AUTOR: IVO MARTINS 
EDIÇÃO:
Guimarães Jazz 2021 - Câmara Municipal de Guimarães/ Associação Cultural Convívio/ A Oficina     DATA: Novembro de 2021 





Os sentidos fornecem as informações iniciais, os tijolos com os quais o cérebro constrói as casas do conhecimento e as cidades do seu pensamento. Nestas construções, as palavras são as ruas que estabelecem relações e tecem o comportamento, cuja estrutura acaba por se tornar narrativa. Escutar é estar só e ao mesmo tempo acompanhado, numa aventura que implica assumir uma relação comprometida e refletida com a música. O cérebro de cada pessoa é único, e o seu património genético também; da mesma forma, também a experiência do mundo acumulada no interior de cada indivíduo é diversa nos conteúdos e informações e, por isso, ninguém escuta a música da mesma maneira, uma vez que cada aparelho auditivo, sendo uma porta aberta para o exterior, recebe e processa os sons de forma distinta. A mesma música, quando em contacto com mais do que uma pessoa, gera construções diferentes, apesar dos tijolos serem os mesmos, e desencadeia configurações arquitetónicas distintas porque as competências, capacidades e cultura de cada um não se copiam.

A capacidade de escutar não implica automaticamente um maior sentido crítico. Há nesta forma de abordagem uma espécie de mistério difícil de desvendar; e, de facto, não é fácil explicar as razões pelas quais certos indivíduos sem formação musical, nem grandes conhecimentos técnicos, possuem uma apurada sensibilidade perante a música, apresentando níveis de exigência elevados. A arte não é uma ciência exata e o jazz, sendo improvisação, surge como um buraco negro, como um espaço infinito sem limites nem forma mais ou menos definida. Quando queremos compreender este fenómeno e nos deparamos com a música de um concerto, temos pela frente uma zona obscura difícil de situar que ainda é mais evidente quando ficamos de frente com a improvisação; perante o jazz todas as pessoas libertam pensamentos, embora com conteúdos diferentes, e as ideias deslocam-se de palavra em palavra independentemente das consequências e das condições experimentais acabadas de evocar. Nesta música, as coisas não são óbvias nem evidentes; o jazz apela mais ao significante do que ao significado; se o significante, ou seja, aquilo que está em aberto, é totalmente absorvido pelo significado, o que se escuta perde encanto e fulgor. A elegância da linguagem do jazz deve-se, portanto, ao luxo do significante; só o excesso e a excessividade de significante faz com que a música como linguagem pareça mágica, poética e sedutora.


Em resumo: para se entender o fenómeno jazzístico não são necessárias grandes teorizações, nem elaborações intelectuais; ter formação superior nesta música não dota ninguém de uma especial competência. Para captar a essência da improvisação, é necessário olhá-la em termos semióticos: o significante representado pelo invólucro é mais importante do que o seu interior, o conteúdo, e relega para mais tarde a descoberta do significado. No jazz, quanto mais se adiar a exposição do conteúdo, mais se intercambiam gestos propiciatórios de uma intensa comunhão, o que significa que o processo de entendimento nesta música é interminável e infinito, exigindo esforços e dedicação constantes. Neste sentido, compreender o jazz pode ser encarado como projeto de uma vida.



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As narrativas são, no essencial, fórmulas assertivas de compatibilizar o ideal com o real; são experiências comuns de participação que, sendo incompletas e parciais, deixam atrás de si inúmeros testemunhos presenciais. No fundo, a narrativa não é mais do que uma maneira de se realizar uma procura sobre futuros possíveis, soluções alternativas concebidas por um imenso coletivo de pessoas que, apesar de não terem ligação direta entre si, elaboram um texto comum. Este texto é, nesse sentido, composto por inúmeras ficções, estimuladas pelos diversos momentos vividos que são parte da história do Guimarães Jazz, as quais são posteriormente integradas num todo comum de palavras, ideias, pensamentos e ações que dão corpo ao acontecimento.


Para se descrever uma estrutura complexa, cuja narração se perderá em enumerações infindáveis, em contingências inimagináveis, em especulações sem fundamento, as palavras são um meio essencial de compreensão. Tal como as palavras, também os números não explicam tudo: condicionalismos inescapáveis, situações inevitáveis, momentos surpreendentes, resultados inesperados, consequências impensáveis, atitudes irreverentes, atos criativos, tudo isso interfere com a realidade de cada ser vivo ou cada ser cultural. Por isso, no caso do Guimarães Jazz, é necessário ultrapassar os limites da linguagem comum e a crueza dos números para o descrever ou explicar.


