir desta cadeia de factos e presunções a que chamamos razões, acabamos eventualmente por encontrar racionalidades para quase tudo, racionalidades que servem para nos dar coragem e para nos incentivar a sermos o mais convincentes possível. É, portanto, a força das razões por detrás das nossas avaliações que nos leva a ir até ao infinito possível das decisões que tomamos. Cada pensamento é assim visto como um teorema que precisa de ser permanentemente provado com explicações, uma vez que quando falamos de jazz expomos pontos de vista racionalmente construídos. Neste sentido, podemos dizer que criação de algo já não é garantia de compreensão, como antigamente era; agora parece que só podemos inventar o que compreendemos.
Na cultura, curiosamente, não existe uma relação visível e constatável entre a quantidade e a qualidade, o que significa que se quisermos formar uma ideia clara sobre o alcance dos movimentos culturais, temos forçosamente de incluir a história dos fracassos nessa reflexão. A perceção da grandiosidade do jazz passa assim também, pela audição de trabalhos que por diversas razões não foram considerados maiores – isto porque muitas vezes pequenos instantes sem importância podem ser referências essenciais desta música. A descoberta de razões que nos fazem acreditar no jazz e que fazem com que o possamos avaliar e gostar de ouvi-lo, não passa necessariamente pela obrigação de encontrarmos em cada audição a mesma força simbólica de uma obra-prima, nem pela deteção de um equilíbrio entre os valores estéticos e artísticos das grandes obras. Escutar jazz não é um ato menor ou inútil; tudo funciona como contraponto de avaliações de gosto e capacidade crítica. Por isso, quando escutamos jazz não estamos somente a interagir com a realidade musical do presente, estamos também a interagir connosco – e ao escutarmos ouvimo-nos, pensamo-nos, assimilamo-nos, emocionamo-nos e memorizamo-nos.
Em resumo, por essencial que seja o ato de escuta, o contacto com o jazz não pode ser somente circunscrito à mera rotina de ouvir; ele requer a ativação de mecanismos de receção, como se fossem aplicações de software inteligente. A nossa interação com esta música tem de ser pessoal e intransmissível, não podendo ficar reduzida a um compêndio ou a sugestões de enciclopédias online. Sentir o jazz é um trabalho que tem de ser feito por cada indivíduo, num diálogo consigo próprio, feito de recuos e avanços na exploração de linhas sinuosas de possibilidades de compreensão.
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No jazz qualquer planificação é vista como uma espécie de heresia – o que significa que, através desta linguagem musical, o instável tornou-se o elemento fundamental de criação. No ato de improvisar, que é fundacional do jazz, existe uma espécie de uma aptidão inconsciente que o músico não domina, nem pode dominar, completamente. A dificuldade que subsiste em aceitar esta ideia vem do facto de as nossas consciências terem sido moldadas e educadas para pensar a realidade a partir de certas certezas; e, complementarmente, de aceitarmos que uma ideia de competência sem conhecimento pressupõe admitir uma mudança de paradigma sobre as nossas formas de pensar. Muitas das construções do jazz ocorreram e continuam a ocorrer no cruzamento aleatório de diversas oportunidades que interagem entre si e em que os principais momentos se revelam como espaços de intervenção que são muitas vezes caóticos. Estas improvisações produzem efeitos de libertação, agindo de modo intermitente sobre a música, e expressam estados de descontentamento com o que já foi feito, desenvolvendo-se posteriormente na procura de novos sons.
Contudo, num contexto em constante evolução há sempre perigos; as transações reais com o nosso mundo podem ser simplificadas, idealizadas ou abstratizadas em demasia, correndo-se assim o risco de transformar a atividade humana numa situação confusa e impessoal. As alterações tecnológicas que definem a evolução modelam o som constantemente; através da produção de novos equipamentos, som e tecnologia estão cada vez mais ligados, formando diversos modelos de criação. Apesar de tudo, no entanto, e embora reconheçamos que no jazz atual se verifica uma maior aproximação às tecnologias e às novas sonoridades eletrónicas e computorizadas, estes avanços têm reafirmado, mais do que ameaçado, a persistência da improvisação.
Isto talvez aconteça porque no interior de nós próprios reconhecemos subliminarmente que o improvisador possui algo mais do que a máquina, que basicamente nós somos dotados de elementos sensoriais que estes mecanismos cibernéticos ainda não conhecem porque não têm sentimentos, consciência, estados de espírito ou imaginação. Desta interação entre sentir e produzir, os músicos fazem aproximações intuitivas á construção musical em tempo real, mapeando assim um território sonoro onde persiste um sistema híbrido de conceção musical – uma mistura de visão inteligente e evolução natural. No processo de improvisar há algo mais do que o instante da sua execução e que não passível de ser detetado – estas são as partes escondidas da música, as suas forças intuitivas, os seus elementos espontâneos, os estados ocasionais, as forças de alteráveis, as mudanças que vão além do racional e do consciente. São, no fundo, elementos inapreensíveis que, apesar da sua opacidade, deram importantes contributos para o desenvolvimento e consolidação desta música. A grande diferença entre a construção computacional e a elaboração humana é, no fundo, a presença dos algoritmos, uma vez que o músico, ao contrário da máquina, não está submetido a objetivos ou planos predeterminados.
No jazz nunca houve metas para serem atingidas; nesta música ninguém é capaz de planear ou antecipar o que vai fazer. Esta ausência de certeza sobre o que irá que subsiste no âmago desta inovadora forma de expressão representa assim, paradoxalmente ou não, aquela que é uma abertura inaudita para o futuro.