AUTOR: IVO MARTINS 
EDIÇÃO:
(Catálogo) Centro Cultural Vila Flor     DATA: Dezembro de 2020 





Em década e meia muitas coisas acontecem. As alterações verificadas entre 2006/2020 dificultaram a aquisição de certezas sobre o que correntemente pode ser definido de arte; de certo modo, estas dificuldades alertam para o facto de que ninguém poderá compreender em absoluto as implicações económicas, sociais, políticas ou culturais do processo artístico, nem perceber a sua dimensão ou a sua complexidade. Peter Sloterdjik, na sua “Crítica da Razão Cínica”, alerta para o facto de que a arte é o último garante de uma consciência soberana e realista, colocando-a entre a religião e a ciência; porém, contrariamente à primeira, a arte não apela à fé, pois tem por si a experiência e a vivacidade dos sentidos, enquanto que, contrariamente à ciência, não precisa de circunscrever tão estreitamente o seu objeto com a experiência. Assim, conclui-se que com a arte aprendemos formas de sentir e de criar, manifestadas numa espécie de liberdade.




























Com a abertura do Centro Cultural Vila Flor foi possível conceber uma série de exposições trabalhadas exclusivamente para a sala expositiva de um velho “Palácio” que era parte de um equipamento cultural, único e fundamental para a prática cultural deste país. Localizado num antigo edifício maneirista, esta construção tem uma enorme dignidade arquitetónica, cuja história se associa à vida social e cultural da cidade de Guimarães, em momentos profundamente enraizados no património vimaranense.

No “Palácio”, a arte foi percecionada como uma espécie de areia movediça subjetiva e interior, algo que se manifesta de modo imprevisível e flexível, suscitando sentimentos de escuridão, contradição e debate; neste lugar de possíveis a cada apresentação tentava-se iludir o impossível como tempo vivido em que se consumam milagres. Na eterna presença fugitiva dos artistas que de maneira genuína aceitaram trabalhar connosco, cada exposição enfrentou o paradoxo existencial da duração, atravessada e deixada intacta pelas turbulências do mundo exterior, nuns casos inalcançável, noutros num grau zero de sentido; apesar das dúvidas, incertezas e, por vezes, incongruências, a arte apresentada no “Palácio” pode ser vista muitas vezes como uma abordagem crítica, formas bem-humoradas de olhar que incluíam um saber revitalizante e provocador relativamente aos valores conservadores do mercado e às lógicas de reconhecimento. Num tempo como o atual, onde abundam ideários de monocultura e mono-informação, apesar da comunicação abundante e da sua circulação em massa, é impossível ficar indiferente a estes 15 anos de atividade desenvolvida, no contacto com um universo imenso e plural de artistas que com a sua generosidade muito ajudaram a levantar este projeto. Sem eles, o “Palácio” nunca poderia ser um epifenómeno que levou as pessoas a procurarem causas e consequências.





























Por mais espaço verbal que todos disponham e usem para enquadrar e descrever este espaço de exposição, o trabalho aqui realizado resiste de um modo surpreendente às limitações da linguagem. A maneira mais expedita de compreender o “Palácio” é assumir que nunca houve um plano, nem uma carta de intenções; alguns dos momentos mais relevantes, embora a sua seleção seja sempre discutível, representam pontos sensíveis de referência que orientam o observador para a sua descoberta pessoal e interior. A produção editorial que resultou do trabalho curatorial nele desenvolvido projeta estas tendências de maneira evidente e, apesar de não conter todas a informações necessárias, revela documentos essenciais e suficientemente úteis para se entender a sua utilidade, desencadeando processos internos de compreensão, provocando esclarecimentos, provando que tudo pode ser compatível, mesmo quando as palavras são incompatíveis. Sem as reservas de um mapa de intenções instituído, o lugar do “Palácio” agiu todo este tempo como se fosse um olhar atento ao eco das emergências coletivas e individuais daqueles que criam na nossa contemporaneidade. Tornou a sua dinâmica programática numa plataforma arrítmica, disruptiva e plural, procurando nesta sua intermitência os limites da democracia e liberdade dos espaços de apresentação pública, constituindo, talvez, utopicamente, uma TAZ como diria Hakim Bey, o “Palácio” enquanto Zona Autónoma Temporária.

No “Palácio” alerta-se para o facto de que, pelo entretenimento, é possível não destruir o potencial criativo e artístico da arte, desviando-a das suas tensões destrutivas e reativas; é possível criar pequenas zonas de liberdade e emancipação que enfrentam as oposições de defesa arrogantes do instituído num sistema cujas dinâmicas de afeto e desprezo, provocaram o endurecimento dos discursos, a perda de leveza e a falta de ironia. Que irónica hipérbole esta a de se olhar um “Palácio”.





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