AUTOR: IVO MARTINS 
EDIÇÃO:
Jornal Guimarães Jazz #9 - Câmara Municipal de Guimarães/ Associação Cultural Convívio/ A Oficina     DATA: Novembro de 2014 






Em memória de Jorge Lima Barreto





                                  INTERMINÁVEIS HORIZONTES...

Para se obter um retrato fiel do panorama jazzístico mundial, nada mais simples que pesquisar no YouTube. Escreve-se a palavra “jazz” e, de imediato, surge uma lista infindável de documentos: nuns casos imagens e som, noutros apenas som, incorporando propostas audiovisuais distintas, tanto pelo reconhecimento das suas proveniências, como pelo caráter eminentemente aleatório das temáticas sugeridas. Do material produzido pelos vários mecanismos de captação (dos mais assombrosos dispositivos tecnológicos, às rudimentares máquinas de gravação), passando pela recolha e pelo registo em tempo real, tudo ali existe, preparado para resistir ao desgaste dos dias como um eterno filme sonoro sobre as idades do jazz, cujo guião se encontra ao dispor de qualquer cibernauta. Neste ambiente quase ficcional perde-se a noção espácio-temporal, sendo-se levado a ignorar datas, anos e até os lugares. Constrói-se então um espaço inacabado, de horizontes intermináveis - uma espécie de eternidade permanentemente atualizada, composta por uma infinidade de combinações tornadas realidade pela capacidade de armazenamento online. Num contexto tão aberto quanto instável, por causa do contínuo acréscimo de material audiovisual, a ordenação cronológica e a sequência estética da multiplicidade de vídeos e de registos sonoros, inseridos na grande película universal que é o YouTube, perdem todo o sentido. Este todo formado por médium/som/imagem (zeitgeist), é a soma de inúmeras variáveis psicossociológicas e constitui um extenso domínio de compreensão que, pelo facto de ser tão vasto, graças aos mecanismos de divulgação e comunicação, reativa as faculdades cognitivas. Entretanto, a acessibilidade aos acontecimentos em tempo real, favorece novas apropriações. A assimilação esclarecida daqui resultante é absorvida pelo “buraco negro” da computação, no qual sons e imagens caem rapidamente no esquecimento. A digitalização do som e da imagem criou uma informe realidade imaterial, assente numa tecnologia de ponta, tornada prática diária de contacto com o jazz; pela facilidade de acesso a toda a informação disponível, o utilizador transforma-se em self-made man das suas construções imaginais, sendo o protagonista da sua vivência comunicacional.

A novidade é efémera e precária – hoje, o que é novo perde imediatamente o impacto da surpresa, banalizando-se. A sobreprodução musical estimula os órgãos auditivos na mesma medida em que os entedia e imuniza; os sons bombardeiam os ouvidos na mesma cadência com que se desvanecem. A impossibilidade de absorver o excesso de música produzida torna o mundo tão movediço quanto difuso nos seus recortes sonoros. Acrescente-se a esta complexidade a intensa circulação de indivíduos que se fazem acompanhar pelas respetivas culturas. Para além destes, outros fatores de origem endógena (mental) e exógena (física) influenciam a perceção musical, pois só a música à qual se atribui significado se distingue da que é consumida e logo esquecida. O sistema de difusão e comercialização elege artistas, tanto pela sua competência na gestão de uma imagem pública de marca, como pela qualidade da obra e do talento que evidenciam; a promoção e o marketing são incumbidos de lhes desenhar um rosto, uma identidade artificial, reconhecível pelas multidões. Hoje, devido à volatilidade dos mass media, dificilmente se consegue traçar o perfil definitivo de uma carreira, porque os esboços são elaborados na ausência corpórea da vedeta, como imagens animadas pela imaginação dos fãs que a seguem e consomem a sua música. Esta passou a habitar o universo cibernético que, por não possuir uma hierarquia materialmente definida, se transformou numa igualitária plataforma de utilização democrática, onde é complicado estabelecer qualquer ordenação valorativa.

O rápido desenvolvimento tecnológico parece concretizar o ideal utópico de acesso imediato a toda a atividade musical. É fascinante a superação do espaço tridimensional dos registos televisivos ou digitais que exibem um músico a tocar num lugar diferente daquele onde se encontra quem vê e escuta; virtualmente, este é transportado para o lugar da transmissão das imagens. A facilidade de aquisição de dispositivos de emissão, reprodução, captação e arquivo alargam, exponenciando, a base de dados disponível na internet ou no ciberespaço – a um preço razoável, é possível armazenar toda a música do mundo num ficheiro de alta resolução. Concebida segundo a ótica do utilizador, esta informação organiza-se de forma transversal, disseminando-se em rede. O ouvinte da era pré-digital dispunha de um reduzido leque de opções, fornecido pelos meios de comunicação tradicionais (rádio, televisão analógica, discos, cassetes, vídeos, cds, dvds, …), por isso não interferia no processo de emissão/receção. Presentemente, acedendo aos múltiplos programas de venda de música on line, às redes sociais e aos grupos de interessados no fenómeno musical, qualquer um pode ser agente interativo, à escala planetária. Possivelmente, esta realidade permite alargar a perceção da ordem cronológica e linear da História do Jazz, contrariando a tendência para a uniformização de sons e imagens. No entanto, só uma investigação perspicaz orienta o utilizador no oceano da informação disponível, ajudando-o a selecionar o material pertinente; se porém, quiser libertar o seu conhecimento da tirania dos motores de busca, terá de se cultivar constantemente.

