AUTOR: IVO MARTINS 
EDIÇÃO:
Guimarães Jazz 2017 - Câmara Municipal de Guimarães/ Associação Cultural Convívio/ A Oficina     DATA: Novembro de 2017 





“A vida só pode ser vivida olhando em frente, mas só a podemos entender olhando para trás.”

- Kierkegaard



1.


Compreender o Guimarães Jazz em 2017 implica fazer um esforço de compreensão de um percurso histórico com mais de 25 anos sem o desvirtuar nem vampirizar a sua força imagética. Um evento como este é sempre uma construção insegura, um facto sempre a prazo que, para compensar a falta de futuro, recomeça anualmente como se nada tivesse acontecido. O espetro do fim enquanto fracasso paira incessantemente sobre o tempo, razão pela qual o acontecimento está em aberto. Quanto mais simples e claras forem as suas premissas programáticas, mais transparente será a força da sua lógica inventiva, permitindo que o acontecimento seja facilmente assimilado e compreendido. O debate contribui para a projeção do seu futuro, e é nas dificuldades que o acontecimento se redime e justifica. Se durante todos estes anos o Guimarães Jazz conseguiu sobreviver, foi porque se idealizaram soluções e se tomaram decisões equilibradas num processo empático entre o acontecimento e o público. A experiência adquirida permitiu esquematizar novos desenvolvimentos, adaptando-o assim à transformação dos contextos por onde circula. A incerteza implicou a criação de estratégias de superação de dificuldade que, muitas vezes, surpreenderam os seus principais inimigos. Estes agiam furtivamente, sem se darem a conhecer. Os mais difíceis de vencer foram os que estavam escondidos por detrás dos disfarces da rotina, das dissimulações do lugar-comum, do ritual do cliché, do jogo da mistificação, da vertigem do poder, da crítica categórica, do absolutismo das posições, do fanatismo ideológico, do impulso de dominação. O festival teve de enfrentar todo este tipo de emboscadas colocadas no terreno sempre fértil e movediço da realidade local, nacional e internacional. E quanto mais as coisas corriam a seu favor, maiores eram os perigos que o ameaçavam e poderiam levar ao colapso. Só uma vigilância atenta, um permanente estado de alerta e uma atenção redobrada permitiram antecipar posicionamentos críticos fortes, que se converteu depois num dos elementos essenciais de resistência.

Hoje, a cultura já não se move num domínio específico de atuação artística, inscrita em regimes setoriais e de âmbito local, regional ou nacional. As atividades culturais dispersam-se e movimentam-se em amplos espaços de criação, nos quais o processo criativo é contaminado por sugestões, informações, comentários, opiniões e teorias com as mais diversas proveniências. A cultura vai-se descobrindo através da sua própria consumação. Umas vezes apresenta-se como se fosse uma ideia perfeita e acabada, suscetível de ser levada à prática sem perdas nem desvios, esgotando-se logo a seguir; noutras, porém, é necessário fazer escolhas, executar ações corretivas, proceder a revisões reflexivas, aperfeiçoamentos e reformulações. A mudança de paradigma registada no novo mundo digital global levou ao aparecimento de novas necessidades e, com estas, de novas formas de expressão. A comunicação a nível planetário promoveu o advento de novas formas de pensar e entender-nos a nós próprios, ao mundo e aos outros. Só o conhecimento se destaca num oceano indistinto feito de ondas de liberdade individual, transformadas em micro-zonas de emancipação movendo-se em diferentes velocidades, intensidades e tonalidades. O conhecimento é o único elemento consciente, a base que permite fazer distinções, quer estas se verifiquem entre indivíduos, quer entre entidades coletivas. O que contribui para a sobrevivência cultural de um evento através do tempo é um conhecimento amadurecido, uma mancha subjetiva formada por ideias tangenciais, associações alargadas, reflexões orientadas e contemplações motivadas. Neste sentido, a imaginação surge, no contexto global e tecnológico da atualidade, como um elemento luminoso e fulcral de afirmação, um espetro de vitalidade inserido num amplo movimento de autonomização e independência, desenvolvido por via de uma dinâmica circular, alimentada por diversas linhas de fuga. As máquinas que atualmente rodeiam o homem podem funcionar sem o seu trabalho, mas não conseguem ultrapassar os limites da sua conceção técnica. Mesmo acompanhadas da tecnologia, as pessoas têm de lidar com as fragilidades decorrentes da leveza e alcance das suas idealizações. A imaginação é fascinante porque é bela, fugidia porque imprevisível, inteligente porque informe, inescrutável porque dissimulada, obscura porque exterior ao mundo real. Se é verdade que a comunicação conseguiu aparentemente superiorizar-se à liberdade da imaginação, tendo-se uniformizado e controlado, por outro lado, no entanto, continua a não conseguir determinar com precisão as intenções subjacentes a cada comportamento. A imaginação é a porta que se abre para formas alternativas de emancipação, para a independência e para a recusa do poder, sendo regida por imperativos de liberdade, autonomia e caráter.

