AUTOR: IVO MARTINS
EDIÇÃO: (Catálogo) Centro Cultural Vila Flor DATA: Julho de 2023
A galáxia radiosa da criação artística alberga no seu interior uma matéria negra ingovernável e incontrolável, numa mistura de impulsos que desconhecemos totalmente. Por esse motivo, o nosso trabalho de invenção apenas consegue sondar ao de leve esse material obscuro, sem conseguirmos perceber as suas formas e sem sermos sequer capazes de entender os seus movimentos. A arte é uma construção e, enquanto construção, é relativa; relativa no sentido em que tem que ver com contingência, volatilidade, acaso — as circunstâncias específicas dos contextos em que ocorre e as múltiplas mudanças de direção a que estamos associados. Assim sendo, a criação emerge de um grave desequilíbrio crítico entre interior e exterior, fruto das crises existenciais cujos fatores são difíceis de controlar; neste sentido, a crise representa um desfasamento corporizado na crítica, ambos os termos bastante esgotados pelo seu uso abundante nos nossos discursos diários.
Neste mundo também classificado de a-histórico, nada se consegue impor de modo categórico, e as contradições fazem parte dele mesmo; quando sentimos que não podemos controlar as contradições, sentimo-nos descansados e apontamos para a crise. No entanto, se olharmos para o passado, percebemos que crítica e crise sempre fizeram parte das narrativas dos humanos, e os termos em que aquelas foram expostas determinaram o seu uso como alertas. Entre os termos “crise” e “crítica”, o nosso poder narrativo vai-se esbatendo, desfeito em elucidações circulares que nada dizem e nada resolvem — falamos da crise basicamente para não estarmos calados, uma vez que esgotamos os nossos recursos explicativos e o silêncio se tornou insuportável. Parece, portanto, evidente que atualmente estamos cercados por demasiados discursos e excessos de palavras. Sob a capa de uma tagarelice erudita que acusa a sociedade atual de fomentar crises na cultura, e mais especificamente nas humanidades, a crise imita-se e repete-se, como o simulacro de uma verdade tornada relativa e banal com todos os seus clichés.
Tal como as formas ancestrais da música e dança, a crise domesticou os ruídos repetitivos, cuja textura harmónica e rítmica, sendo invariante, reflete a nossa incapacidade de agir, um pouco como se o dialeto de uma tribo tivesse sido abafado pelo burburinho gramatical da informação em cadeia transformada em fake news. Neste sentido, vivemos num sistema em que é como se a voz longínqua dos nossos antepassados tivesse sido pura e simplesmente postergada para a tumba imobilista dos museus e dos arquivos online — talvez vivamos hoje um tempo demasiado estranho em que “crise” e “crítica” já não nos sugerem nada; ou então talvez estejamos a exigir a estas palavras mais do que elas podem explicar e do que elas já não nos podem dar. Neste contexto, crise e crítica constituem expedientes oportunistas, sínteses de ocasião a que recorremos para vaguear na deriva nas ondas das nossas retóricas diárias, as quais se movimentam como vírus pretensiosos em diversas teatralizações do vazio.
Hoje somos diariamente influenciados por narrativas cruzadas, umas otimistas, outras pessimistas, outras ainda tristes, alegres — polos de positividade e negatividade, racionalidade e irracionalidade que nada servem contra o uso indiscriminado da denominação/causa baseada na ideia de crise. Deixamos prosseguir o pequeno-grande discurso das nossas crises porque é uma solução fácil e não dá muito trabalho justificá-la. Através da crise, criamos mecanismos de autoengano e enganamo-nos uns aos outros, gerando mal-entendidos de toda a espécie que favorecem posicionamentos erráticos. Todas as ideias que possam desencadear juízos de valor verdadeiros acabam por ser distorcidas e tornadas desfasadas do real, por via de posicionamentos críticos que nos ajudam a promover a confusão em que a crise nos envolveu. Com a crise surge uma explicação derradeira, muitas vezes assente na vulgaridade das críticas e vice-versa; nesse sentido, crise e crítica são mais reflexos dos nossos problemas pessoais, interiores e coletivos do que propriamente problemas exteriores, estruturais, conjunturais ou circunstanciais. Em razão disto mesmo, a crítica torna-se inconsequente, porque atalha caminhos e disfarça as dificuldades de compreensão, simplificando o que temos de fazer — porque não sabemos, nem queremos saber, culpamos a crise.
As crises, porém, não impediram nunca que pessoas sensíveis criassem poeticamente espaços de imaginação e ação. Quando analisamos o passado percebemos que crise só poderá ser entendida como uma palavra-aviso, inventada apenas para nos ajudar a navegar e nunca deixando de ser mais do que era — isto é, menos do que imaginamos, muito menos ainda do que percecionamos. A crise torna-se então fantasma, entidade abstrata que acusa e critica ao mesmo tempo que se movimenta numa simbiose estranha entre certeza e incerteza, claridade e obscuridade.
Esta exposição pretende realçar a importância de agirmos intuitivamente nas várias tentativas, sempre limitadas, de percecionar a arte a partir do conceito de crise. A experiência da realidade presente leva à desconfiança sobre tudo o que se apresenta como “novo” e a desvalorizar essa sensação enquanto subterfúgio para evitarmos mais redundâncias. Num ambiente onde proliferam demasiadas novidades, somos obrigados a duvidar de tudo (das coisas exibidas como “novas” e das outras que estão à sua volta) por forma a paralisar e atenuar os nossos impulsos mais genuínos, uma vez que o novo é algo que nos distrai e envolve de modo viciante, subvertendo e deformando visões.
O novo age de modo sub-reptício sobre o nosso inconsciente e cria dependências na nossa mente, de tal forma que podemos dizer que somos iludidos e induzidos a pensar que ele está em toda a parte. Há no novo uma ideia de destino, uma fatalidade para um abismo que parece irracional, um destino que se torna fator imparável de sucesso, materializado num excesso que parece justificar a sua existência. Nesse sentido, a condição de sermos sujeitos pós-pós-pós-modernos define-se pela ideia de que o novo olha por nós como se estivéssemos expostos no papel de vítimas em vitrines ingénuas.
Mas a nossa história, tal como diz George Steiner, não é senão uma cronologia de crises, o que acaba por ser uma forma de dizer que elas sempre existiram e que nada verdadeiramente de novo existe debaixo do sol; razão pela qual nós, bem como os objetos artísticos que produzimos, somos sempre de uma forma ou de outra os seus filhos.
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