AUTOR: IVO MARTINS 
EDIÇÃO: (Catálogo) Centro Cultural Vila Flor     DATA: Setembro de 2013 





As fotografias do António Júlio Duarte não precisam de ser comentadas. Não seguem uma metodologia definida
de trabalho, nem fazem parte de um processo apurado de construção racionalmente calculado. São, antes, o
resultado de uma busca, uma procura motivada por um certo espírito de nomadismo, realizado a partir de
deambulações diárias pelos espaços urbanos do nosso quotidiano. Esta movimentação predispõe o autor a fixar
acontecimentos, situações e momentos seguindo um estado sensível de observação ao qual se deixa submeter.
Quando, no decorrer desses itinerários, lhe surge algo significativamente forte ou suficientemente atrativo
acontece uma espécie de corte, de rutura, de interrupção na corrente de envolvimento subjetivo a que o artista se
encontra sujeito, estabelecendo um compromisso com o real. O compromisso alcançado com esta realidade,
interferindo de maneira incisiva com a sua atenção, leva-o a proceder à sua captação.

Cada percurso construído no dia-a-dia é uma estratégia de exploração e, ao mesmo tempo, uma maneira do
artista se relacionar com o real sem direção definida, através da criação de relações, correspondências, oposições,
semelhanças, contradições. Um acontecimento vulgar, aparentemente irrelevante ou sem interesse artístico, pode
revelar-se motivo suficiente e estimulante, pois terá sido a partir dele que uma longa série de fotografias se
concretiza. Não havendo, nas diversas temáticas abordadas, nada de pré-estabelecido, cada imagem representa a
aceitação de tudo o que se oferece ao autor como consequência natural de um estado de espírito visualmente
sensível, recetivo ao meio envolvente, pronto a fazer de cada momento encontrado, a antecipação mental da sua
reconstrução em fotografia.


























Segundo Regis Debray, o homem “é o único animal que não se sujeita à sua vida física, pois ordena
comportamentos em função das suas convicções ou a sua actualidade em função do não actual - visões, lendas,
coisas desaparecidas ou esperadas (…) o sistema nervoso humano acrescenta ao mundo percepcionado um
mundo representado, ao meio exterior, um surreal interior”. Da arte é, assim, possível extrair-se uma espécie de
subtexto, um excedente indizível, resistente a qualquer tentativa de objetivação. As fotografias do António Júlio
Duarte tanto podem fornecer informações sobre os diversos assuntos ou temáticas captadas como dar a conhecer
os diversos tipos de motivação que o influenciam. No entanto, o que sobra deste processo de comunicação são
simples imagens residuais, extraídas de acontecimentos verdadeiros, processados interiormente. Todas as
imagens são ambivalentes e sustentam-se numa fugidia dualidade (interior/exterior, subjetivo/objetivo,
razão/emoção) aplicável na sua interpretação, expressando défices insanáveis de comunicação. Talvez seja essa
impossibilidade de desvendar a verdade face à realidade do instante fixado, que vai permitir ao artista superar o
sentimento de incomunicabilidade e distanciamento.

O conjunto das imagens expostas sugere uma narrativa de exploração pessoal, manifestada numa sequência de
campos de observação, percecionados como registos de um diário secreto. Esta ideia de ordenação diarística, sem
um carácter declaradamente autobiográfico, transforma-se numa sensação de princípio/começo ou de fim/final
inscrita numa viagem pessoal, sempre incompleta e inconclusiva, sempre obscura e estranha, pelos espaços
banalizados, exaustos da proliferação de imagens quotidianas. Através de cada registo imagético, manifesta-se o
instante captado, sem a preocupação de se criar um conteúdo fotográfico intencionalmente ligado ao real. As
fotografias surgem como cortes, interrupções e ruturas de continuidade, várias incidências captadas de um
acontecimento que, sendo passado, ficará para sempre incompleto, truncado, disperso e incompreensível.
Compreender a falta de dados informativos sobre o que deixou de ser presente requer um complexo exercício de
abstração. Só abdicando do conhecimento das verdadeiras correlações espaço temporais dos lugares
fotografados nos situamos em cada uma das imagens presentes e, a partir do vazio causado pela escassez de
referências fazemos uma construção imaginosa, assente num estranho sentimento de impotência, provocado pelo
confronto entre a imagem observada e a verdade inacessível. As fotografias de António Júlio Duarte não nos
impõem um único regime de observação, nem um só método de interpretação; são vestígios de uma
reestruturação individual, ao serviço do imaginário de cada observador. Os conflitos, manifestos na
incompatibilidade entre a natureza das palavras e a força simbólica das imagens como forma eficaz de
expressão, ficam temporariamente suspensos pelo olhar obliterado, neutro e intangível que cada fotografia
denuncia. O que se pode ver não depende das contingências, nem do fator aleatório de um discurso, sempre
deformador e ilusório. As imagens são transfigurações devoradas pelo seu próprio sentido, uma construção
frágil, íntima e misteriosa, como se, por cima de cada uma, pairasse um corpo estranho e fantasmático que a
envolve e a redefine.

Este trabalho de António Júlio Duarte está parcialmente documentado no livro “Deviation of the Sun” que, sendo
um objeto autónomo e assumindo um enquadramento distanciado deste projeto expositivo, é, no entanto,
também ele parte de um alargado processo de reordenamento e de seleção de imagens, e foi a partir dele que se
estruturou a exposição. Neste sentido, somos levados a concluir que não é possível encerrar definitivamente as
inúmeras combinações e possibilidades narrativas que o conjunto de imagens efetuadas permite explorar.

A exposição de António Júlio Duarte é composta por uma série de impressões fotográficas selecionadas a partir
de um vasto corpo de trabalho fotográfico, que data de 1997 e que nos é também apresentado sob a forma de
provas de contacto. Ao incluir estas últimas no contexto expositivo o artista faz, pela primeira vez, um
tratamento pormenorizado e abrangente de uma parte essencial da sua obra, estruturando o seu visionamento e
avaliação a partir não apenas dos seus resultados finais (as fotografias que o artista decide expor e ordenar sob
uma prisma de uma qualquer narrativa ou discurso) mas também do seu trabalho preparatório de pesquisa,
montagem e decisão com intencionalidade artística, elementos cartográficos de compreensão da obra que aqui se
assumem explicitamente sob a forma de provas de contacto.






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