Atualmente, as sociedades desenvolvem-se através de causas voláteis que se constituem no interior de campos instáveis de interação, sem fronteiras nem territórios fixos, onde tudo se altera à velocidade da luz. Os contextos que resultam deste movimento incerto e irregular requerem um questionamento perpétuo, uma atitude de irreverência permanente contra o fácil, o adquirido, o aparentemente estável. Se o festival não prestar atenção a esta movimentação inconstante e a esta mutação endémica do sistema onde se insere, pode morrer dentro de muito pouco tempo. O mundo afastou-se para sempre da noção de estabilidade, e não perceber os efeitos desta mudança constitui um grave erro de avaliação. A realidade atual não é feita de regras fixas e critérios estabelecidos como no passado. Antigamente, as visões restringiam-se a um território estreito, delimitado, cercado e definido a priori. O saber burocrático e ortodoxo de uma organização acreditava tanto na continuidade, como no equilíbrio do sistema. O meio ambiente promovia a estabilidade de conceitos, baseados na aprendizagem e memorização. Hoje, estes parâmetros sociológicos estão em crise. O novo saber tem de operar em circunstâncias voláteis e manifestamente imprevisíveis, e a sua missão primordial é difundir uma visão acrítica das rotinas instaladas, promovendo a irregularidade e o esquecimento. Assim, o jazz e o seu contexto sofreram também grandes alterações que não podem ser percecionadas nem pela lógica dos seus contrários, nem pelo manuseamento dos seus antónimos. Este tipo de abordagens parte de uma premissa que já não existe – a ideia de que o terreno onde se movimentam é uniforme e estável. A única solução possível para se encontrar uma praxis compatível com a irregularidade e mutação do campo onde o jazz se movimenta, consiste em apoiar a diversidade cultural e a singularidade artística, criando entusiasticamente todas as condições para a realização das suas criações mais desconcertantes e imprevistas. Estas surgem sem aviso nem previsão, norteadas por um misto de razão e intuição, cálculo e impulso e contenção e audácia, para se volatilizarem logo depois. No jazz atual, deteta-se uma dinâmica algo estranha que o torna uma música fractal. Ou seja, cada estilo ou género vive dentro de outro estilo e género, produzindo uma espécie de disseminação eternamente ressonante no espaço e no tempo. As diversas ideias musicais que se propagam a grande velocidade por todo o lado, através de uma rede infinita de ligações digitais, pressupõe um esforço cognitivo constante para se aprender a ouvir e ler música e a escutar o som com imagens, desenvolvendo assim um sexto sentido transvisual.




2.

A nossa mais pertinente tarefa é descobrirmos que situações, sinais, avisos, manifestações ou sintomas poderão fornecer elementos suscetíveis de desencadear leituras sobre o futuro de festival. Trata-se de descodificar uma correlação de factos positivos ou negativos que vão inevitavelmente afetar o percurso do Guimarães Jazz, uma vez que estamos conscientes que as coisas não duram para sempre. O festival alterou-se, criou uma determinada identidade, construiu uma narrativa, e essa história contém riscos. Vida ou morte são realidades que acompanham o curso dos eventos, criando momentos sempre irreversíveis, logo irrecuperáveis. Face a esta inevitabilidade, é necessário procurar encontrar mecanismos retardatários que adiem o fim daqueles.

