AUTOR: IVO MARTINS
EDIÇÃO: (Catálogo) Centro Cultural Vila Flor DATA: Outubro de 2015
O trabalho de Paulo Mendes especula sobre o desassossego de uma presença post-mortem. No propósito de
questionamento crítico sobre os efeitos traumáticos de um regime, o artista junta diferentes elementos visuais,
numa disposição visionária e parcelar, reativando o que historicamente sucumbiu à vulgaridade e indiferença.
O “Senhor S, protagonista da exposição, surge como reabilitação iconoclasta do Homem sem Qualidades, de
Robert Musil. A falta de legitimidade humanista que traça o percurso histórico do ditador faz soçobrar a sua
imagem no abismo enigmático; sombra esfíngica e patológica, reflexo especular, aparência sintomática,
interpela o observador que, pelo reconhecimento do outro se reconhece neste diálogo interior. A silhueta esquiva,
difusa e sinuosa do “Senhor S” erra no amontoado de artefactos, preservados no sótão das memórias recalcadas;
silenciosa, quase inerte, contempla, de forma panótica, os medos, angústias, incertezas, debilidades e
inseguranças, desdenhando o perigo, ambivalência ou relatividade de opiniões, argumentos e ideologias.
“Quando um ditador delirante tem condições para realizar socialmente o seu delírio, não vai para o manicómio,
mas é a sociedade que se torna manicómio, às vezes quase impercetivelmente”, refere José Gil refere, in Em
Busca de Identidade, o desnorte.
A exposição sugere um espaço fechado, durante décadas selado, no qual o “Senhor S” emerge como repositório
de atos cruéis. Misturados com as peças, os objetos de uso comum, abandonados, esquecidos e dispostos ao
acaso, evocam a paisagem cultural da personagem fantasmática; constituindo um peculiar sistema de sinais, põe
a nu o jogo semântico entre objetos e elementos visuais, aos quais um código intuitivo extralinguístico atribui
uma espécie de “iluminação” historicista e ficcional. Assim, a cada significado correspondem múltiplas hipóteses
de iluminação, pelas evocações, alusões, simulações imaginosas na cor ou fragrância de um pensamento.
Segundo George Steiner, em Extraterritorial “Observar é transformar; definir e compreender, ainda que nos
termos mais neutros e abstratos, significa integrar as evidências numa matriz particular de escolhas humanas, de
imagens e de reflexos simbólicos.”
Neste “armazém de memórias”, o escape ficcional da experiência subjetiva traduz uma fuga momentânea ao que
é óbvio, pobre e homogéneo - fundamentos do pensamento único e monolítico. Envolvido pelos seus distintos
traços expressivos, condenado a uma solidão asfixiante no labirinto de artefactos epocais, o “Senhor S” enceta
uma segunda vida, induzindo uma dialética sensorial de índole surrealista, ancorada numa ironia trágica que
reveste a mensagem de grotesco e absurdo.
A ditadura que revive a sua história num depósito de velharias, embora em imobilidade comatosa, ameaça
ressurgir do fundo obscuro de todos os esquecimentos. O caos e a desordem instalados invocam a perseguição aos
livres percursos do pensamento; o controlo e deturpação da linguagem; a injustiça; a censura; a decadência; o
excesso de burocracia e papelada; a histeria agitadora das velhas proclamações nacionalistas e patrióticas, assim
como a reescrita da história em delirante ficção. As inúmeras variáveis formais, combinações visuais, associações
ou substituições entre programa político e realidade, testemunham o irresolúvel interface duma crise
civilizacional.
O “S” inicial indica sigla, abreviatura, ou súmula apriorística de uma tutela paternalista que semeou medos e
inseguranças. Líder do aparelho, atirou os cidadãos para uma zona cinzenta de indiferenciação individual e
ideológica, sem nome nem identificação, porque lhes sonegou o passado, formatando-lhes um futuro. O projeto
totalitário sobrepõe-se à imaginação, enquanto a memória é constantemente manipulada. A letra “S” assume
várias conotações rebarbativas: veda o caminho ao conhecimento tornando os factos absolutos; estigmatiza os
elementos estranhos ao sistema; rasura e apaga nomes, atos e pensamentos dos mortos indesejáveis; obriga os
habitantes a viverem numa comunidade sem ecos e a acatarem incondicionalmente a disciplina do chefe, … para,
no comodismo amorfo, garantirem uma sobrevivência sem problemas.
Enquanto a descrença nos valores humanistas e a desilusão da democracia liberal fizerem emergir respostas
saudosistas e sinais de intolerância, como forma de protesto, o “Senhor S” tem o seu lugar assegurado.
Inquieto e angustiado pelos fantasmas da violência que o perseguem, o público é empurrado para um campo
imaginativo de referentes totalitários, prontos a eclodir a qualquer instante - perante o “Senhor S”, transparentes
e semelhantes, todos são alvos.
Este corpo de trabalho tanto espelha um sentimento de desconfiança face a todas as formas de expressão como
de desilusão relativamente à esperança de refazer a condição humana em novos moldes - a desagregação do
conceito de vida boa, criado pelos filósofos da antiguidade clássica, tem vindo a acelerar desde a primeira Grande
Guerra.
Esta experiência artística explora a contradição do potencial semiótico de qualquer objeto, frase, ou imagem.
Recriada nas suas ambiguidades, repetições, metamorfoses, ressonâncias... o equilíbrio ou alienação, a dinâmica
ou inércia, a harmonia ou contradição, devem respeitar-se para que a linguagem reencontre “os encantos da
obscuridade”...