O jazz beneficiou da sua localização entre a música erudita, mais exigente e sofisticada e a popular, mais simples e menos comprometida com o rigor da composição. Todavia, ao longo da sua breve história, (pouco mais de um século) sempre houve discordância na definição dos estilos, graças às múltiplas sobreposições no tempo e no espaço. Quanto mais pormenorizada é a sistematização, tanto mais ineficaz é o inventário de tipos, movimentos, géneros, categorias, escolas, em que esta música persistentemente se fragmentou. Apesar da rapidez das mutações, o velho confronto entre tradição e modernidade, presente em todo o esforço de catalogação, foi alimentando alguma tensão criativa. As sucessivas fraturas obstruíam a compreensão e interiorização de cada nova forma, quando outra lhe sucedia. Em arte não se pode falar de evolução com base na lenta assimilação de uma nova abordagem, embora o seu aparecimento seja compreensível. Um músico nascido no princípio do século XX, cuja vida lhe tenha permitido desenvolver uma longa carreira (a história está cheia destes exemplos) terá presenciado, acompanhado e atravessado as principais mudanças de estilo. Esta experiência de vivenciar numerosas metamorfoses num curto período, é exclusiva do jazz, não havendo paralelo em mais nenhum género musical. Talvez esta particularidade, assim como a ideia de velocidade tenham contribuído para a sua aceitação, à semelhança do que aconteceu em muitas outras manifestações artísticas do século XX.

O jazz adotou, senão todas, muitas das estratégias da arte moderna: apropriou-se de material proveniente de outras culturas (africana, europeia, islâmica, oriental…), quer a nível da composição e do ritmo, quer da incorporação de instrumentos oriundos de diversas latitudes; introduziu objetos e acessórios que transformaram e deformaram o som original dos instrumentos - piano e guitarras preparados e eletrificados; adotou uma parafernália de equipamentos elétricos, eletrónicos, bem como a utilização de tecnologia digital; recorreu ao conceito; à ideia; a técnicas de execução transferidas do rock, pop, música de dança, minimalista, contemporânea, concreta, eletrónica,…; ao automatismo da linguagem, expresso nas escritas musicais não convencionais, usando esquemas, desenhos e sinais gráficos; à improvisação em tempo real, explorando uma comunicação sensorial, intuitiva e instantânea entre executantes; à repetição ostensiva do gesto; à performance eminentemente física, na qual cada solista usa o corpo, encetando uma nova relação coreográfica com o instrumento; à estética do grito, do ruído, do caos em sonoridades livres e esotéricas; a experiências de índole quase religiosa e ao transe ou abandono - viagem contemplativa, em busca de um estado superior de consciência. Além disso, fiel à beleza e à verdade, o jazz é vivido como missão, desafio fatalmente inacabado, na demanda da liberdade genuína - tentativa de aproximação a algo que, estando para além dos sentidos, é inatingível.

Muitas histórias se cruzam nesta música: a da arte em geral e da sua poética modernista; a dos homens da metrópole cosmopolita do século XX, ponto privilegiado de fusão cultural, donde emergiu um fenómeno de mestiçagem sem precedentes; a dos músicos e a dos seus instrumentos, pela descoberta de novos sons e maneiras de tocar; a do instrumentista artesão e autodidata; a dos artistas influenciados por novas codificações da escrita musical; a dos locais, das ruas, das salas de espetáculo, dos bares, dos salões de dança, dos bordéis; a dos acontecimentos, dos concertos, dos festivais, dos ciclos temáticos; a da formação, do academismo, das escolas e universidades; a da indústria; a dos críticos e divulgadores que sustentaram, difundiram, investigaram e escreveram sobre as suas especificidades; a do público que o acompanha e segue com atenção. Todas estas narrativas lhe conferem o estatuto de excecional corpo de trabalho, que poderia ter-se extinguido, mas se transformou numa forma musical autónoma, na qual cada obra constitui uma representação sui generis. Embora sujeito a convenções e ao legado dos seus precursores, o jazz brotou espontaneamente num contexto urbano transcultural. Reconhecido e classificado num quadro semântico de amplas estruturas formais e históricas, é uma espécie de milagre que marca a vitória do pormenor sobre a vastidão do universo, revelada em ato de ser - presença real que sensibiliza e emociona. Num glossário específico, as ideias normativas, pragmáticas e descritivas, envolvem-no, inserindo-o num tecido explicativo que o diferencia e individualiza. O seu corpus, um todo sensível ou diálogo intimista, que suscita asserções discutíveis sobre a sua natureza, qualidades e funções, é objeto de uma divergência insanável. Percorrendo-se os estilos ao longo da história, vislumbra-se uma espécie de deslocação progressiva, idêntica ao de um diagrama evolucionista. Considerados os quatro estilos mais representativos do século XX, (New Orleans, Swing, BeBop e Free Jazz) percebe-se uma oscilação entre rutura e assimilação, traduzida num movimento do simples para o complexo ou vice-versa. Os estilos surgiram como cortes intermitentes, abrindo fissuras num todo em movimento; embora assinale o fim e início de percurso, tal descontinuidade não permite identificar uma verdadeira transição evolutiva. O Swing e o Be Bop, “conceitos contentor”, caracterizam espaços abertos de significação, preenchidos com o que cada um neles deseja encontrar. Estas denominações artificialmente fabricadas, de origem polissémica, cuja função referencial indica muitas coisas, abrangem inúmeros campos semânticos e contêm numerosos matizes, aparecendo recorrentemente em dissensões teóricas, trabalhos de investigação cultural ou histórica e em peças jornalísticas.Com o passar do tempo, os conceitos vão mudando de significado, conforme a sua aplicabilidade. Para alguns, o Swing e o Be Bop encontram-se numa posição intermédia de mediação entre o New Orleans e o Free Jazz, enquanto formas limite de expressão que ilustram o início e o fim - à semelhança da experiência humana marcam o instante do nascimento (ponto de partida) e o da morte (local de chegada).