A configuração do triângulo de forças aperfeiçoada no festival, formado pela reputação do músico, o sentido crítico das pessoas mais esclarecidas e a opinião geral do público, foi-se alterando com o tempo. As entidades abstratas e impessoais que formam o sistema do jazz assumem, quando percecionadas em conjunto, formas complexas e relacionais, em permanente mudança; o espetro composto por este conjunto de indivíduos manifesta-se visualmente como se fossem minorias emergindo do interior de outras minorias. Estas pequenas comunidades de pessoas subdividem-se, formando novas minorias que, por sua vez, contêm dentro de si mais umas tantas minorias. A totalidade desta correlação condensa-se numa cadeia infinita e insondável que termina nas ideias individuais de cada um. Uma estrutura com estas caraterísticas confere ao festival uma dimensão intensamente subjetiva, tornando difícil a manipulação ou a subversão do seu sentido primordial. A autoilusão e o excesso de confiança, combinados com o medo de falhar, podem transformar o acontecimento numa mistura explosiva, que pode a qualquer momento rebentar numa desordem entrópica incontrolável.
Hoje, o grau de dispersão dos interesses do público assume uma mistura demográfica irradiante que transformou a paisagem social numa realidade dispersa, tornando os discursos propagandísticos inapropriados, para não dizer mesmo anacrónicos. As pessoas procuram essencialmente novas sensações, através de contactos culturais gratificantes. A oferta de acontecimentos culturais é diária e imensa. Face a esta realidade saturada de solicitações, os indivíduos alteram facilmente os seus interesses, gostos e motivações, dispersando a sua atenção por momentos reais e virtuais. As pessoas mais esclarecidas buscam manifestações que lhes garantam níveis efetivos de realização pessoal, nos quais se materializem os seus desejos mais íntimos. Cada evento suscita uma correlação de momentos experimentados pelos espetadores, os quais tendem a seguir o conselho implícito nas opiniões transmitidas. Este movimento multiplicador de factos e narrativas gera um tipo específico de conhecimento, um saber apoiado numa rede imensa de comunicação. As pessoas interagem numa cadeia de interesses que se desenvolve através de sucessivas espirais de transmissão. Nenhuma palavra, seja favorável ou desfavorável, repete o mesmo trajeto, embora se movimente circularmente. Neste sentido, podemos afirmar que, na relação gerada pela dinâmica de um acontecimento, os depoimentos, ideias, opiniões, pensamentos e testemunhos se acumulam num processo complexo de comunicação instantânea. O que se determina na formulação de um juízo tanto pode alimentar o acontecimento, como destruí-lo rapidamente. Assim, só um trabalho constante de recriação e invenção, na tentativa de se descobrirem pontes de entendimento informais e espontâneas entre pessoas que, na sua maioria, são desconhecidas entre si e estão em constante movimento, numa procura individual muitas vezes pouco esclarecida, com todos os riscos daí inerentes, pode garantir a sobrevivência de um evento.
A relação do evento com o público, e vice-versa, corresponde praticamente a uma transposição da relação do indivíduo com a música. O som recebido por uma pessoa é reconstruído pelo cérebro através da colaboração de muitos subsistemas cerebrais, os quais são, por sua vez, constantemente informados pela memória, probabilidade e expectativas. Neste sentido, as reações desencadeadas pela música nunca poderão ser consideradas excessivas na medida em que correspondem a diferentes maneiras de pensar. Na prática, cada pessoa constrói a sua própria música e ninguém a escuta e processa da mesma maneira. Este fenómeno confere ao jazz e aos concertos um fascínio exultante. Se, no fim de cada espetáculo, todos os membros do público verbalizassem o que sentiram, as diferenças no modo de receção da música e a impossibilidade de se estabelecerem consensos seriam evidentes.

