AUTOR: IVO MARTINS 
EDIÇÃO:
(Catálogo) Centro Cultural Vila Flor     DATA: Abril de 2022 





No mundo global, tudo é demasiado pequeno e mutante, tudo está simultaneamente próximo e distante: as escolhas e as obrigações dizem respeito a todos e não somente a estatutos. O novo trajeto da humanidade deve projetar-se no futuro, esse grande desconhecido que nos surpreende e limita pois, sendo imprevisível, incita a pensar em novas soluções de identidade. Da mesma forma, a direção de uma vida, a sua principal finalidade, o seu destino último, só poderá ser beneficamente atingido, preservando a sua viabilidade futura, se, com mais ou menos tecnologia, cada pessoa tenha condições para empreender um esforço de reconhecimento individual e integração coletiva com os outros – conhecendo-se a si própria através do Outro, introduzindo-o no seu próprio eu, permitindo-se estabelecer uma relação coletiva responsável, cuja dependência mútua nos obrigue a refletir em conjunto tudo o que nos liga.




























É neste mundo que os Campanice realizam, com um apurado sentido de sobrevivência, os seus percursos. Eles são um coletivo de artistas nómadas e camaleónicos que fazem das deambulações em conjunto estratégias de intervenção, através das quais sondam e mapeiam os locais de contacto. Estes artistas formam um grupo que é ele próprio a sua base de trabalho, realizando uma espécie de prospeção expedicionária sobre o futuro; coligam-se numa observação individual que posteriormente unificam numa dimensão coletiva, cuja ligação aos territórios onde eles se instalam e interagem projeta realidades locais. Neste processo ora se isolam na sua individualidade particular, ora se juntam em associações espontâneas de ideias, revelando que existe neles uma cultura de igualdade, cooperação e liberdade. Quando se observa a forma como eles trabalham as suas obras, percebe-se que os seus membros partilham um projeto de vida: não são iconoclastas provocadores ou militantes utópicos, porque reconhecem que a fase das grandes utopias, é passado; mas indicam ter consciência de que para se ser artista no mundo presente, tem de se saber escapar ao poder das máquinas burocráticas. Quando os Campanice declaram que querem descobrir a fórmula de “plantar um penedo” estão na verdade a dizer que preferem não participar em vez de ser parte; que estão interessados incentivar diversidades do que em entrar em concorrência; que mesmo as coisas as mais irrelevantes, são importantes.


No contexto deste coletivo de artistas nada está pré-fixado, mesmo que simbolicamente se articulem discursos, razoavelmente estruturados, mesmo se o diagrama ou a anotação num mero caderno de apontamentos é um elemento secundário na estruturação das obras. Porém, a lógica de funcionamento deste grupo pressupõe que nada é suscetível de ser aprisionado numa escrita artística meramente padronizada e regular, porque se as obras fossem descritas e aprisionadas pela gaiola dourada da escrita, a beleza das suas confabulações e metáforas perder-se-ia para sempre. Com os Campanice, as obras produzidas exprimem sempre uma relação interior coletiva e tolerante, só suscetível de se aguentar porque foi aprofundada. Quando os seus membros se reúnem e criam no contexto de um coletivo, a soma geral dos vários criadores é maior que a quantificação das partes, e cada objeto produzido reflete essa estranha contabilidade. Dentro do grupo tudo é contagiável e influenciável, cada obra deixa um rasto de perguntas sobre o modo como nasceram, e são estas vibrações que resultam de uma atividade criativa que desencadeiam um universo de questões nos domínios da subjetividade sem fronteiras definidas.





























Hoje, a arte é muitas vezes percecionada como abismo visual e sonoro, um lugar necromante onde imagens mortas deambulam na terra dos vivos. Quando estamos perante zonas perigosas de entendimento como as criadas pelos Campanice, os campos assimilação sem retorno criam instantes libertários, mistos de liberdade e submissão que tanto pode ser intenso e ativo como gerar uma espécie de impotência. Todos sabemos que não existe realmente tal coisa como o livre arbítrio, e que também o artista é uma vítima das circunstâncias; que no fundo, somos o resultado de contingências, de vivências e experiências quotidianas, que acompanham as nossas intervenções como se fossem sombras de atitudes compulsórias. Estas sombras não são, no entanto, pulsões à solta, cuja força destravada arrastaria o observador para abismos de liberdades excessivas. Em zonas de ninguém, como no caso desta plantação imaginária de um penedo, cada ato criativo é a negação de si mesmo, exigindo de nós, o Outro sem o qual a arte seria um simulacro, uma noção de limite.

A arte existe atualmente numa espécie de torpor imagético, adormecida à sombra de uma inércia preocupante onde as obras nascem sob o efeito de perigosas anestesias, cuja indolência gera mal-estar. Em termos genéricos, pode dizer-se que a arte do presente é conceptualmente cínica e conduz as pessoas para perigosas demonstrações de ironia, muitas delas sem interesse. Do cinismo à má-consciência vai um curto caminho.



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