Face aos acontecimentos políticos, sociais e económicos responsáveis portensões antagónicas, o jazz estabeleceu momentos de equilíbrio na decomposição fragmentária do território e da pertença culturais.

Num contexto em permanente mutação, o investigador/crítico tem de saber distinguir, relacionar e conectar singularidades, sem se focar na visão microscópica do detalhe. Não é o facto de se invocar o caráter inovador de uma obra que lhe garante a sua efetiva compreensão e avaliação. Quando baseadas em observações parciais de pormenor, as afirmações favoráveis são geralmente incompletas e ineficazes. A defesa da inovação, esgrimindo argumentos contundentes e ignorando a vastidão do fenómeno, não resulta senão na redundância dos discursos. O pretexto da modernidade ou da atualidade de uma obra, porque foi produzida no presente, não basta à sua legitimação. Repetir à exaustão uma ideia musical, apesar das diferenças formais, não lhe confere pertinência, nem autonomia artística. Raramente se descortina algo de novo sob o véu espesso da novidade e da argumentação. Muitas das sistematizações existentes forçam a inclusão de algumas formas musicais em mapas síntese de ordenação conceptual, que fracionam, dividem e subdividem em categorias, subcategorias e infracategorias os estilos. Estas classificações forçadas, estruturadas como certeza intelectual, são fruto da globalização, da especialização das temáticas e de uma subjetivação radical que, subordinando o jazz à exclusividade da ideia ou à abstração do conceito, o despojam de emotividade e de ligação com o real.

A divergência entre o acessório e o essencial reflete-se na maior parte das publicações da especialidade: enquanto umas se centram em particularidades, ignorando as bases mentais complexas, nas quais a solidez idiossincrática do jazz assenta, outras seguem uma abordagem generalista, numa cronologia de acontecimentos segundo uma lógica de inclusão, explorando as inter-relações com o meio envolvente. A metodologia bipolar referida terá sido o método mais expedito de condensar, em alguns pontos fundamentais mas não identificativos, uma arte de difícil apreensão. Seria de toda a utilidade separar-se o percurso do jazz, que se confunde com os avanços e recuos dos diferentes estilos, dos seus movimentos. Estas variações estilísticas não foram nem acidentais, nem espontâneas, pelo que não devem ser tratadas como matéria amorfa, imune à pressão exterior. Descodificar o todo transcultural expresso no jazz não passa pela procura de uma moldura simbólica e de representação imagética que o enquadre na experiência do mundo, mas pela de necessidade de se encarar como organismo vivo, cuja complexidade advém da projeção caleidoscópica de cada parte; pela compreensão dos temas intemporais, da sua história; pela análise da forma e do modo como os elementos interagem entre si; pelo entendimento do papel dos instrumentos através dos quais o artista se expressa; pelos suportes tecnológicos que utiliza para se fazer ouvir; pelas técnicas de composição, arranjos, improvisação de cada época... O rastreio de cada componente permite aprofundar a sua dimensão expressiva.

Acústico, eletrónico, ou mais recentemente digital são termos que designam meios particulares de produção musical. Todavia, não são os fatores mais relevantes para definir o jazz, música essencialmente improvisada, tão simples quanto complexa, em constante mutação, cuja localização temporal transparece nos meios/suportes usados. Graças a estes aspetos e contrariamente a outras expressões musicais, não lhe pesa o fantasma da repetição. Conhecer os traços distintivos não assegura a sua total apreensão, embora se consiga identificar os alicerces a partir dos quais foram arquitetadas as suas ramificações. Quanto aos diferentes estilos, pode apenas concluir-se que na sua materialidade sonora ficaram gravados vestígios de uma procura obsessiva de sentido criativo. A falta de unanimidade entre historiadores, investigadores e agentes relativamente aos nomes convencionados, deve-se ao facto de na sua textura haver sobreposição de sonoridades, zonas de indiferenciação, pequenas partes porosas e obscuras que se bifurcam, comunicam e confundem entre si. Tratando-se de uma matéria plástica, esta arte foi adquirindo maturidade e espessura, ao longo do seu caminho, pelas sucessivas intervenções artísticas e musicais. O ouvido atento e sensível de quem toca ou escuta faz do jazz uma delicada síntese cognitiva (conceitos plenos de significado, critérios de adesão subjetiva e afinidades eletivas de identidade, participação, gosto…), que tanto regista conflitos, como instantes de prazer ou júbilo, numa alargada e imaginária experiência corpórea. É-se tanto mais sensível à música improvisada quanto menos consciente se for da própria intervenção na construção musical, à qual se submeteu a sensibilidade, gosto, conhecimento, intuição, instinto …; dir-se-ia que o som se impõe pelo seu poder de sedução. Na torrente de sons que inundam o quotidiano, trava-se uma dura batalha de seleção; poderosas máquinas publicitárias cruzam obras de qualidade com muitos lugares comuns, promovendo uma cultura híbrida, cujas estruturas sonoras e rítmicas importadas ou adotadas, são incessantemente adaptadas, recriadas e alteradas. Moldadas pelo e para o ouvido, no momento de cada audição, as sonoridades são trabalhadas de modo a desencadearem reações mnemónicas - a partir de uma primeira impressão estimulam múltiplas associações.

