AUTOR: IVO MARTINS
EDIÇÃO: (Catálogo) Centro Cultural Vila Flor DATA: Julho de 2021
A arte existe atualmente numa espécie de torpor imagético, adormecida à sombra de uma inércia preocupante onde as obras nascem sob o efeito de perigosas anestesias, cuja indolência gera mal-estar. Em termos genéricos, pode dizer-se que a arte do presente é conceptualmente cínica e conduz as pessoas para perigosas demonstrações de ironia, muitas delas sem interesse. Do cinismo à má-consciência vai um curto caminho.
Vivemos constantemente com uma enorme sensação de esgotamento, uma esterilidade sem consequência, uma exaustão de formas e métodos que se tem estendido a todo o espectro cultural: tudo é mais político e económico, e as crescentes manifestações de populismo, tornadas espetáculo e entretenimento pelo exagero dos tratamentos mediáticos, começam a fazer parte do nosso destino quotidiano. Nesta ausência de fé sobre o presente e futuro pressente-se uma aceitação do fracasso, e com este consentimento falharam as predições fantasistas.
Estamos num mundo em que a inovação estilística já não é possível: cada gesto criativo gera um lugar-comum, e cada lugar comum produz banalidades. O que é banal acrescenta saturação do mesmo e repetições em cadeia, restando aos artistas imitarem estilos mortos e falarem por meio de máscaras, usando vozes estilísticas que jazem na tumba das histórias imaginárias da humanidade. Na cultura contemporânea, nada parece transformar-se; as ambições utópicas e prometaicas, que durante muito tempo estiveram no nosso código genético cultural, foram substituídas por sucessos globais, versões brutalmente redutoras, pragmáticas e utilitárias de uma realidade falsa.
A exposição “Movimentos Bruxos” é um cenário, montado num espaço artificialmente reconstruído em que são reunidos elementos das nossas experiências mundanas. O que se observa são associações improváveis de objetos que geram ideias, mas que também se organizam novas configurações de imagens que pela sua vulgaridade não nos deviam surpreender, do mesmo modo que ao olharmos para a paisagem a partir do interior de um automóvel em plena autoestrada, não nos surpreendemos por contemplar um conjunto de artefactos desprovidos de vitalidade. A exposição transforma o espaço em campo simbólico de dimensões variáveis, cujas formas despoletam divagações sensoriais em imagens pictográficas ainda por desbravar; as coisas que observamos podem ser espectros de muitas imagens, que foram entretanto redefinidas e apropriadas, usadas enquanto denegação. Há nesta apresentação uma espécie de manifestação obscura, enquanto parte de uma totalidade conhecida, mas que se assemelha a uma enorme falsificação.
Esta exposição não pretende mostrar nada de relevante, como o sofrimento das pessoas ou o seu desespero e infelicidade, nem apresentar uma visão do impossível. Os seus objetivos são simples e despretensiosos: ela não pretende adornar o mundo com chavões moralistas de modo a que este se possa encaixar num binário ético supostamente simplificado das histórias da BD, dos super-heróis, dos romances policiais, da cultura televisiva ou do universo digital. Ela deseja apenas chamar a atenção para um “real” quotidiano no qual as boas intenções e a autenticidade podem ser oportunisticamente comercializáveis. Nesse sentido, pode afirmar-se que “Movimentos Bruxos” encena anti representações, como se cada imagem fosse um devaneio coletivo e insensível, lançado por uma onda gigante de contrafação, um lugar onde a vulgaridade das imagens arruinaria a atenção dos espectadores, surgindo desse desfasamento linguagens simplificadas entre objetos e histórias. Neste processo tudo adquire a fisionomia de um poema, porque não é pelo excesso de nonsense que se desvia a atenção das pessoas, mas pela vulgaridade das coisas inúteis. Aqui, como no devaneio do condutor solitário em plena autoestrada, as coisas movem-se por si no olhar de cada um.
Se o indivíduo enclausurado no automóvel contempla a banalidade de uma realidade suavizada pelo cálculo matemático e pelo planeamento topográfico, em Movimentos Bruxos, pelo contrário, nós somos o nosso próprio veículo, caminhando entre inúmeros objetos que circulam à nossa volta e tentam captar a nossa atenção. Vemos a nossa imagem desdobrada num espelho só que, no caso concreto deste espaço, o campo visual reproduzido não indicia verdade. O olhar confunde-se com coisas tangíveis e materiais e, tal como acontece dentro da viatura na estrada, aqui também paira em cada pessoa uma estranha sensação de isolamento, um estado de espírito pacífico e distanciado, longe de tudo e todos. O observador parece estar dentro de um filme com muitos anos de duração; a película aborda a eternidade e nela tudo parece ser adulteração, um “reality show” monumental feito para incomodar e provocar. Aqui, estamos, pela força das encenações, num mundo único, individual e sensorial, dimensionado exclusivamente por cada sujeito e onde uma consciência infinita é organizada em função de uma disposição interior quase mágica, na qual o mundo real e o mundo irreal vivem em momento idênticos, separados por um torpor psíquico em que a arte é a miragem.
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