AUTOR: IVO MARTINS 
EDIÇÃO: (Catálogo) Centro Cultural Vila Flor     DATA: Abril de 2014 





A composição de John Cage «4’33’’», datada de 1952 e erradamente descrita como "quatro minutos e meio de
silêncio", inaugurou um novo conceito estratégico de intervenção musical, abrindo outros horizontes à criação.
Embora na sua primeira apresentação pública tenha sido executada ao piano, esta peça composta para qualquer
instrumento ou conjunto de instrumentos, é paradoxalmente estruturada em três movimentos. A partitura, sem
notação clássica, como elemento de referência, à imagem de um manual de instruções, indica o procedimento a
cumprir pelos executantes, que deviam manter-se imóveis, sem tocar qualquer nota. Se bem que o silêncio faça
parte integrante da música nunca, até então, havia sido explorado, na sua dimensão absoluta. Na altura, «4’33’’»
causou grande impacto no meio cultural, tendo a sua hipotética mensagem originado inúmeras explicações e
comentários. Havia quem defendesse que a intenção era poder ouvir-se o silêncio da sala, sem interferência ou
sobreposição do som dos instrumentos e quem apontasse o intuito de se provocar um choque violento pela
ausência de som; contudo, ambas admitiam o facto de a peça subverter a maneira tradicional de fazer música. A
estranheza da obra consistia na perturbação causada pela ausência de música num concerto, estratégia
antecipada por John Cage, no seu enunciado sobre a progressiva utilização do ruído “até atingirmos uma música
produzida por instrumentos eletrónicos que disponibilizarão para efeitos musicais todos ou quaisquer sons que
sejam audíveis”. Esta visão preparava o caminho à arte contemporânea e fornecia indicações sobre o pensamento
artístico futuro.

A abordagem do instrumento segundo técnicas de execução anticonvencionais, despojando-o da sua sonoridade
original, abre novos espaços de construção sonora e visual, pelo aparecimento de um campo de expressão
artística inesperado. Do mesmo modo, deslocando-se símbolos ou signos da escrita musical clássica cria-se um
domínio metalinguístico exterior à notação tradicional. A nova codificação, - notação gráfica - críptica e de uso
indefinido, liberta-se do conhecimento prático e das normas estipuladas, dando lugar a uma nova semiótica
sonora, expressa na força das imagens de gráficos, diagramas, esquemas, desenhos, esboços, complexas
construções geométricas, … Também as sonoridades se desenvolvem desinseridas da escrita tradicional, expondo
atributos imagéticos/sonoros diferentes. Sem estas novas soluções externas às convenções da música clássica
dominante, ter-se-ia mantido o som natural dos instrumentos e não teria havido originalidade. O mesmo se
aplica à notação musical que continuaria a possuir a mesma imagem legível e reconhecível. Numa cultura
invadida pela tecnologia, a criação de espaços relacionais entre som e a imagem viria a repercutir-se no
desenvolvimento, na otimização e na invenção de diversos mecanismos eletroacústicos de difusão. Passou-se do
sistema mecânico de propagação sonora a um campo mais instável e irregular da eletrificação do som. Mais
tarde, com a descoberta de dispositivos eletrónicos surgiram equipamentos sofisticados, sem as características
padrão dos instrumentos acústicos. A era digital alargou infinitamente o campo de intervenção, desenvolvendo
espectros complexos, justapostos, interativos e multifacetados de sonoridades infinitas, na sua combinação.
Emancipadas do modelo acústico primitivo, surgem novas configurações sonorizadas, concebidas na
matematização (uso do algoritmo) e no esboço sonoro, que passa a ser trabalhado como matéria-prima na
construção de um todo audível. A adoção de estruturas cibernéticas e de interfaces de processamento tornou
possível a criação de espaços sonoplásticos multidiferenciais, relevando a atividade do artista no “desenho” do
som.























Na libertação material do som e no desenvolvimento do vocabulário musical viu Pedro Tudela a possibilidade de
construir um trabalho fascinante, que incorpora objetos selecionados a partir da sua vivência. Concebe um
mundo sonoro feito de tonalidades suaves, simplificadas e despojadas, criando atmosferas ora violentas ora
harmoniosas, produzidas através de objetos vulgares que emitem som. Estas peças aproximam-se do conceito
biológico de corpo enquanto portador de voz específica. Numa obsessão quase clínica de aperfeiçoamento do
som ou do ruído, usa elementos em diferentes materiais, combinando-os de forma artesanal que, pela sua
disposição, configuração e limpeza, parecem levar ao limite a exploração das leis da acústica. A organização das
suas peças manifesta um sentido ritualista, evocando um labirinto sonoro unificador, compreensível através do
fenómeno psicoacústico da audição. Tornada espaço/habitáculo, a instalação aparece como esfera que engloba o
silêncio, a música/ruído e a simbologia das imagens. Emitindo ou sussurrando um som, o objeto ganha voz e
irradia tensão, refletida na sua dimensão corpórea. Numa era digital fragmentada, onde fabricar som diverge do
momento da sua execução, a desordem criada por este distanciamento remete para a utopia do retorno ao
primitivismo da natureza, como reminiscência longínqua e sensorial do ato de escutar.