A antiga geografia dos locais fixos e imutáveis da cultura foi substituída por espaços de trânsito e circulação transnacional. A velha sala de concertos, último reduto da consagração artística, agora inserida em redes interativas de comunicação, concorre com inúmeros dispositivos de difusão. A descaracterização desse espaço diluiu o carácter solene da música, dessacralizando-a. Esta desconstrução de referências foi acelerada pela globalização. Muitas formas de cultura local perderam o seu lugar de origem no caldo de experiências cosmopolitas. Assim, a interseção dos movimentos populacionais com a circulação de informação apoiada por novas ferramentas de telecomunicações, dinamizam outros circuitos de comunicação.

Que músicos contemporâneos se podem considerar completamente originais depois de analisados, comparados e relacionados os seus trabalhos com os do seu tempo e os do passado? Poucos, dirão alguns. A obra materializa-se, percecionada pelos sentidos, sujeita ao controlo do pensamento, revelando uma realidade interior/exterior que, conectada no tempo e no espaço, funde passado, presente e futuro. Penetrar nessa área infinita de elaboração cognitiva, implica aceder a uma esquiva, incerta e variável totalidade em explosão. É neste terreno sem forma fixa nem pontos de apoio consistentes que tem de se encontrar explicações. Na orla do tempo, do espaço e do entendimento tudo se mantém extraordinariamente simples, se bem que mais abstrato. A interpretação do mundo pelo lado predominantemente científico, não liberta o indivíduo dos labirintos da razão nem da crença, apenas dificulta a apreensão das coisas comuns, gerando novos medos e incertezas.

Durante muito tempo, na variedade do canto das aves, no silvar do vento e no ribombar do trovão, o ser humano pressentiu o poder da música. Intermediário entre o universo e o seu mundo interior, através do corpo explorou o som, do qual se apropriou, procurando dominar a grandiosidade acústica da natureza. Este desdobrou-se em sonoridades refinadas que refletem um processo de criação peculiar, caracterizando uma área de elevado encantamento estético. Segundo a mitologia grega, Prometeu roubou o fogo aos Deuses e entregou-o à humanidade, o que acabou por retratara vontade humana de controlar a matéria. De modo análogo, nas danças ritualistas ao som de cânticos e de percussões, o corpo adquire uma dimensão crítica na troca simbólica a que se sujeita, dominado pela música que o invade; subtraído à ordem natural dos acontecimentos, insere-se na poética de uma subjetividade. Fascinado pelo som e ritmo, o homem transfigurava-se em descontrolados movimentos espontâneos, como possuído por um sósia, outro alguém ou espírito de si próprio. Na falta de uma razão evidente que explicasse o fenómeno, criou-se o mito; história dramatizada como fábula de compreensão que inscreve um segmento fantasioso numa narrativa exemplar do imaginário coletivo, a partir de um sonho (imaginário individual);estaficção imagética e escrita de emanação do saber funcionou durante séculos como arquétipo intuitivo de mediação entre indivíduos. Tomada como postulado, a alegoria apaziguou e uniu os espíritos, enquanto o homem não se assumiu como medida de todas as coisas. O mito, o sonho e a ficção colmatavam o vazio de pensamento científico, criando uma mundivisão sincrética que, dialeticamente erigia pontes para o conhecimento.

A música resulta dessa significação atribuída aos sons da natureza. Pela sua peculiar inteligência de apreensão e pela invenção de uma linguagem consciente, o homem assenhoreou-se do ritmo, altura do som, timbre, harmonia, dissonância, … e, respondendo afetivamente à imaginação, elaborou formulações estáveis do Universo. Competindo com a natureza, concebeu e contrapôs-lhe sonoridades, libertando-se do acaso. Enunciadas leis, normas e valores sobre a verdade, geometrização, proporção, harmonia das formas, ideal de perfeição e beleza, primeiro dos corpos/imagens, depois dos sons/música, o homem torna-se o centro do mundo. Forma de arte ponderada e controlada, a música gera uma ilusão de poder soberano sobre o universo, através do cálculo, da planificação e manipulação. O impacto do som, traduzido em manifestações de alegria, tristeza, contemplação, oração, transe, celebração, confronto, possessão, esoterismo... originou uma fenomenologia do fantástico. Ao vazio criado pela inexplicável força de sedução da música, seguiram-se fases sucessivas de procura de estruturações sonoras, mais elaboradas e complexas.