No processo de comunicação intervêm inúmeros sujeitos e agentes. Cada um, com a sua forma de estar e de agir, define o mundo como um conjunto interminável de narrativas. Podem-se enunciar dois tipos de indivíduos que, pelas suas caraterísticas idiossincráticas e de maneira simplificada, poderão ser classificados respetivamente de manobradores e encaminhadores. Os primeiros agem no sentido do seu interesse imediato, sendo pouco empáticos nas suas movimentações e consequentemente restringidos nas suas observações. São basicamente egoístas, egocêntricos, militantes, ativistas, decididos, urgentes, ansiosos; buscam reações extremadas para muitos dos seus comportamentos; interferem com a vida das pessoas e tentam direcioná-las como se fossem objetos no sentido de alcançarem as suas mais diretas ambições. Têm dificuldade em perceber o regime de cooperação e partilha. Porque não conseguem libertar-se, não são capazes de agir criativamente. Estão sempre do lado de dentro da máquina que dirigem, tendo dificuldades em vislumbrar o exterior. Os encaminhadores, pelo contrário, não desejam controlar ninguém, sendo mais empáticos, abertos e predispostos a sondar o desconhecido, uma vez que não estão preocupados em dominar. São, por isso, mais lentos, mais calmos e apaziguadores. Como não possuem uma lógica de dominação compulsiva, não têm necessidade de impor as suas ideias, nem de fazer prevalecer os seus interesses. Como conseguem sair de si e colocar-se do lado de fora da estrutura onde operam, acreditam e confiam em si e nos outros, estabelecendo ligações de cooperação e de relacionamento com qualquer indivíduo. Trabalham com os outros num regime de paridade e de confiança mútua, recusando uma postura impositiva de doutrinação do outro pela propagação das suas próprias ideias. Sendo exteriores às máquinas e aos sistemas com os quais interagem, são muitas vezes incapazes de antecipar os riscos que correm, nem prever a falência das suas ideias. Quando a máquina colapsa, raramente conseguem salvar os inocentes.



3.

Os manobradores são normalmente vítimas do abismo da sua própria estrutura mental. Assimilaram um conjunto de conceitos e deixam-se dirigir por eles. O conhecimento é, na sua ótica, um ato de fé, e por isso acreditam sem hesitar nos seus pensamentos. Os manobradores não sabem escapar à teia que eles próprios montaram, através do autoconvencimento e da autoilusão. Não perceberam que a necessidade de dominação os atirou para a irredutibilidade dos conceitos, provocada pela vontade de poder, um meio de dar solidez às suas ideias. Quando se quer manobrar, a entropia queima as etapas do conhecimento, exercendo assim uma força positiva nas boas ou más ideias. A autoilusão e o excesso de confiança são geralmente acompanhadas por uma argumentação excessiva. Os manobradores trabalham ideias até à sua cristalização absoluta. Muitas vezes, esta postura confunde-se com o que habitualmente se chama ortodoxia. Os encaminhadores, por seu turno, olham para a mudança de maneira diferente. Aceitam a sua natureza multifacetada, divergente, contingente, ocasional e imprevisível, e sabem tirar partido das contradições e ambiguidades, da volubilidade e da incompreensão. O que se modifica obriga a adaptações a novas circunstâncias e a aprofundar questionamentos, gerando reinvenções e novas descobertas.
A forma como o fenómeno jazzístico é atualmente apreendido mudou com o tempo, e essa mudança é não apenas incontrolável, como imparável. O encaminhador segue esse movimento sem nele interferir. É como o surfista, que não muda a configuração da onda, mas que sabe tirar partido dela. Hoje, com a disseminação digital do conhecimento, a autonomia do ouvinte é quase plena, e pode até dizer-se que o problema atual do jazz tem mais a ver com o excesso de música e de informação. Como o saber distinguir o que interessa do desinteressante, o essencial do secundário? Para dar resposta a esta pergunta, é imperativo conhecer as diversas facetas dos fenómenos, os seus múltiplos desenvolvimentos, as estruturas formais e as categorias estéticas, não por via de um saber tutelado, mas através de uma construção pessoal. Não podemos entregar o jardim da mente a um jardineiro que lhe é estranho. O encaminhador é, portanto, aquele que trata do seu próprio jardim, sem o entregar a mãos desconhecidas.

