AUTOR: IVO MARTINS
EDIÇÃO: Guimarães Jazz 2020 - Câmara Municipal de Guimarães/ Associação Cultural Convívio/ A Oficina DATA: Novembro de 2020
A música é sempre criada como se fosse o produto de uma voz interior, nunca estando submetida nem ao ritmo das estrelas nem a ditames de seres metafísicos, como se os anjos ou as musas intercedessem no processo. Os anjos são, na sua essência, entidades silenciosas e, sabendo disso, a música sacra concentrou a sua energia na exploração do silêncio. Quanto às musas, elas só existem na imaginação dos artistas, não tendo qualquer papel ativo na construção da obra de arte.
Qualquer forma musical transmite a sua maneira particular de entender o mundo. Quando o jazz surgiu, soava diferente do que qualquer outra música, o seu estilo era pouco ortodoxo e intuitivo; estas suas características exigiam do ouvinte atitudes percetivo-cognitivas de outra índole e, para compreender a mensagem que estava implícita no som, era necessário descobrir outras ferramentas semânticas, distintas das já assimiladas. Os músicos, com as suas idiossincrasias próprias, organizavam complexas inter-relações quer no exterior quer no interior da música, formando uma individualidade cujo contexto transformava a subjetividade.
Compreender o jazz e todos os movimentos radicais de improvisação que se lhe seguiram e foram acontecendo posteriormente até ao presente, pressupõe entender-se o modus operandi dos símbolos e a maneira como as mentes os integram. Criar é colocar sempre em aberto uma questão sobre a possibilidade de um dia as mentes/cérebros puderem serem totalmente compreendidas. Se um dia houver uma resposta quanto a este problema, o jazz, na sua enorme rede de extensões e ramificações, também será plenamente entendido. Se tal acontecer, a música perderá todo o mistério. Contudo, também se admite que a total descodificação da mente de cada indivíduo seja uma tarefa impossível de se alcançar – mas talvez seja possível compreender princípios gerais de funcionamento dos cérebros, tal como se entenderam os fundamentos operacionais dos motores de combustão
À medida que o tempo passa descobrem-se sempre mais significados na música, embora haja aspectos desse significado que ficarão sempre escondidos por períodos arbitrariamente longos. O certo é que existe uma dualidade estranha no significado da obra musical: por um lado, ele parece disperso, devido à sua ligação íntima com muitas outras coisas do mundo; por outro, o sentido de um tema vem da própria música, parecendo estar localizado dentro dela. Quem escuta interpreta, usando a inteligência, a imaginação, a sensibilidade e os conhecimentos adquiridos, vistos como mecanismos que extraem leituras da música; o intérprete não é o executante, mas quem escuta torna-se receptor do mecanismo mental que atribui significado. Este pode descobrir inúmeros aspectos importantes de qualquer composição, parecendo confirmar uma noção de familiaridade com a música ouvida, como se o sentido estivesse alojado na própria peça musical. Nesse sentido, ouvir implica detectar e ler o som como uma narrativa ficcional, agindo através de uma estrutura cognitiva multidimensional que representa a obra, integrando informações e encontrando ligações com estruturas mentais anteriores que codificam experiências passadas. No decorrer deste fenómeno, o significado vai-se desvendando.
Ao contrário dos motores de combustão, os cérebros são sistemas refratários e teimosos que agem sob tensão e impulso, funcionando numa base dicotómica entre opostos, principalmente na cultura ocidental. A arte considerada séria precisa dos confrontos entre razão versus espírito e sensibilidade e transcendência versus imanência; no Oriente, contudo, a arte rege-se por outros pressupostos, formando abordagens de sentido diferente, pois não se configura segundo estas dicotomias, embora muitas dos seus conceitos tenham influenciado o jazz e a cultura ocidental. Por exemplo, a palavra Wabi que em japonês designa belo, remete para um estado de incompletude, coisa passageira, momento efémero e contingente; contrariamente a Platão, não representa o que é perfeito e completo. Assim, para os orientais as flores de cerejeira não são belas quando desabrocham, mas quando se encontram no momento que precede a sua queda - só esse desvanecimento, esse sucumbir que remete para fragilidade da vida, confere ao instante um valor estético. Em certo sentido, pode dizer-se que o jazz trabalhou de certo modo essa maneira de sentir a noção do belo, levando a música ao limite do fugaz num exercício de intensa precariedade, instabilidade e incerteza.
A música, sendo um série de vibrações que se movem no ar, imerge o ouvinte numa estrutura sonora profunda propagada em vagas de intensidade variável num movimento perpétuo; ouvir permite captar as dimensões mais fundas do mundo, numa grandeza cujos olhos, na sua sensibilidade à imagem, são impedidos de a apreender. O músico age como se estivesse a tocar simultaneamente para si mesmo e para o universo que o rodeia; ele perceciona de maneira intuitiva que se encontra numa posição de charneira entre tempos diferentes e move-se num terreno extremamente atrativo porque sonda o desconhecido, ao mesmo tempo inóspito e agreste.