A história do homem, assim como a do domínio dos meios (construção de instrumentos, escalas musicais e técnicas de composição e escrita) são campos coincidentes de intervenção, que permitem entender o fenómeno jazzístico. A clarificação da cadeia mitológica de simbologias ocorre nas explicações racionais, subjacentes a todas as configurações imaginárias ou sonhadas. Findo o império do mito, o homem entregue ao seu destino, autonomiza-se e liberta-se do peso da fatalidade existencial a que estava agrilhoado. Contudo, esta liberdade vai sendo condicionada pela sujeição a normas, das quais não consegue apartar-se ou desviar-se. A atividade simbólica, inerente tanto ao sonho como aos estados de possessão, assentava numa dualidade simplista entre imaginação e realidade. Entretanto, a recordação fictícia de um ser inocente, antes do pecado original, foi substituída pela imagem do homem futuro, vivendo num mundo em que a técnica se terá transformado em natureza. Idealizar o processo criativo como obra de um ser superior e transcendente, que teria escolhido a humanidade para materializar e finalizar o seu projeto, já não faz sentido. Hoje, dependente da tecnologia que produz, o indivíduo confronta-se com uma nova crise existencial, em parte refletida na arte contemporânea.
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Inicialmente, dialeto de negros e brancos pobres do sul dos Estados Unidos, o jazz exteriorizava um sentimento de resistência e defesa de identidade, agregando não apenas emigrantes mas também uma comunidade afro-americana sacrificada, rejeitada e explorada, sob um regime de escravatura que, após a sua abolição, foi submetida a um violento sistema de segregação racial. Muitos músicos não tinham conhecimentos profundos sobre técnica musical, nem preocupação intelectual com a música que praticavam. A escassa informação respeitante a esse período decorre da necessidade de se ter ocultado um ofício nem aceite, nem bem visto pelo poder hegemónico. O jazz acabava por ser uma reação face a um conservadorismo racista que controlava e perseguia manifestações de irreverência. Os eufemismos empregues na linguagem e nas formas criativas denunciavam a opressão do discurso público, que mascarava uma realidade profundamente sórdida e injusta. As reuniões clandestinas onde era tocado deram origem a demonstrações públicas e populares, nas quais as pessoas mostravam, de modo exuberante ou melancólico, os seus estados de alma. A música exprimia sonhos de emancipação e desejos de vingança, muitas vezes revelados em ousadia e sublevação, a resistência que no mundo imaginário dos vencidos se move contra os vencedores. Não admira que, durante décadas, as cervejarias, os pubs, as tabernas, os cabarés, as adegas e as caves tenham sido considerados locais de marginalidade e insubmissão, na cultura europeia. Olhados pelas entidades religiosas e seculares como espaços de incitamento à desordem, estes pontos de encontro, geralmente afastados dos centros das cidades, em zonas suburbanas periféricas, com um índice elevado de pobreza, eram difíceis de controlar. Rapidamente se tornaram recintos privilegiados de transmissão de uma cultura popular, onde grupos minoritários, racial e socialmente segregados ritualizavam o seu desejo de libertação, a coberto da vigilância das autoridades. Numa atmosfera de liberdade, estimulada pelo álcool e pelo abrandamento dos costumes, sobrevinham situações de partilha e reforço de confiança. Este ambiente alertava para as condições de vida da população, assim como para o lugar a que estava confinada numa sociedade industrial moderna, instigando os indivíduos a lutar contra a rígida disciplina temporal e espacial, imposta pela nova ordem de acumulação capitalista.

Foi nesta esfera de tensão existencial que o jazz surgiu. Exprimindo o gosto musical de minorias pobres e segregadas, transformou-se numa forma de atuação dissidente para gente audaciosa, aliciando excluídos e marginais. Enquanto linguagem partilhada proporcionava uma base real para as experiências coletivas de protesto, visto que refletia fantasias de afirmação cultural, no íntimo sentido musical de cada um.

Hoje, o jazz não é sentido da mesma maneira, nem denota o mesmo teor contestatário, embora continue a ser uma música de minorias.

Nas sociedades pós-ideológicas a subversão não suscita alternativas à posição hegemónica. Com frequência, quem se rebela veementemente contra as instituições perde alguma da sua inocência. Ainda que não abdique da honestidade ou boa-fé, os seus atos são irrelevantes e inconsequentes, acabando por consolidar o sistema a que se opõem. Num campo intensa e constantemente colonizado por imagens e sons, tem de se adotar uma atitude de distanciamento, a fim de não se ficar dependente do caudal informativo, cujas notícias, passado o prazo de atualidade, se tornam lixo. Para se dar lugar à originalidade, não se devem reduzir as diferenças qualitativas a distinções de caráter formal.