Embora reconheçamos que continuem a funcionar como matrizes de compreensão da realidade, as categorias, quando olhadas segundo perspetivas meramente locais, impedem contactos e fraturam as redes de trocas no seio das comunidades. As catalogações são importantes apenas e só quando nos permitem, por exemplo, situar uma pintura ou uma sinfonia na amplitude de um movimento estético e artisticamente relevante para a história da arte. Esta operação mental baseada no uso de categorias não traz nenhum mal ao mundo. No entanto, as categorias são sobretudo usadas como forma de se estabelecerem níveis de diferenciação entre pessoas ou objetos, tornam-se mecanismos de utilização negativos. Neste sentido, aquele que entender o jazz segundo o princípio de que existem diferenças entre as diversas fases no decorrer desta música não está totalmente errado, mas existe um risco de que a utilização da categoria tenha um efeito negativo. O problema da categorização é quando se ultrapassam os limites da generalização, quando as pessoas, pressionadas, distraídas ou absortas pelas suas emoções e interesses mais imediatos, esquecem que uma categoria é somente uma aproximação, uma construção mental, um compromisso útil ao esforço de mútuo entendimento. Por outro lado, as pessoas tendem a moralizar as suas categorias em relação às demais, atribuindo traços estimáveis às suas escolhas e caraterísticas condenáveis às dos outros, considerados ignorantes. O hábito cognitivo de encarar o indivíduo simplesmente como ilustração de uma categoria é herdeiro de um mundo estreito, não global e obsoleto. Aceitar a categorização pressupõe reconhecer uma determinada metodologia de aquisição de conhecimento como válida e eficaz, e acreditar que todas as coisas são investidas de um propósito especialmente extraordinário e rigorosamente definido. Na realidade, o que acontece todos os anos, no espetro da arte, da música e do jazz, é o aparecimento de novos projetos musicais, de novos dados, de novas variáveis, de novas ideias, que devem ser consideradas nas diferentes deduções elaboradas, como casos fortuitos, situações ocasionais frequentemente reformuladas. Esta dinâmica de cruzamento e hibridação põe à prova a solidez, a coerência e a consistência das aquisições anteriores. A mudança não é reconhecível de imediato, manifestando-se de maneira indireta a longo prazo. Quantas vezes uma nova leitura, assim como uma nova audição, define um momento essencial de aprendizagem e de aquisição de saber que muda o anteriormente assimilado? Quando estamos perante novas maneiras de pensar determinado assunto, a nossa mente expande e alarga as suas competências, conseguindo vislumbrar perspetivas diferentes das que o leitor ou o ouvinte possuíam até esse momento. Se o festival se iniciasse de novo seria totalmente diferente, pois ele foi o resultado de uma especial combinação de contingências que redundaram no seu aparecimento. As ideias surgem do contacto dialético com outras formas de pensar, desenvolvendo novos processos de perceção e novos modos de compreensão das circunstâncias. Tudo isto acontece de modo natural, muitas vezes de maneira inconsciente. O processo tanto pode acontecer individualmente, como em grupo. Nas sociedades humanas cada pessoa tem de aceitar normas ou ideias veiculadas pelos costumes, hábitos culturais, escola, religião, política, penetrando num amplo processo de comunicação. Expondo a sua consciência aos efeitos de conhecer novos factos em tempo real, novas realidades até aquele momento desconhecidas, o indivíduo é obrigado a interagir e descobrir num vasto leque de novas informações sobre a atualidade presente para conseguir sobreviver.
Paradoxalmente, no entanto, a palavra de ordem dos dias de hoje, tanto do discurso político como do discurso económico e publicitário, é a palavra liberdade, um conceito que parece ser altamente estimulante para a maioria das pessoas. Este termo tem sido abusivamente usado como remédio ou solução redentora, tendo sofrido nestes últimos anos um intenso desgaste, quanto ao seu significado original. John Gray referia a este propósito que “ao derrubar o tirano, as pessoas ficam mais livres para se tiranizar umas às outras”. Acreditar que a humanidade é amante da liberdade implica necessariamente estarmos preparados para encarar praticamente toda a história humana como um erro. 



4.

