AUTOR: IVO MARTINS 
EDIÇÃO: (Catálogo) Centro Cultural Vila Flor     DATA: Outubro de 2014 





As fotografias de André Cepeda apresentam-se como um exercício literário, espécie de narrativa em linguagem
imagética, cujo campo semântico, sem orientação nem estilo, evita cair numa mera descrição da realidade.

Do impulso do fotógrafo que fixa um determinado instante, nada parece ter permanecido senão um vestígio
residual, inscrito em material fotossensível. Do mesmo modo, não é possível extrair-se das suas fotografias um
motivo, finalidade ou razão que justifiquem as escolhas inerentes ao seu enquadramento. Face à realidade
captada, as sensações experimentadas pelo artista são ilegíveis.

Diariamente, através dos diversos meios de comunicação, são descritos e confirmados diferentes acontecimentos,
assistindo-se à sobrevalorização da imagem, cujo excesso de informação acentua a discrepância entre o
testemunho escrito e o visual. O velho compromisso entre estes dois modelos de comunicação, já não existe
devido aos avanços tecnológicos.

A imagem possui uma autonomia centrada na força do facto registado, enquanto o texto goza de uma liberdade
materializada na palavra do narrador, sempre contingente e imprecisa. Persiste contudo, a intenção de se
estabelecer um entendimento capaz de conjugar palavra e imagem, porque a primeira tanto pode ser parte
intrínseca da segunda, como o seu contrário - funções estas que interagem de forma espontânea.

Presenciar e transmitir in loco, manuseando um dispositivo de captação digital, apresenta vantagens na
facilidade, na rapidez de acesso à informação, assim como na irrefutabilidade dos acontecimentos. O
mediatismo da comunicação em direto banalizou o poder da representação imagética, graças à disponibilidade
de meios e de recursos que produzem em série uma amálgama de factos.

Os processos tradicionais, mais lentos na narração descritiva e transmissão, tendem a ser menosprezados. É neste
contexto que o método de trabalho de André Cepeda adquire um simbolismo dissidente.






























A sua obra decorre de uma observação demorada e reflexiva, que recusa a abstração estetizante, despojada de
narrativa; os conteúdos são comunicados em silêncio, sem a pressão da retórica comunicacional; são enunciadas
referências sociopolíticas sem imposição de compromissos com qualquer programa de intervenção ideológica; a
verdade ocultada revela-se sem intenção persuasiva, na subtração do gesto ostensivo, nos efeitos positivos da
rejeição do artifício discursivo, tantas vezes inoperante.

As fotografias libertam discrepâncias, divisões, ruturas, fissuras e descontinuidades na consciência do
observador. A imagem patente em cada trabalho sofre um elaborado processo de amplificação cognitiva,
oferecendo uma visão crítica sobre o mundo, através de uma afirmação pública de verdade. A nudez e a
crueldade latente em muitos pormenores registados tornam-se mais percetíveis e intensas a cada olhar, propondo
a interiorização do sofrimento, da dor, da solidão, da decadência, do abandono, da segregação, como motor de
busca de uma nova realidade não corrompida, nem injusta.

Numa sociedade negligente que cria espaços de reclusão e degradação, ninguém é inocente, pois nada acontece
por acaso. A obra apresentada contraria a isenção que amacia as referências do política e socialmente
inexplicável, assim como apazigua sentimentos de culpa; rejeita o conhecimento e a visão de uma realidade
atroz, disfarçada pelo imediatismo e utilitarismo das sociedades contemporâneas; condensa, numa construção
simples, o exercício interior de imaginar autênticas preocupações de justiça, expondo o lado absurdo e irrazoável
da indiferença. Da mensagem contida nos interstícios das imagens, irradia um sentimento libertário de protesto
e de indignação, sem vínculo a uma forma rígida de afrontamento. 

O preto e branco das fotografias devolve à imagem a sua essência primordial. A acumulação seletiva exercida
pela atenção do sujeito, pelo seu olhar, transforma cada fotografia num exemplar único e insubstituível, que
permite compreender a diferença entre realidade e encenação do real. Entre o facto captadoe o observador, a
visão de André Cepeda imprime uma eminente dimensão sociopolítica, materializada num sincero e introspetivo
ato de contestação.

Esta exposição resume a argumentação valorativa de um ideal de verdade, na medida em que cada imagem se
ordena na seguinte, resultando num trabalho de sobreposição de experiências, desacordos e recusas, cuja crítica
política e social implícita se manifesta através do talento do artista.O conjunto exposto exibe um corpo, uma
identidade coerente, como fórmula de imunidade a um exterior hostil e desumano, que transcende a intervenção
d ofotógrafo - este, sob pena de o deformar, abdica de qualquer tipo de manipulação.

Dos sentimentos experimentados perduram sínteses visuais, cujos valores imanentes condicionam e provocam
sensibilidades. O que é apresentado contrasta com a neutralidade da sala de exposições, provocando um
desfasamento cognitivo, do qual se vislumbra um todo poroso de situações extremas de reclusão, fechamento,
marginalidade, abjeção, isolamento, solidão, claustrofobia. O real eternizado nas fotografias induz uma
disciplina interpretativa, estimulando novas leituras e, no aparente caos dos múltiplos significados, o olhar
crítico é convidado a atualizar um mundo ignóbil que se revela de forma subtil, em aveludados processos de
humilhação. Só a integridade e a dignidade, construções exteriores à realidade invocada pelo artista, permitem
compreender a força dos momentos retratados, como espaços desumanamente preenchidos.

A apresentação deste trabalho fotográfico de André Cepeda pretende incentivar uma reflexão crítica, partindo da
consciência de alguém que, assumindo o papel de narrador, quer partilhar a rara experiência de se saber mortal
num lugar enigmaticamente transitório e brutal.







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