Da obra de Pedro Tudela sobressaem pormenores enunciados nos seguintes tópicos:

- O cuidado em explorar os aspetos psicofisiológicos da audição, tratando o corpo humano como unidade
interativa entre razão e emoção;
- A compreensão do ato de escutar, associado à visão e ao tato, enquanto síntese cognitiva de fatores sensoriais e
extrassensoriais, cuja fusão inesperada sarcástica e fantasmática, torna o trabalho sonoplástico;
- A exploração do “ruído musical” ligado a práticas artísticas contemporâneas;
- A construção de sonoridades, baseada em processos musicais de conceção oficinal, sobre objetos e imagens que
se infiltram, disseminam e contaminam mutuamente;
- A criação de um universo sonoro original que confere às instalações uma atmosfera porosa e inclusiva em vez de
opaca e excludente;
- A presença, ainda que inaudível do som que se propaga por ondas sucessivas de contacto com corpos e objetos
(a sua “natureza” física), irradiando novas vibrações;
- O tipo de decisões inscritas em cada peça, de carácter musical umas, outras apenas do domínio simbólico das
imagens;
- O compromisso com as múltiplas vivências experienciadas, através do controlo das características do fenómeno
sonoro: a altura, (número de vibrações por unidade de tempo) duração, intensidade, timbre e espaço;
- O espírito confeção oficinal sublimado nas instalações, construções escultóricas sonorizadas por dispositivos
eletroacústicos de conceção artesanal;
- A originalidade do som debitado e a forma dos equipamentos e acessórios de difusão sonora que esbatem a
fronteira entre o artístico, o design, o decorativo e o objecto industrial;

Em demanda programática de carácter pessoal, Pedro Tudela executa um trabalho por etapas e sedimentações
sobre uma eternidade sonora em transformação, acentuando a relatividade das catalogações, a implosão das
classificações e o desaparecimento de pontos de referência estáveis entre música, ruído e objeto sonoro. Na sua
relação com a palavra, a imagem e o símbolo, o som participa numa arquitetura de “espacialização”, definindo
um campo sensível de exploração por dentro e por fora da linguagem, o que permite ao artista denunciar a
arbitrariedade da diferenciação entre musical e não musical, entre som e ruído. Intervindo de modo disruptivo e
não relacional sobre esta mistificação conceptual, Pedro Tudela liberta o mundo sonoro de um alfabeto
limitador, pois ao pôr em causa a continuidade do discurso e a linearidade dos campos sonoros de intervenção,
defende a diversidade dos tratamentos e das combinações do som, suscitando um aprofundamento das suas
micro estruturas. A montagem e a mistura que explora redefinem a função da voz como objeto sonoro, entre o
grito, a fala e o canto.

Sonoro é o que eu capto; musical é já um juízo de valor. O objeto é sonoro antes de ser musical; representa um
fragmento de perceção, mas se eu fizer uma escolha dos objetos, se isolar alguns, talvez possa aceder ao musical.
O objecto musical será o musical recuperado na sua fonte, na função dos objectos que merecem essa
qualificação, isto é em grau quase nulo de musicalidade” (1). A constituição de catálogos de ruídos, de objectos
musicais, não constitui portanto simplesmente um trabalho preliminar, mas pode ser considerado, à partida,
como o estabelecimento de um solfejo, um acto de composição, mesmo que não esteja necessariamente ligado a
um objectivo de integração numa estrutura musical”.