As pessoas são convidadas a ter voz e a transformar-se em repórteres do seu eu quotidiano; nos monitores de sua casa, experimentam breves instantes de catarse sem redenção. Sobretudo numa música minoritária como o jazz, a solidão é sentida com intensidade no défice estatístico da tabela de audiências. Entre tanta informação disponível e facilidade de acesso, persiste o frente-a-frente nos dois setores de opinião historicamente antagónicos: de um lado os conservadores, defensores da corrente principal, da tradição e do mainstream, os chamados classicistas ou retrógrados, segundo alguns; do outro, os modernistas, vanguardistas, progressistas, pró-ativos, militantes do free, radicais - duas faces da moeda. Deve encarar-se o jazz numa perspetiva abrangente, englobante e aberta, para não se cair no logro do espelho - a dúvida de se saber em qual dos lados se encontra o indivíduo e em qual se reflete a sua imagem. Se tal acontecer, o campo de opinião fica simetricamente dividido, segundo um modelo dicotómico de catalogação demasiado previsível. Nesta relação tudo se submete ao jogo das tensões dialéticas, expressas num comportamento quase neurótico de perseguição dos movimentos alheios, na obsessão de responder a um apelo gregário de índole tribal. Numa correlação bipolar não há ideias isentas de paixões arrebatadas. Qualquer um destes pontos de vista inibe a revelação do gosto, assim como a análise ponderada dos materiais existentes, interferindo na maneira como se compreende a música. Muitas vezes esta converte-se numa matéria inerte, quase sem vida, ao mesmo tempo que o contraditório se resume à luta de fações rivais. Face ao confronto entre conservadorismo e pertença radical - processo autodestrutivo dos grupos divergentes, que mantém vivo todo o género de conflitos - deve optar-se pela subtração de resistência, isto é, pela liberdade de recuar à posição de observador atento e inquiridor. Subordinando-se o que se faz às lógicas de conflito, exclui-se a hipótese de se desenvolver uma plataforma de criação, onde surjam soluções interessantes. Os antagonismos de grupo são os maiores inimigos da lucidez, porque fazem perder energia em batalhas inglórias, quando é indispensável contrariar a inércia de um monopólio de representação dualista, fraturado entre antigo e moderno. As vãs e esporádicas vitórias, ou os ganhos efémeros de opinião, pouco ou nada têm acrescentado à qualidade do trabalho artístico. Apesar das oscilações de pensamento crítico, a rigidez entre antigo e moderno é omnipresente e preponderante, em muito do jazz feito em Portugal. Assinala um ciclo de criação esgotado, que se repete indefinidamente; cortar essa corrente, na qual confluem forças de dominação e ideais de emancipação, pode constituir o início de uma verdadeira alternativa. Talvez a faltade opções e a náusea claustrofóbica das repetições, réplicas e contrafações criativas, alertem para a necessidade de não se demarcarem campos de atuação, para evitar que as dissensões se limitem a descer ou a subir na circularidade de confrontos e contradições. Convém conservar-se um espírito crítico e vigilante, de modo a esbater tanto a dependência dos interesses como a volatilidade dos discursos que, radicais e profícuos durante o século XX, hoje pouco contribuem para estimular a originalidade.

É impossível sistematizar-se o jazz num manual de instruções abrangente, fiável e passível de enunciar todas as suas variáveis. Os órgãos sensoriais são os mesmos; foram as perceções que mudaram, porque expostas às alterações culturais. Sempre se fez e ainda se faz, um discurso de resistência contra todo o tipo de preconceitos, rejeitando posições absolutas e definitivas. Esta oposição pode assumir a forma de luta contra sistematizações lineares de carácter academista, ou negar o paradigma de fórmula única, expressa numa linguagem impositiva. É imprescindível à criatividade, um campo especulativo de protesto, indignação e atrito, no qual se possa perfilhar livremente não um ideário pró-ativo de afrontamento, mas uma reivindicação libertária, sem conotação programática. O valor da indeterminação e da complementaridade, deve manifestar-se na perspetiva crítica de alguém que, exterior ao sistema, o analisa com distância e isenção. Fiel à verdade e à beleza tem de, em defesa da liberdade criativa, denunciar o poder dos média e do mercado, aceitando todas as posições. Atitudes emotivas, desprovidas de verdadeiros propósitos orientadores e motivadores, reacendem a velha luta apaixonada entre “liberais anémicos” e fundamentalistas fervorosos. Zizek refere “se o insistente lugar-comum de que vivemos numa era pós-ideológica tiver algum sentido, é aqui, nas violentas explosões que têm vindo a acontecer (…)”. Atualmente multiplicam-se os conflitos ativados por um sentimento de mal-estar generalizado, cujos participantes não fazem qualquer exigência. Estes tumultos encarnam o protesto de nível zero, um ato à margem dos tradicionais cadernos reivindicativos. Na tentativa de lhes atribuir sentido, sociólogos, intelectuais e comentadores ofuscam o enigma das manifestações.

No cortejo mediático da espetacularidade contemporânea,o artista vê-se obrigado a ser permanente objeto de notícia para preservar o seu estatuto de vedeta, impotente face à voracidade da moda, que se alimenta da novidade. Zizek pergunta-se: “o que é um estilo de vida cultural, senão o facto de, apesar de não acreditarmos no Pai Natal, todas as casas e todos os espaço públicos terem uma árvore de Natal no mês de Dezembro?” Este comportamento assemelha-se aos adotados por muitos interventores do jazz atual. Questionados sobre a pertinência artística das suas escolhas, alguns programadores e críticos refugiam-se na apologia da novidade, no compromisso de apresentarem projetos arrojados ou no termo vanguarda, quando é evidente que hoje a música não possui o mesmo grau de corte epistemológico, detetável na passagem dos estilos New Orleans, Swing, Be Bop e Free Jazz.

Talvez a designação «não fundamentalista cultural» qualifique quem ousa a fuga, a desobediência, a deserção, o escapismo... não só enquanto estratégia de atuação criativa, mas como processo individual de construção, na contracorrenteda previsibilidade das propostas culturais e da banalização do entretenimento das sociedades pós-modernas. Suspeitando de toda e qualquer formatação, este ser elabora uma síntese apriorística das crenças repudiadas, outrora materializadas no poderoso mito da fuga, êxodo bíblico, ou nos ideais revolucionários de liberdade e emancipação. Superando-se os incentivos do mercado, egoísmos, egocentrismos e vaidades, talvez o desejo de autonomia, assim como o gosto pela aprendizagem se reinscrevam na universalidade dos princípios, convertendo-se em valores de resistência, impessoais e dinâmicos.