Um festival é uma espécie de hipertexto em grande parte obscuro e indizível e de autoria múltipla. Se assumirmos este princípio, o Guimarães Jazz surge-nos como um documento anónimo e generalista, cujo conteúdo foi redigido, ao longo dos anos, por muitas pessoas distintas. A nossa ligação com a realidade passou, assim, por saber incluir no espaço do festival diferentes modelos de intervenção, sugeridos pelos diferentes pelos diversos intervenientes que nele participaram e acorreram. Como refere Bertrand Russell, existem dois tipos de conhecimento: o adquirido por descrição e o vivido por contacto. O festival deu protagonismo e prioridade às pessoas e entidades, não olhando a distinções; foi capaz de unir músicos, público e variadíssimas entidades que o apoiaram num projeto desde o seu início, constituindo um todo comum de intervenção, construído lentamente ao longo de trinta anos.


Somos, no fundo, uma experiência alargada de divulgação do jazz que se manifesta por opções polivalentes, transgeracionais, complexas, pluridisciplinares, suscetíveis de transpor todas as fronteiras do jazz. O nosso programa abre-se a todos, a todos os géneros de público e de artistas, desde jovens ainda em formação até aos músicos fundamentais da história do jazz, numa imensa largura de vistas que permite visualizar novos horizontes de possíveis, com uma dimensão, grandeza e espectro de opções manifestamente infinitas. Ao permitir todo o tipo de escolhas fazemos com que todos indivíduos estejam verdadeiramente comprometidos com o jazz e tentamos evitar os perigos da entropia presentes em todas as ações humanas. Cada indivíduo tem o seu espaço de expressão no contexto do Guimarães Jazz, o qual encaramos como uma porta aberta para o mundo, ousando uma postura que favorece a diversidade, igualdade, democracia, comunicação. Através da diversidade de músicos e de pessoas, geram-se possibilidades de se formarem coabitações inéditas e invulgares que se sobrepõem ao estatuto de cada pessoa. Este regime de proximidade cria relações únicas e especiais entre todos, músicos, público e organização, levando o festival para interações humanas mais profundas.


Existe em nós a preocupação de evitar a fragmentação em especialidades cada vez mais ínfimas e míopes, e de nos esquivarmos ao esforço das visões de conjunto, imprescindíveis para se fazerem comparações e sopesar diferentes pontos de vista. O jazz tem de ser posto ao serviço de um conhecimento mais geral, não a conceções limitadas que se esgotam em si mesmas; tem de se alargar a todas as formas e estratégias criativas, para que não se remeta a meras reproduções internas desprovidas de aberturas para o exterior. É, portanto, por força da carga humanista do festival que a sua identidade se demarca; são estes pormenores que tornam o Guimarães Jazz um caso único e raro nas suas diversas manifestações, pois o acontecimento dá tempo para que exista um espaço de reflexão e questionamento contra as razões subjacentes dos discursos dominantes.



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Hoje, não existe um jazz fixado numa fórmula inamovível de uma música normativa. Foi a partir desta verdade, transformada em princípio orientador, que ao longo do tempo fomos estruturando o Guimarães Jazz. É evidente que esta premissa pode ser refutada; contudo, foi neste pressuposto básico, embora discutível e relativo, que concebemos o festival. Não acreditamos em crenças fortes e sólidas; não assumimos posições extremas que roçam a ortodoxia e o conservadorismo; não procuramos apoio nas uniformidades de grupo, onde as certezas simples e fáceis se confundem com matéria indiscutível e com a voz da razão.


Arriscamos pensar e decidir tendo por base um princípio simples de diversidade do jazz, da música, das expressões artísticas, acrescidas de experiências no campo formativo e da interação com coletivos de músicos. Defendemos todos os tipos de jazz, nas suas mais diversas categorias e classificações. Acreditamos que o âmbito deste estilo musical não é circunscrito, nem determinado por fações, grupos, elites ou castas, precisamente porque o jazz atual desenvolvese através de confluências, círculos ou movimentos. Acreditamos, no fundo, que muito está por inventar e ainda não tem nome. Hoje, mais do que nunca, o festival deve representar um espaço aberto de intervenção, transformado num mecanismo inclusivo de troca e partilha de ideias, basicamente não sectário; deve aspirar a fazer do mundo um campo aberto, plural, tolerante, democrático, transfronteiriço, adaptado ao presente e ao futuro.


