AUTOR: IVO MARTINS 
EDIÇÃO:
(Desdobrável da Exposição) Centro Cultural Vila Flor/ Associação Cultural Sonoscopia     DATA: Abril de 2019 





No decurso do século XX, e em consequência das visionárias descobertas científicas que o acompanharam, o homem, consumidor insaciável, transformou-se em utilizador/beneficiário da alta tecnologia, tendo-se tornado dependente de inúmeros aparatos domésticos e pessoais que o colocam permanentemente online. Neste novo paradigma digital, a visão do tempo linear terminou, e o suceder progressista e cronológico também; o mundo está neste momento cindido entre o presente da transmissão em direto e o real invisível. Vive-se um clima onde se sente o poder da máquina de controlo e em que, simultaneamente, se fazem reformulações, restruturações e remodelações das estruturas organizacionais públicas e privadas. Esta situação trouxe ao de cima uma série de expedientes manipuladores, que tanto controlam como parecem libertar; as ações individuais são controladas por poderosas máquinas inteligentes que expandem e vigiam a realidade à nossa volta.

A nossa vida privada e os encontros face a face estão a ser destroçados por dipositivos que as viram para dentro de si; as pessoas são atiradas para uma espécie de privacidade forçada, pois o espaço público foi ocupado pela contingência de um estilo de vida fundamentalmente consumista. É no consumo que o mercado cresce e se reproduz, explorando e capitalizando o facto das disposições sociais serem fluídas, os vínculos humanos frágeis e os estatutos questionáveis, instáveis e imprevisíveis. Os direitos obrigações e compromissos individuais existem num presente que vai além do cidadão, e, num futuro obscuro e opaco, o mercado cresce e expande-se.










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O crescente automatismo das máquinas, e a consequente robotização da vida, afecta gravemente a criação e a fricção musical. A música começa a ser produzida e mediada através da utilização intensiva de máquinas e de equipamentos sofisticados de reprodução e arquivo, elaborada em ambientes de estúdio, acintosamente virtuais. Estes dispositivos sofisticados, que o mercado produz intensamente com o intuito de alimentar a avidez de novidades, são objectos tecnologicamente complexos, e repletos de discursos persuasivos. Por outro lado, os equipamentos de divulgação musical, tendem a ser cada vez mais extensões do próprio corpo, colocando o homem em contacto com a dimensão sobre-humana da música.

Rodeado de uma máquina ruidosa alargada agora ao produto cultural, o corpo do indivíduo transformou-se num objeto sujeito a múltiplas pressões e influências, exposto e dependente de amplos e complexos processos de adestramento individual e colectivo. Este mecanismo de domesticação funciona bem, nas suas diversas funções de controlo, se o silêncio e o ruído, não forem susceptíveis de separação; porque o primeiro é muito mais difícil de se aprofundar e porque o segundo arrasta tudo à sua frente. O silêncio nos dias de hoje, praticamente desapareceu; atualmente não existem opções intermédias entre silêncio e ruído; o mundo está submetido a um ambiente ruidoso global que a tornar-se uniforme por força da comunicação, processada num espaço, onde ninguém consegue fazer ouvir a sua voz. Tal como nota David Le Breton, no livro “Do Silêncio”: “O único silêncio que a utopia da comunicação conhece é o silêncio da avaria, da falha da máquina, da paragem da transmissão. É mais um cessar da tecnicidade do que o aparecimento de uma interioridade. O silêncio passa a ser um vestígio arqueológico um resquício que ainda não foi assimilado. Mas, simultaneamente, ressoa como uma nostalgia, apela ao desejo de uma escuta incessante do murmurar do mundo”.

A comunicação e a informação construíram um novo tipo de palavra que alterou o seu estatuto antropológico, agora circunscrito à atividade dos media, redes sociais, telefones, telemóveis, computadores. Esta palavra flui e circula entre máquinas tecnicamente evoluídas, muitas vezes de forma automática, imparável no seu movimento em rede; é emitida vinte e quatro horas por dia, nunca se calando nem cessando a sua proliferação, num regime intensivo de propagação. Em tais circunstâncias, a palavra sujeita-se ao exagero e excesso, desencadeando um imenso ruído de fundo, correndo o risco de não ser escutada. A atividade mediática é de natureza intrusiva, invasiva e uniforme, ao mesmo tempo que se revela repetitiva e impessoal, instituindo uma transmissão de sentido único. O seu destinatário fica remetido a um papel de receptor passivo numa imensa cadeia da comunicação; nesta dimensão relacional, o conteúdo deixa de ser relevante, uma vez que é mais importante dar a conhecer que o mundo está bem e a funcionar corretamente. O seu espectro de influência é meramente ambiental, porque se trata de uma sonoridade fantasma, regular, homogénea, uniforme que não produz consequências; a forma superou o conteúdo e, num contexto excessivamente ruidoso, a mensagem vê-se forçada a reafirmar a existência do mundo.





























No actual estádio de desenvolvimento o ruído tem uma causa mecânica, mas também uma dimensão virtual; talvez o progresso tecnológico tenda a silenciar o ruído, medido em decibéis e controlado por equipamentos de medição. Podemo-nos perguntar: será que o futuro é cada vez mais silencioso e pode concorrer com o ruído? O ruído é essencialmente moderno, enquanto o desenvolvimento do silêncio; este, a verificar-se no futuro, seria uma consequência pós-industrial. O silêncio instalou-se como desejo à custa do ruído; cada vez há mais pessoas que procuram modelos de vida simples, fora do consumo intensivo. O que ouvimos à nossa volta são os barulhos provocados pelas atividades humanas, e cada sujeito aceita essa realidade como destino inescapável. Apresentar o silêncio como contraponto do ruído é reforçar a ideia de que este, além de atentar contra um direito, obriga cada pessoa a suprimir todos os desconfortos acústicos, provocados por indivíduos ou pelo meio ambiente.

A vida humana é dominada máquinas inteligentes que, para o bem e para o mal, agem como se fossem próteses de capacidade racional e sensível, sendo agora completamente adaptadas à nossa visão, audição e linguagem. No futuro, a inteligência artificial conquistará a totalidade do território humano e o mundo entrará numa era robotizada e monitorizada; as ações do homem serão acompanhadas por máquinas ou dispositivos e a sua liberdade de atuação irá ser posta em causa. Espera-se que os níveis de indeterminação dos seus efeitos não sejam negativos e que não aniquilem a liberdade. Por enquanto, o mercado gere todos os momentos da existência e as antigas formas de marginalidade e distanciamento crítico já se extinguiram há algum tempo, pelo que temos razões para não estarmos optimistas.

O advento de máquinas inteligentes tem substituído a imaginação; o problema é saber como é que tudo isto se vai desenvolver e quais serão as suas consequências. Se cada pessoa for controlada de acordo com jogos de manipulação e poder que caracterizam a sociedade de consumo, a vida deixará de ter história, e o mundo será dominado como uma PlayStation, transformado em modelo hiperativo e hipercomunicacional, gerido por interações e participações previsíveis.  O trabalho multidisciplinar da Sonoscopia, ao mesmo tempo que reflecte a realidade contemporânea, é guiado pela estratégia oposta_ a que deseja dar a conhecer outras abordagens e outros modos de ver e o ouvir, estabelecendo pontes entre a música e outras criações artísticas e incentivando os processos de partilha e troca de experiências indispensáveis ao exercício da imaginação no mundo de hoje.





FOTOS: PAULO PACHECO

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