A cultura não só radica competências técnicas como também incorpora consensos e autoridade. Se uma obra conserva o seu lugar na memória coletiva de um povo, é porque o ser humano possui uma congénita predisposição, entretanto treinada, para captar a íntima combinação entre música e meios técnicos. Em tempos de mudança, vetores como transmissão, redescoberta e reinterpretação foram responsáveis pela herança coletiva, fazendo do jazz uma realidade sonora com vida própria. Sujeita a uma intensa exposição mediática, a cultura projeta sinais credíveis de seriedade. Se nalguns casos impulsiona políticas de preservação das tradições e movimentos cívicos de salvaguarda do património imaterial, noutros estimula restrições de cariz economicista. Parece já não se acreditar verdadeiramente na importância dos valores culturais pois, quando rendidas ao culto da novidade, as pessoas perdem a noção de comunidade, deixando-se seduzir por individualismos utilitaristas. A ideia ingénua e otimista de que a humanidade só se propõe atingir justos desígnios e soluções providenciais para as dificuldades, não faz sentido. Se assim fosse, qualquer sistema linear de evolução, continuidade e acordo só beneficiaria as sociedades, aperfeiçoando-as. No entanto, e apesar de tantas vezes se ter anunciado um mundo mais justo e melhor, as situações de injustiça e de degradação da qualidade de vida têm vindo a aumentar, patentes em explosões de intenso mal-estar.

Em cultura não se pode falar de progresso, tal como acontece nas ciências; a existir esta evolução, o confronto entre velho e novo geraria automáticos e apurados resultados artísticos; tanto a negação da tradição, como a sua recusa ostensiva, caucionariam o trabalho do artista, conferindo-lhe uma validade insofismável, a partir da qual o sucesso seria o corolário da escolha acertada. Se a Terra, coisa definitiva e comum a toda a humanidade, obtivesse o estatuto de gigantesco objeto (ready-made), realizar-se-ia o derradeiro ato de superação estética. O planeta converter-se-ia num espaço terminal e absoluto de concetualização, pondo fim à proliferação abusiva do conceito duchampiano, explorado à exaustão na arte contemporânea; as futuras gerações de agentes e criadores deixariam de transmutar o objeto vulgar em obra de arte, pela intelectualização do utilitário. Esta declaração de princípio conteria uma ética passível de abrandar o ímpeto da criação atual que, sob uma compulsão hiperativa de “empreiteirismo” cultural, produz obras a partir do conceito (ready-made) de Duchamp, datado de 1913. Alguns artistas, não satisfeitos com o resultado obtido, acrescentam-lhe uma sobredose de gigantismo e desmesura, no intuito de surpreender pelo inesperado do tamanho, dos meios e dos recursos. Há milhares de anos, o homem arrancou do seu estado natural diversos materiais com os quais fez os primeiros utensílios. Sendo a Terra uma imensa obra de arte, transfigurada num ready-made universal, este conceito tornar-se-ia obsoleto, destituído de sentido. Desta feita, encerrar-se-ia um dos mais determinantes ciclos criativos da atividade artística do século XX e XXI, cuja reabertura só seria justificável se o homem viajasse para outros lugares do cosmos e aí encontrasse materiais desconhecidos. Contudo, a verificar-se um renascimento, este assumiria outras formas de arte.

Quem reiteradamente copia, apropria e cita, arrisca-se a criar do material original derivações que, baseadas em falsas premissas, podem provocar no observador ofuscado pela novidade, uma assimetria de tensões. O ready-made de Duchamp tem sido insistentemente recuperado, revestido por máscaras, outros rostos, sob o patrocínio de um sistema que diviniza a associação de novas combinações com coisas já conhecidas. Nestas reformulações behaviouristas, o fóssil concetual revitalizado desperta em sucessivas réplicas de si mesmo. As alterações, dão a sensação de que algo se modificou, embora perdure a ideia base original. Em nome da liberdade de expressão, as indústrias mediáticas promovem a constante renovação de um território saturado de material audiovisual, que vulgariza o campo artístico contemporâneo, desvitalizando-o. Tudo é pasmo; tudo é réplica; tudo é inércia.