O Guimarães Jazz não é, portanto, um festival temático, mas um acontecimento pluridisciplinar e aberto, uma plataforma de instantes que não tem como última finalidade a apresentação de um só tipo de música. Acreditamos nesta estratégia desde o princípio, mas este modelo de abordagem desencadeou, durante a sua história, algumas críticas extremas e contundentes.


Algumas pessoas ligadas à crítica e aos meios de comunicação da altura acreditavam num jazz mais ortodoxo, mais preconcebido e formatado; o festival, ao apresentar projetos muitas vezes assentes em conceções estéticas e estilísticas mais abstratas e abertas, colidia com as ideias prevalentes. Por essa razão, muitos concertos do festival foram sujeitos a críticas negativa nas quais se exprimiam frustrações de expectativas e deceções. Mas nós sabíamos, no nosso íntimo, que todas as posições inamovíveis assentes na defesa intransigente de certos tipos de jazz, definidos por cristalizações de características, não permitiam relativizar nem modelos, nem categorias.


Quando se atua segundo lógicas extremas perdem-se coisas muito importantes porque não há espaço para se pensar, nem para duvidar. Quem se orienta por conceitos preestabelecidos está fechado à velocidade das mudanças e não admite diálogos com a realidade envolvente. As modas artísticas mudam rapidamente; atualmente não se faz música como a que era composta e tocadas há cinquenta, quarenta, trinta, vinte ou sequer dez anos atrás. As circunstâncias alteram-se em curtos espaços de tempo, apesar de existirem analogias entre as diversas formas musicais; portanto, as pessoas cujo pensamento e assimilação estão cristalizados nas fórmulas estritas e acabadas desta música não podem manifestar qualquer tipo de concessão ou cedência face à realidade presente do jazz. Falta esforço imaginativo ao pensamento radical, e este fator implica a incapacidade de manifestar uma atitude ética perante a criação artística. A ética na arte define-se pela possibilidade de o ator cultural conseguir-se colocar no lugar do outro; quando se está perante a grande responsabilidade de uma escolha, temos de ser hábeis e saber minimizar um pouco o peso desta posição, por forma a retirar de cima de nós o encargo de suportar a totalidade de uma obrigação. Ao atuarmos desta maneira estamos a contribuir para viabilizar o pensamento dos outros, as suas ideias, a diversidade de opiniões, a tolerância dos testemunhos, dando assim espaço para eles serem protagonistas no mesmo cenário em que nós existimos.


Atualmente, é fácil encontrarem-se no ciberespaço grupos musicais para todos os gostos, seguindo estilos e classificações habitualmente usadas pela história do jazz - Swing, Bebop, FreeJazz, JazzFusão, HardBop, JazzElétrico, etc.; se passarmos para as plataformas digitais de venda é frequente encontrarmos novas arrumações em “playlists” acessíveis a todos os utilizadores, seguindo critérios totalmente diferentes dos anteriores. As composições sugeridas são extraídas de obras consideradas fundamentais, num processo de segmentação mais descomprometido e genérico, quase exclusivamente utilitário – JazzRelax, LateNightJazz, JazzClassics, Jazz X-press, JazzVibes, JazzRomance, SmoothJazz, ChilledJazz, etc. Esta reorganização do gosto do jazz e da música fez-nos perder a visão de conjunto e não perceber que o jazz está mais fragmentado, difuso e desenraizado. Neste tipo de conjuntura, o aspeto essencial de construção passa pela expressão de identidades frouxas, soltando a música das suas classificações habituais; criam-se assim novas nomenclaturas baseadas em noções acríticas, mais flexíveis e pragmáticas. Nestas circunstâncias, qualquer movimento implica abandonar o antigo vocabulário e inventar um mundo digital, uma outra realidade assente numa desestruturação de categorias. No entanto, e apesar das ligações nas redes sociais, as pessoas continuam a precisar de grupos para identificarem a sua existência; necessitam de novos associativos que funcionam como comunidades de amparo com o fim de minorar os efeitos nefastos de uma solidão rodeada de multidões. As novas formas classificatórias usadas correntemente online, comunicadas de modo abstrato e impessoal via internet, refletem esta nossa existência nómada e desenraizada que, com a digitalização e com o incremento do audiovisual, enveredou por um processo irreversível de simplificação. Não há qualquer hipótese de retrocesso nesta caminhada para o abismo; para se chegar a um grande número de utilizadores, prescindiu-se de tudo; a liberdade e espontaneidade foram negociadas e, com esta mudança, aconteceu uma clara perda de identidade no mundo da música, afetando o jazz de forma sensível.