O contexto presente é aparentemente mais democrático do que no passado, apesar das insuficiências e da imperfeição da democracia. Uma sociedade permanentemente online, conectada por via de uma nuvem digital, num processo de comunicação planetário, navega de modo contraditório entre forças de sentido inverso, impelida para direções absurdas, rumo a lugares onde se podem vislumbrar algumas certezas e incertezas. Contudo, a situação que sobrevém, face ao futuro desconhecido da globalização e seus efeitos na economia e finanças, política, social, arte e pensamento, carateriza-se por existirem mais incertezas do que certezas, mais inseguranças do que confiança, mais descontrolo do que autodomínio.
O poder da máquina tecno/cibernética instalada no terreno é imenso e tenderá a aumentar no futuro, permitindo desenvolver realidades e mecanismos de controlo virtuais que podem seguir, passo a passo, os movimentos de qualquer pessoa. Num mundo com estas caraterísticas, nós somos forçados a alterar a forma como observamos e projetamos o festival no futuro. Uma coisa é observá-lo pela parte de dentro, como se o observador estivesse no centro de um furacão, numa calma aparente que arrasta, numa extensão de muitos quilómetros, aves e objetos flutuantes. Outra coisa será examiná-lo retrospetivamente, passada a tempestade, compreendendo e verificando as suas consequências positivas ou negativas e antecipando as suas consequências em relação ao futuro. Hoje, apesar da muita informação disponível, continuam a existir inúmeros fatores de risco que não são de imediato percetíveis. Quando falta tempo e espaço para se andar devagar, quando tudo tem de se mover a correr, porque se anseia de resultados imediatos, as ideias são inconsistentes e extraídas à força para cumprir calendário. Já não é possível avaliar a relevância cultural de qualquer acontecimento de acordo com processos civilizacionais de médio ou longo prazo. O tempo exigido para avaliar o impacto de determinado acontecimento é muito curto, porque à sua volta o mundo está empenhado num movimento apressado que tudo arrasta. Hoje, nada consegue manter-se constante durante algum tempo. Esta aceleração cria incerteza, apresentando desvantagens evidentes. Ninguém consegue viver melhor num espaço cujos pontos de referência se alteram permanentemente, e muito menos quando o padrão de vida onde estão inseridas se refaz sem cessar de forma irracional, porque é obrigatório mudar. Sendo formada por informações virtuais, a realidade centra-se em opiniões baseadas mais na aparência dos factos e no jogo de poderes simbólicos, não refletindo um trabalho coletivo. A liberdade que resulta destas condições de existência representa na sua maioria recuos irreversíveis em relação às certezas inscritas nas vitórias importantes da razão sobre o obscurantismo, inscritas nos avanços dos direitos humanos e sociais, já conhecidos de todos e politicamente testados ao longo da história do homem desde o iluminismo até ao século XX. 
Todos possuem as mesmas condições e capacidades para rapidamente interagirem entre si, trocando ideias, informações e conhecimento, podendo desenvolver processos que estimulam as imaginações, pensamentos, desejos, vontades. No entanto tudo parece estar a ficar demasiado uniforme, homogéneo, padronizado, formatado. Se não forem minimamente diligentes para não se deixarem enredar por discursos publicitários, persuasivos e retóricos, desenvolvidos por lógicas agressivas de um marketing voraz que tudo açambarca, todos os indivíduos integrados neste alargado sistema de comunicação se tornarão reféns do deserto da realidade. Torna-se difícil desenvolver ideias interessantes e formas de pensar imprevisíveis num contexto que está ávido de novidades. Só aquelas conseguem atenuar o tédio e o vazio das vidas sem referências estéticas, culturais, artísticas ou intelectuais. São estas referências que diferenciam as pessoas das coisas vulgares, do banal, do corriqueiro, do mau gosto, mas para que tal aconteça é preciso empreender um esforço de amadurecimento individual, muitas vezes difícil de se alcançar. Só trabalhando afincadamente será possível escapar à “gaiola de ferro” social e económica, política que o sistema armadilha para poder controlar.