O jazz provém desse espaço partilhado, como se tivesse sido engendrado numa estufa situada nas margens do Mississípi, um espaço aberto numa geografia humana onde alguns milhares de pessoas iniciaram uma experiência musical excecional. Esta música evoluiu, movimentou-se, saiu dos seus limites, criou novos espaços e multiplicou-se em novas atmosferas; tudo isto aconteceu ao sabor de uma comunidade informal, o que significa participar na construção de atmosferas. Iniciando o seu percurso num meio natural onde o solo representa todos os factos brutos do seu contexto social e cultural, o jazz enveredou por outros processos de climatização em ambientes diferentes. Com o passar do tempo, ele adquiriu um corpo complexo, cuja força sonora se dispersa numa realidade que sustenta novos espaços de desenvolvimento. Hoje, ele praticamente perdeu as ligações com o primordial, com o seu estado de natureza, e este aspecto revela que no seu processo de expansão é impossível retroceder ao mundo natural. Talvez por isso o jazz atual seja mais atmosférico, cruzado com todos os outros géneros musicais; a produção jazzística do presente é menos física, estando situada em “esferas” etéreas de difícil delimitação, tornando-se por isso complicado estabelecer fronteiras ou zonas de transição. Agora, ele é insuflado por muitas ideias vindas de espíritos abertos, apoiadas em noções restauradas, em conceitos partilhados, em concepções desprovidas de regularidades palpáveis; tudo isto põe em evidência o mistério do jazz.
A hipótese de multiplicidade pressupõe a existência de alguma coisa que se repete constantemente e se une; talvez tenha sido a particular capacidade das pessoas de estabelecer equilíbrios delicado entre verdade e ficção, o factor que salvou o jazz da extinção.
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À energia capaz de gerar motivações pode dar-se o nome de vitalismo, isto é, uma força representada na soma simples de inúmeras vontades e ações humanas. Contudo, juntar todas estas coisas de maneira indiscriminada e espontânea não forma, por si só, uma configuração coerente e compreensível, tal como a adição de todas as células do corpo humano de forma ocasional e aleatória não produz um homem. É preciso algo mais, uma visão cultural cujo vigor impele tudo na direção do sensível, fornecendo-lhe sentido civilizacional. Fazer história, coligir factos e ideias, unir elementos que se metamorfoseiam em ficção, elaborar narrativas agregadoras de espíritos e consciências é um trabalho sem fim, cujo objetivo pressupõe uma viagem no tempo.
De um ponto de vista histórico, a viagem espiritual é uma ocorrência dramática, pois implica que o homem percorra caminhos solitários destinados a indivíduos capazes de afirmar a sua singularidade - quantas vezes os revolucionários acabam por copiar, depois de consolidarem a sua vitória, as mesmas estruturas que desejavam substituir? As revoluções, em vez de criarem sociedades diferentes, geram formas de poder autoritárias, incapazes de alterarem as estruturas anquilosadas contra as quais se rebelaram, Mas a arte, sendo paixão, é um campo diferente do da atividade política, da fé religiosa, das lógicas económicas, dos valores sociais; no jazz, as viagens espirituais são feitas de outras coisas, levando os artistas a percorrerem territórios desconhecidos e imprevisíveis.
Em 1959, Ornette Coleman gravou um disco estranho com um título premonitório de cariz profético, anunciando a forma do jazz por vir. A estreia em concerto deste seu novo grupo deu-se no famoso Five Spot Café, em Nova Iorque, e a primeira noite foi, segundo alguns testemunhos, um acontecimento impressionante e inesquecível; pode dizer-se que ninguém estava preparado para escutar aquela sonoridade. Os músicos desenvolviam ideias próprias, livres e poderosas, representando uma realidade envolvente que parecia simbolizar a verdadeira noção de Zeitgeist. Através da sua música, Ornette fazia uma síntese perfeita do que habitualmente é assumido como o “espírito do tempo”; durante o concerto falou da paranoia colectiva que ensombrava o mundo e do perigo de um conflito nuclear que abalava as mentalidades. Nessa época, as pessoas acreditavam numa visão apocalíptica sobre o futuro da humanidade e pressentia-se uma urgência que nunca antes se tinha experienciado; vivia-se o presente como se tudo pudesse deixar de existir de um dia para o outro. Os artistas imaginavam-se numa frente de batalha, obrigados a arriscar a vida em cada nota que tocavam. Hoje em dia, todos nós corremos também diversos tipos de riscos, mais ou menos conhecidos, uns internos outros externos, mas todos capazes de colocarem em causa a nossa sobrevivência; a qualquer instante tanto podemos ser invadidos por novos microrganismos hostis e letais, como se fossem seres extraterrestres ou entidades abstractas munidas de inteligência artificial, construídas pela ação humana.
Perante o contexto actual, talvez a melhor forma de definir o meio em que o jazz tem de sobreviver seja aplicando o conceito de interregno, habitualmente utlizado na história para indicar uma mudança forçada, muitas vezes imprevista, resultante de um vazio de poder momentâneo. Subjacente a esta noção está um clima de crise permanente, na qual o que é velho, estando para terminar, não permite às coisas novas aparecerem tanto em força, como em discernimento. Prevê-se assim, um entrada num novo ciclo que se adia sem cessar, não estando completamente definido. O poder também faz o mesmo, quando tende a preencher todo o vazio político com a continuação do que já era; a arte a música e o jazz seguem o mesmo caminho, não deixando de ocupar de imediato qualquer espaço criativo devoluto.
O excesso de estímulos, transversal a todo o planeta, faz derivar o homem para pensamentos problemáticos que o obrigam duvidar de si e de todas as suas narrativas ficcionais criadas com o fim de encontrar um sentido para a vida. O desconhecido que nos escapa é mitificado por ficções, cimento mitológico portador de sentido para os acontecimentos do mundo. E se o mundo se encontra envolvido num excedente de comunicação é compreensível que não exista espaço disponível para as pessoas apresentarem as suas histórias. Agora, só não desapareceu o silêncio.