Quando se comparam as novas categorias musicais com as mais antigas tem-se a perfeita noção das alterações e das dependências geradas pelo mercado; antigamente, os termos usados reafirmavam a criatividade e a liberdade. Os estudos e pesquisas históricas encetadas por inúmeros investigadores atestam a veracidade dos conceitos que foram apurados ao longo do tempo. Esta nomenclatura de nomes e denominações era um sinal de coesão interna; as atuais subdivisões, pelo contrário, são reordenações superficiais, redirecionadas para o consumo, num terreno fértil em propostas de adesão fácil. Com elas compram-se sentimentos de pertença e asseguram-se sensações de segurança efémeras e acessíveis que exploram ligações débeis. As relações daqui provenientes são imediatas e facilmente descartáveis; o pretenso cosmopolitismo destes vínculos, tantas vezes referido pela cultura contemporânea como uma das suas mais belas manifestações, desabou, com o passar do tempo, num romantismo ilusório e facilitador que visa apenas promover o entretenimento, o ócio e o lucro musicais. As identidades atuais são homogéneas e dependem da cultura do clique; nesta realidade vive-se uma cultura zombie, sob a égide de um torpor psíquico inconsequente e indolor. Neste momento, já não contam as formalidades e os protocolos de identificação, pois tudo é irrisório; ser pragmático é participar no consumo e, de modo indireto, zelar pelo aumento de rendimento; quanto ao resto, qualquer pessoa pode ser inconsequente à vontade porque ninguém é acusado de heresia.


Como já afirmámos inúmeras vezes, o jazz atual não é hoje uma centralidade cultural ou geograficamente assinalada, não é um estado fixo, circunscrito a um conjunto de regras inamovíveis, nem uma estrutura exclusiva facilmente detetável. A arte, como a música, é uma atividade desinteressada que não contém um fim em si mesmo; não possui uma utilidade em concreto e não existe nenhum interesse a ela associado. Só assim ela consegue veicular uma visão do mundo suscetível de ser incorporada na nossa existência de maneira redentora contra a insignificância, a arbitrariedade e a contingência. Para conseguir libertar o indivíduo da sua frágil condição de ser humano, a obra de arte tem de ser formada por compromissos duradouros e sentimentos genuínos; neste sentido, a tradição como conjunto de obras de arte de referência em constante evolução constitui um terreno comum de criação, onde o novo e o surpreendente germinam livremente. O que o Guimarães Jazz procura explorar é, na sua essência, a força da obra de arte, fomentando compromissos duradouros e sentimentos genuínos que são a condição fundamental para libertar o indivíduo da sua subordinação ao consumo.



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Nos seres vivos, olhados como sistemas biológicos, o bom funcionamento do organismo depende da capacidade de diferentes elementos estabelecerem relações ordenadas, criando nesse processo uma organização interna. Isto acontece através de processos de sobrevivência rigorosamente selecionados pela evolução das espécies, implicando ao mesmo tempo um custo energético. Sabe-se que o cérebro é controlado por uma curiosa harmonia entre excitação e inibição; se algum parâmetro excede a descarga de impulsos nervosos, ao ponto de se poderem gerar graves patologias, entra imediatamente em ação uma função compensadora que, através da inibição, reconduz uma descarga verificada em padrões ditos normais. Assim, qualquer organismo biológico, no seu movimento ontogénico do nascimento e crescimento até à morte, sofre diversas alterações nas suas relações de controlo, gerando desequilíbrios entre os seus órgãos ou com o ambiente; se não forem devidamente compensados e corrigidos, estes desfasamentos causam graves patologias. O envelhecimento é outro fator de desequilíbrio, devido à progressiva alteração das relações internas entre órgãos; este processo é de tal forma lento que poderá passar despercebido. As partes elementares de um organismo, que trabalharam harmoniosamente ao longo de grande parte da sua vida, vão deixando de controlar essa ordem, caindo num estado irreversível de desordem; pode dizer-se então que todo o organismo está sujeito às leis da física, cujos princípios regulam todos os processos de transformação de acordo com a passagem do tempo.