Nas sociedades atuais é praticamente impossível a emergência do novo, e este princípio vale também para o Guimarães Jazz. A figura do desconhecido funciona como estímulo à descoberta e ao mesmo tempo como seu obstáculo. Tem de se fazer um contrato entre manter o acontecimento no compromisso com as coisas realisticamente possíveis, já conhecidas e abarcadas, e simultaneamente desenvolver-se novas linhas de força no caminho de outras realidades ainda por experimentar. O futuro é um meio-termo, um espaço temporal indefinido entre o presente cronológico e o presente que se transforma segundo a segundo. Na prática, o futuro escapa a qualquer previsão consistente, pois configura a uma multiplicidade de circunstâncias e variáveis culturais, políticas, económicas, sociais e ideológicas, que se interligam entre si de diferentes maneiras, alterando tudo. A forma como as pessoas percecionam a realidade altera-se constantemente, e todas as coisas são como ilhas flutuando num imenso oceano de possibilidades.
O objetivo de quem tenta explicar processos de ligação entre factos passados e presentes, na expetativa de captar um futuro, é garantir alguns horizontes estáveis de modo a poder desenvolver o seu trabalho com alguma dose de certezas. No entanto, o que, na maior parte das vezes, surge no decorrer de um processo criativo e artístico é algo que se define como totalmente imprevisível. As suas consequências a médio e a longo prazo são impossíveis de serem calculadas, sendo difícil prever que esta ou aquela alteração conjuntural vai seguramente interferir com o desenvolvimento futuro do acontecimento. As pessoas sonham com o futuro para poderem aguentar a inclemência do presente. O presente gera medo e insegurança e seria bom que, tal como sucede com as estratégias usadas pela ciência, as visões dantescas dos fenómenos da natureza fossem esconjuradas através das suas explicações; isto é, que o acontecimento cultural fosse objeto de uma análise segura, a qual permitiu realizar a predições verificáveis. No entanto, em matéria do pensamento humanista, é desaconselhável especular sobre certezas de caráter científico relativamente à compreensão do passado. É evidente que se podem cruzar dados e factos, criando-se modelos matemáticos que permitam definir tendências ou alterações quantitativas, elaborando-se gráficos ou diagramas sobre a sua evolução. Contudo, quando se cria um festival, não se pode pegar num conjunto de dados, mesmo que estes sejam objetivos, e extrapolá-los imediatamente como se fossem visões indiscutíveis sobre o seu futuro. Captar esta dimensão temporal só tem interesse para o festival porque se tomam por problemáticas as questões relativas à sua continuidade no tempo, procurando-se sinais de vitalidade ou decadência. No fundo, as pessoas sentem-se atraídas pela morte porque desejam viver, e por isso antecipam possíveis sintomas que sinalizem a proximidade do fim. Tratam o acontecimento como se fosse o corpo de um indivíduo, pensando que uma deteção precoce dos efeitos negativos permitirá estancar a inevitável tendência para o abismo. Desde o seu começo qualquer processo organizacional caminha inexoravelmente para a atrofia entrópica. Pensar no seu futuro é reconhecer este facto e trabalhar nele é tentar postergar o seu fim. O prognóstico face a esta possibilidade é que a probabilidade de ocorrer um episódio demasiado grave que leve à morte do Guimarães Jazz estará sempre presente e em aberto, seja qual for o êxito ou o fracasso.
Porém, profetizar a extinção de um evento é um exercício arriscado, um palpite no vazio do tempo. As pessoas mais sensatas geralmente tiram conclusões com o fim à vista, e mesmo assim enganam-se. O mundo da opinião pública está repleto de falsos obituários, destinados a serem rapidamente esquecidos. Mesmo nas catástrofes mais violentas, verificou-se que apesar de estatisticamente improváveis, existem sempre fatores aleatórios e impossíveis de controlar. Apesar de todo o conhecimento à nossa disposição, sabemos apenas que o homem está a fugir, a correr em direção a um destino desconhecido, e que daí algo surgirá. Nas palavras de Zygmunt Bauman: “Sendo a imaginação humana o que é, a situação não nos vai impedir de pintar imagens do que há no futuro à espera da visita dos viajantes. Quando chegar o momento de provar ou refutar a exatidão das nossas telas, o futuro já se terá tornado passado. É por isso que a história é um cemitério de esperanças não realizadas e de expetativas frustradas, enquanto os planos do paraíso com lamentável frequência se convertem em guias para o inferno”.


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