Dominique Bosseur, Jean-Yves Bosseur, Revoluções Musicais, Música Contemporânea depois de 1945, Editorial
Caminho, Lisboa, Agosto de 1990, p. 35

A obra de Pedro Tudela busca a reação do observador quando em contacto direto com o som e a imagem,
sugerindo uma estratégia de criação organizada em regime aberto ao questionamento crítico. O seu método
aleatório de construção é ditado pela tentativa, erro e desvio. Os seus trabalhos contêm algumas linhas de
orientação recorrentes, a saber: o questionamento da edificação de barreiras separadoras entre as múltiplas
linguagens sonoras ou musicais; a conjugação de campos sonoros recentes com a herança musical antiga,
convidando a experimentar domínios de intervenção irreconhecíveis e anticonvencionais; o desejo de alcançar
um limite equacionável para a noção de silêncio, enquanto amálgama definitiva de todos os sons ou ruídos; a
proposta de “som” como elemento abstrato e fundamental à volta do qual convergem os olhares e as apreensões;
a confeção de objetos sonorizados que surgem de modo evidente, óbvio e inescapável, sugerindo um organismo
sonoro identificável; a apresentação de uma poética visual e sonora que dissemina simbologias e significados,
contaminando o espaço e os objetos nele contido; a exploração de diferentes graus de comunicação entre as
camadas do material sonoro e imagético; a produção de dispositivos de propagação que tanto podem irradiar
simples efeitos performativos, como reafirmar a recusa a um só método de construção; o registo de uma reflexão
ou recensão crítica alargada sobre o “som”, percecionado como matéria porosa, fecunda de sentidos; a denúncia
do carácter excedentário, uniforme e saturado das mensagens e da comunicação que tende a insonorizar as
verbalizações desinseridas da retórica do poder que domina uma sociedade deformada e submetida ao
audiovisual; a eleição do experimentalismo como meio essencial à liberdade de expressão, único pressuposto de
eficácia para se efetivar a verdadeira valorização do ato criativo; a subversão do circuito de processamento de
envio e receção de mensagens, rompendo significados e intervindo através de uma desconstrução sonora
materializada na forma dos objetos; a alteração de parâmetros de propagação do som usados como médium de
representação e abstração; a reposição da imagem no espaço indeterminado do “som”, na tentativa de encontrar
uma ligação entre a audição e a visão; a exploração do impacto dos ruídos/musicais em contacto com outros
materiais de expressão artística, procurando novos tópicos de problematização sobre a abertura e a
democratização do trabalho da composição musical.

Operando num espaço multifacetado, no qual tudo é reversível, pois cada ponto de partida pode ser o de
chegada, Pedro Tudela aborda o som como matéria plástica, como médium de expressão. Expondo os objetos a
múltiplas ambiências sonoro-musicais que penetram e alteram a sua apreensão, incentiva deslocações do centro
de gravidade visual para zonas mais abstratas e variáveis de compreensão. Realça a rutura, o corte
epistemológico, provocado pelo contacto do elemento sonoro com a morfologia do objeto, evitando estereótipos,
fixação de uma obra numa forma absoluta e definitiva. Usa estratégias de desestruturação sobre a linearidade e a
continuidade da relação entre a imagem e a palavra, inserindo no espaço visual um novo código de leitura.
Organiza formas sonoras e visuais coexistentes, conteúdos ou elementos funcionais inacessíveis à razão, cuja
verdade e necessidade de ordenação podem ter uma origem racional. Explora a disjunção como tática de
inversão das lógicas de compreensão, enfatizando a visibilidade e significação do todo interativo
som/imagem/palavra. Justapondo linguagens liberta sensações aleatórias e perceções intuitivas que contrariam
a vinculação do objeto à sua forma ou à função determinada pelo valor da sua utilização. Agindo dialeticamente
sobre a ligação entre forma e conteúdo, incentiva novas recriações a partir das reminiscências dos materiais
trabalhados, o que confere autenticidade à obra, pois desincorpora-a dos valores de uso tradicionalmente
incensados por um sistema de arte gerida pela mesma lógica das forças de mercado.

Esta exposição não pretende realizar uma leitura histórica nem fazer um cronograma abreviado de um longo
percurso de exploração sobre as múltiplas conexões entre o campo sonoro, o visual e a palavra, tópicos
trabalhados pela artista. Não deseja sequer apresentar uma seleção exemplificativa do que foram ou são as
abordagens do seu ofício multidisciplinar. Apenas procura, numa realidade alheada, saturada, fugidia e
movediça, quase insonorizada pelo excesso de discursos, de imagens e sons, abrir pequenos hiatos de
inteligibilidade de uma produção artística vasta e singular, centrada no significado da audição. Tem ainda como
objetivo efetuar um amplo processo de atuação crítica, provocando reações e dissensões sobre uma realidade que
produz demasiados objetos de consumo com a promessa de proporcionar prazer e satisfação, quando na
verdade, reproduz a sua falta.


(1) Pierre Schaeffer, «La sévère mission de la musique», Revue d’esthétique, Musiques nouvelles, Ed. Klincksieck, Paris,1968, p.
282;






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