A ciência analisou este problema e descobriu leis gerais de funcionamento capazes de explicar este fenómeno; os biólogos foram mais longe nas suas descobertas e introduziram uma medida fácil de compreensão, capaz de avaliar o grau de desordem num sistema em transformação. Criou-se a noção de entropia para referir que, na falta de correções suscetíveis de integrarem no sistema novas energias do exterior, este irá mais cedo ou mais tarde colapsar de modo irreversível. Ao longo da história, o corpo humano serviu de metáfora para explicar os movimentos dos corpos sociais; de facto, as organizações formam sistemas compostos por partes, onde indivíduos singulares ou associados em grupos interagem entre si com o fim de alcançar determinados objetivos; deste modo, descobriram que se mantiverem um bom nível organização, este fator permitir-lhes-á produzir muito mais e em melhores condições; perceberam que um indivíduo a trabalhar sozinho, tem muitas mais limitações no controlo das diversas relações entre as componentes da organização, onde cada órgão desempenha um papel fundamental e específico. Mas claro que, quando as soluções encontradas não conseguem corrigir os desequilíbrios, nem sempre as coisas correm bem e muitas vezes surgem problemas decorrentes do funcionamento da organização, devido a desfasamentos dos seus mecanismos internos e ambientais.


O Guimarães Jazz é, tal como todos os seres vivos ou sociais, uma construção caleidoscópica que fica mais nítida quando percecionada segundo uma ótica retrospetiva. O festival foi alterandose com o passar do tempo, enfrentando sem receio o inevitável desfasamento entre realidade e ficção. Nestas três décadas de existência, fizemos de tudo; pusemos em prática visões utópicas e disruptivas, tendo fracassado, acertado e recuperado e aperfeiçoado algumas delas. Embora com os pés assentes no chão, imaginámos e arriscámos sem receio; nunca perdemos a noção da realidade que nos levou ao encontro das pessoas. O público, essa entidade abstrata e anónima, nunca representou para nós um aglomerado inerte de indivíduos e interesses desprovidos de conteúdos, porque a intenção do Guimarães Jazz foi sempre a de reavivar a ideia de espaço público, visto como esfera social e cultural integrada. Todas as alteações estruturais verificadas no meio jazzístico português são consequência de ideias emanadas por reflexões de toda a ordem; o Guimarães Jazz não tem de classificar, nem catalogar pensamento, porque todo o indivíduo que participou no festival é simultaneamente ator e participante, e as ideias que elabora são elementos fundamentais de compreensão e entendimento nesta enorme onda de modificações.


Hoje, trinta anos depois da sua fundação, o festival vive um tempo diferente porque muitas coisas foram acontecendo à sua volta, obrigando a constantes adaptações e mudanças. Atualmente, assistimos de maneira silenciosa a uma enorme alteração de paradigma; a conceção antropológica do saber, que colocou o homem como único produtor autónomo de conhecimento, foi substituída por um processo de extração e processamento em massa de dados, que passaram determinar a vida das pessoas, regendo a sua existência. Face ao poder tecnológico das máquinas inteligentes, o homem teve de abdicar do papel de criador do saber, entregando essa função ao processamento e tratamento de informação; com esta alteração, ele deixou de ser um sujeito cognoscente soberano para passar a ser um mero utilizador de conhecimento, produzido por mecanismos superinteligentes. Esta nova produção do saber ativada pelos dados prescinde da presença humana e da sua consciência; grandes quantidades de informação são extraídas através do nosso comportamento em rede, excluindo o indivíduo de uma atividade que outrora foi centrada na sua capacidade de pensar e compreender. Com a ascensão dos métodos de quantificação e parametrização do conhecimento, o sujeito quase desaparece, ficando dependente de um conjunto de algoritmos que formam extensos pacotes de informações manejáveis e calculáveis por potentes mecanismos processadores. O novo conhecimento produzido pela big data vai muito para além da nossa compreensão; a capacidade de compreensão assente na nossa faculdade cognitiva, quando comparada com a potência da máquina superinteligente do futuro que trata e processa os nossos dados, é demasiado pequena para ser relevante; sentimos que estamos a ser constantemente ultrapassados por máquinas mais rápidas que pelo facto de não precisarem de compreenderem, nem pensarem, concentram toda a sua atividade no cálculo.