              ... E OS EXTREMOS TOCAM-SE

A compreensão do jazz nas suas manifestações mais recentes requer a análise comparativa com o passado, numa listagem de questões pertinentes, cujo nível de fragmentação estética subentende um procedimento reflexivo. Apesar da tecnologia disponível, o homem continua a ser o único “lugar” da arte musical, isto é, quem a recebe, compreende e interpreta. O seguidor do fenómeno jazzístico tanto pode ser um visionário, espírito universal que se eleva perante as divisões, fronteiras, geografias, etnias, etc., como um adepto do pormenor, ansioso por escrutinar todas as variantes locais. Estas posições subscrevem respetivamente um ponto de vista universalista e uma abordagem quase localista da atividade musical. Apreender esta música exige um exercício de identificação; o reconhecimento das sobreposições e diferenciação entre estilos, isto é, os aspetos inconfundíveis, assim como os que podem ser objeto de dúvida. Pela observação retrospetiva conclui-se que parte substancial do jazz produzido depois dos anos 70 foi estruturada sob a égide de um certo espírito revivalista. Convém no entanto frisar que a exploração de ideias de músicos geniais, não retira dignidade nem seriedade ao trabalho dos contemporâneos. Mais do que nunca, hoje os extremos tocam-se. Nenhum improvisador pode ficar enclausurado música do passado, fechando-se às influências do mundo exterior. Assim, na mesma improvisação combina fraseados dos diferentes estilos com os de outros universos musicais, ou, liderando diversos projetos, concilia as várias estéticas em cada formação. Apesar de muito do que se produz se reduzir a técnicas de execução ou ao desenvolvimento de conceitos, algum jazz contemporâneo interrelaciona brilhantemente o saber, a subjetivação intelectual e o talento, numa superfície em movimento e permanente mudança. O jovem artista cresce, contactando com todo o tipo de solicitações e, embora exposto a uma torrente sonora que preenche o seu quotidiano e influencia o seu gosto, não deixa de venerar os grandes temas de outrora. Vulneráveis a esse contacto e ao peso da tradição, os músicos do final do século XX e princípio do XXI, têm utilizado a citação, a retoma, a recuperação, a apropriação e o comentário. Mesmo sem se darem conta, inspirando-se nas formas existentes, lançam outras ideias musicais que evocam recordações sem reconhecimento, sem consciência do facto de serem lembrança, isto é, reminiscências. Este aparente retorno ao passado não impediu o aparecimento de músicos talentosos, seriamente empenhados no seu ofício que, a partir da desconstrução estética, têm elaborado, na sua praxis, pertinentes reflexões críticas. A época atual convida ao diálogo entre obras-primas clássicas e contemporâneas. Recorrendo a derivas exploratórias em antigos materiais sonoros, improvisadores competentes criam interessantes e originais configurações, contribuindo para alterar os parâmetros tradicionais de apreensão.

Neste mundo globalizado, tecnológico e organizado numa rede infinita de ligações, o jazz move-se no hiperespaço das comunicações planetárias, enquanto o ruído da rua, assim como as sonoridades procedentes das mais diversas culturas invadem o domínio público, não deixando ninguém indiferente. Entretanto, os mais acérrimos defensores da tradição continuarão a insistir na taxinomia dos estilos e na intransigência da sua diferenciação, enquanto os mais radicais continuarão a apoiar a desconstrução, o experimentalismo, a improvisação em tempo real, o recurso às tecnologias digitais, o cruzamento de expressões artísticas...

Como modelo de superação na procura de sentido para a vida, o jazz encerra uma multiplicidade de soluções estilísticas que, interagindo livremente, têm impedido a sua cristalização. Há, contudo, uma espécie de tensão ética a incidir sobre o objeto jazzístico atual: se alguns artistas parecem querer manter-se fiéis aos ideais de verdade e de beleza, outros preferem enveredar por subjetivações e hermetismos insondáveis, afastando-se definitivamente do mundo. Esta duplicidade tem eximido o jazz de ser enquadrado ou submetido a um único modelo ou disciplina de compreensão. No mais profundo silêncio da sua interioridade, eivado por um certo espírito expedicionário, quem reflete sabe que não pode reduzir a inteligibilidade consciente dos diferentes estilos a meia dúzia de denominações ou catalogações simplificadoras. Por isso mesmo, a prática jazzística não deve resumir-se a um mero exercício ilustrativo, de carácter descritivo e compilatório, em que tudo é artisticamente admissível. Pelo cruzamento da sensibilidade (perceção subjetiva) com a experiência vivida (perceção corpórea), resistindo às tentações do conformismo, da inércia, do comodismo, do emparedamento provocado pela petrificação dos factos históricos, ao culto da novidade a qualquer preço e às posturas radicais de afrontamento, se confirma a tese de que a obra musical surge como “forma” de pensar. Entender o jazz mais recente obriga a aprofundar as suas contradições, a ambiguidade dos seus estilos, a hibridez das improvisações, de modo a desenhar-se um mapa cognitivo, embora sumário e provisório, aceitável e orientador, que não só estabeleça fronteiras, mas também o seu alcance. Uma postura crítica requer rigor ético, por respeito à verdade e à beleza. O questionamento analítico, perspicaz e pragmático é essencial ao entendimento inclusivo da dimensão intercultural do jazz, na sua atual complexidade e amplitude. Note-se que o conflito entre o seu conceito genérico e as convenções culturais, das quais vive a formação de conceitos, é inevitável. Ao observador desatento, escapam a influência das interpretações regionais e o contágio sofrido pelo contacto com outras culturas. A história do jazz é também a dos meios/suportes através dos quais este se fez e faz, a das técnicas que garantiram o seu registo, e ainda a das ações simbólicas que, na aceção medial coletiva, se chamam apreensões. Sendo património universal, aberto a múltiplas leituras, não há atalhos para a sua inteligibilidade. Da mesma maneira, a descrição completa de cada uma das suas características, é uma utopia. Por ventura o distanciamento e a elevação serão a melhor forma de o observar, por analogia ao homem moderno, quando pela primeira vez andou de avião - tendo atingido grandes alturas, tomou consciência de que havia outras maneiras de olhar o mesmo local onde sempre vivera. Passada a fase de maravilhamento causado pelo inusitado da experiência, vislumbrou novos horizontes que despertaram a sua curiosidade.

Tal como aconteceu aos equipamentos técnicos precedentes, os meios digitais continuarão a interferir na perceção musical, contudo, por mais que se complexifique, esta continuará ligada ao corpo pela reminiscência, associação e mediação dos sons.