AUTOR: IVO MARTINS
EDIÇÃO: (Catálogo) Centro Cultural Vila Flor DATA: Janeiro de 2014
O acto de pintar simboliza também um gesto de coragem e de humildade. Ao longo de um século marcado por
duas guerras mundiais, do qual emergiram manifestações artísticas fulgurantes, avanços tecnológicos,
revoluções e mudanças políticas, sociais e de costumes, nós assistimos à imposição de uma lógica demolidora das
ideias vanguardistas que veio proclamar o culto da novidade a qualquer preço.
A pintura figurativa tem atravessado um período difícil de relativo apagamento e subvalorização, sendo por vezes
olhada como património quase arqueológico, proveniente de uma época remota e grandiosa que não voltará a
repetir-se. Hoje, prevalece a obrigatoriedade de inovar e o impulso de conceptualizar e intelectualizar a
novidade. Esta situação tem o efeito de remeter, com honrosas excepções, o artista figurativo que não deseje
comprometer-se com a tirania mediática da imagética contemporânea a uma condição de obscuridade. As
práticas artísticas mais antigas e com mais história são relativizadas em proveito de abordagens estéticas
multidisciplinares e tecnológicas, onde o presente só parece poder afirmar-se em conflito com o passado.
Numa realidade artística exposta ao niilismo de uma sociedade mediatizada, não podemos evitar constatar a
vigência de uma lógica de mercado concorrencial que diviniza o artista/estrela, um contexto hostil à
sobrevivência de práticas como a pintura.
A pintura necessita de um tempo de produção mais lento, um intervalo adequado entre princípio e conclusão.
Quem quiser aventurar-se neste terreno movediço e fugaz da mediocracia, caracterizada pela mercantilização
intensiva dos espaços de actuação artística, procurando explorar momentos sublimes de celebração da vida,
dificilmente conseguirá resistir à estranha sensação de dejà vu que uniformiza tudo aquilo que se produz.
Trabalhar a solidão ou a dor, a energia do pensamento ou a liberdade, a desilusão ou o desespero, o amor ou o
desapontamento, a força cruel da natureza ou a sua exaltação, o tédio ou a revolta, requer uma predisposição
particular para aceitar as dificuldades de codificar tais temáticas na linguagem específica da arte.
O presente de qualquer obra possui simultaneamente dois espaços temporais - o passado e o futuro - pelo que a
sua superfície de identidade só é plenamente alcançada quando atravessa estes dois espaços, sendo capaz de se
situar perante o primeiro, e de estabelecer um ponto de ligação com o segundo.
Para o pintor, as probabilidades de fracassar na “teimosia de reinventar um ofício dado como perdido”, como
constata Lévi Strauss, são numerosas. O artista que escolha a pintura merece ser aclamado porque aceita os
riscos e as dificuldades inerentes a essa prática.
O trabalho do Arlindo Silva dá continuidade a uma prática artística intemporal. Sobre uma superfície plana - a
tela - o pintor combina uma matéria concreta - as tintas, e assim regista factos de seu universo pessoal,
reiniciando uma nova proposta de inteligibilidade no campo sensível da materialidade do quadro.
Porque a sua obra ainda não obteve a atenção pública que merece, esta exposição vem colmatar uma evidente
lacuna no panorama das artes em Portugal, reunindo sem uma orientação retrospectiva um número expressivo
de trabalhos.
As pinturas do Arlindo Silva: pessoas do seu círculo de relações captadas em instantâneos algo inesperados, anti-
retratos que negam o formalismo da “pose” que está presente nas formas mais clássicas de pintura de retratos, e
nos quais perpassa uma atitude desafectada e discreta, que é também transversal ao seu percurso artístico e
humano.
A sua obra é honesta; nela ressalta a veracidade das disposições e movimentos dos corpos, que revelam
timidamente estados de espírito - olhares, esgares, sorrisos, tensões; estados de êxtases ou de exaltação,
sugerindo que chegamos ao interior do decorrer de uma história.
Pela ausência de formalismo, a força de cada trabalho assenta na quebra das rotinas, no plano inesperado de
cada momento, incorporando dessa forma a desconstrução de uma prática figurativa, que disseca o quotidiano e
da qual sobressai uma plenitude quase cinética entre formas visíveis e palavras que imaginamos serem ditas.
A tensão ou distensão inscritas nos semblantes e na disposição dos corpos, em fundo geralmente neutro e de
localização indefinida, fundem-se em referências de um real descrito por imagens, transmitindo contenção e
despojamento. Apesar de a sua exposição ser quase sempre excessiva, os momentos de sociabilidades expostos
acabam por nos revelar o seu reverso: uma inevitável sensação de abandono e solidão.
O maior atributo a conceder à pintura do Arlindo Silva é afirmar que se trata de um trabalho que apela à pureza
da representação pictórica, sem artifícios nem disfarces, alargando o campo de actuação artística significante,
construída sobre as ligações primordiais que se estabelecem entre a beleza do que se vê, do que se faz e do que se
diz.