O Guimarães Jazz, como acontecimento imaginado e pensado, poderá vir a ser reduzido no futuro a um mero conjunto de dados; no entanto, hoje sabemos que o puro acesso à informação não tornou as pessoas mais livres; quantas vezes uma enorme capacidade de comunicar está diretamente relacionada com a um maior poder de vigiar e monitorizar? O processamento de informação produz um conhecimento que, nalgumas das suas características, é dominador; chegados aqui, pode afirmar-se que vivemos tempos estranhos e complexos, no qual as pessoas poderão vir a ser controladas e influenciadas nas suas decisões. Enquanto o algoritmo numera, a narrativa desencadeada pelo pensamento enumera; por outro lado, a redução de toda a atividade humana a data torna as escolhas das pessoas transparentes porque visíveis, transformando-se em ostentações totalmente pornográficas. O homem é por natureza um jogador, mas com o processamento de dados não tem espaço para empreender os seus jogos; quantas vezes desejamos que o nosso contacto com o mundo transborde as nossas cadeias da racionalidade?; quantas vezes aspiramos que por instantes seja desencadeada uma desordem capaz de assumir formas e modo completamente distintos, numa fantástica precipitação de casos e acontecimentos espontâneos e inimagináveis? Foi nestas condições de elaboração que as ideias surgiram e as rotinas instaladas foram desafiadas; o Guimarães Jazz surgiu porque se acreditou que a música era capaz de estimular novas coordenações harmónicas, usando-se as faculdades cognitivas para, através delas, gerar conhecimentos e prazeres baseados no jogo da imaginação e da criatividade. Perante estas circunstâncias, temos de admitir que vivemos tempos difíceis para o futuro da cultura; o papel do homem, olhado como o único portador dessa espantosa capacidade de pensar e entender, está em perigo de extinção; o que virá a seguir não sabemos.



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Vivemos num tempo em que a nossa sobrevivência depende da antecipação de trajetórias de evolução. Várias perguntas nos ocorrem: como preservar a coerência do festival perante as ameaças à sua integridade? Seremos nós capazes de continuar a superar as lógicas dominantes, de não perder fulgor? Continuará o Guimarães Jazz a ser um acontecimento raro, um ser inédito e impossível de catalogar, mantendo assim viva a sua força fundadora? Como conservar a sua energia inventiva que galga os obstáculos do tempo com habilidade e sabedoria? Muitas vezes fazemos afirmações com dúvidas e interrogações; a melhor análise crítica que se pode realizar sobre o Guimarães Jazz é não falar dele de forma direta, mas ir descobrindo as suas principais características como se fossem acasos arqueológicos. Temos de sondar memórias e delas extrair estímulos estranhos, pensamentos originais e até inimagináveis; nesse caso, o festival torna-se inédito na medida em que se esfuma no horizonte do tempo, mas esta descoberta nada diz de especial sobre as suas lógicas, problemas, perigos, vícios, defeitos e desvios. O Guimarães Jazz é acessível porque escapa ao olhar, uma vez que o conhecimento da sua estrutura nos dota de uma certa forma de poder que distorce a realidade, tornando mais difícil intuir os seus prelúdios essenciais de construção. Para se elaborar uma autocrítica eficaz de descoberta somos obrigados a fazer assentar as nossas narrativas, baseadas em refutações lúcidas e convincentes; para se perceber alguma coisa é necessário introduzir as ações em estruturas de tempo que apelam à narração.


O admirável na história do Guimarães Jazz é não se ter limitado a ser um sonho; ele ultrapassou este estádio, tornando-se projeto porque, com a sua capacidade de resiliência, superou a barreira dos atos inconsequentes. Não teve receio de assumir riscos na realidade concreta do mundo globalizado; não se deixou ficar cristalizado num dispositivo fantasmático, muitas vezes assunto obsoleto e caso inadaptado, face às exigências do mundo atual, regido por fortesimperativos de consumo. Nesse sentido, talvez um dos aspetos mais relevantes do festival seja sentir que, quando se olha para trás, ainda é possível vislumbrar futuros por descobrir. Existem ainda muitas coisas para fazer e aperfeiçoar de modo a inscrevê-lo numa corrente contínua de tempo sem etapas pré-definidas. No seu interior manifesta-se ainda e sempre um singular movimento de expansão, assente numa dinâmica que não é sequencial, nem cronológica, antes impondo a sua perceção como coisa imaginada e viável, orientada para o que há de vir.

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