AUTOR: IVO MARTINS
EDIÇÃO: (Catálogo) Centro Cultural Vila Flor     DATA: Dezembro de 2011 





A capacidade de conceptualizar o mundo e o poder de construção que essa competência nos proporciona
constituem momentos decisivos de sobrevivência da arte face às inúmeras imposições biológicas inelutáveis a que
sempre estivemos no passado, e continuamos no presente, a estar sujeitos e das quais não podemos escapar - isto
é, frente ao esquecimento imediato daquilo que fazemos e frente à morte que se aproxima rapidamente de cada
um de nós. Foi graças a esta potencialidade de criação, assente numa sensibilidade anti-verbal (na medida em
que não depende directamente da linguagem), que pudemos ser capazes de imaginar proposições contrafactuais
que ampliaram a nossa mente, dotando-nos de meios capazes de resolver os problemas da existência,
fornecendo-nos armas que nos permitiram lutar eficazmente contra a extinção da espécie.

Desta experiência primordial do homem perante uma natureza hostil e implacável, assumindo este confronto um
impressionante grau de violência, passamos para um momento que nos fez acreditar que iríamos viver um outro
tempo, assinalado por muitos como mais humano e civilizado, Descobrimos, através da ciência e da tecnologia,
outros meios de sobrevivência e encontrámos novos processos de prolongar no tempo a vida de cada pessoa,
pressupondo esta passagem a elaboração de uma ideia de futuro, enraizada no homem como uma forma de
construção cultural, como o momento a partir do qual começamos a pensar que utilizando a razão seremos
capazes de controlar a alteridade do meio natural e fazendo surgir em nós uma estranha aspiração de domínio
sobre toda a natureza, agora reconvertida numa entidade sujeita e submetida às capacidades e conhecimentos
humanos entretanto adquiridos. O individuo que se formou a partir desta mudança teria tudo para ser um
criador de suposições e um experimentador de pensamentos, dotado de uma imaginação que iria aperfeiçoar as
suas ferramentas cognitivas especializadas, permitindo que ele fosse capaz de separar o mundo real do mundo do
faz-de-conta. Infelizmente esse homem convenceu-se de que seria capaz de atingir uma elevada sofisticação de
mecanismos de separação racional que isola os mundos reais dos mundos falsos e, neste sentido, que seria
possível construir uma sociedade/lugar perfeita onde ele nunca teria ido sem ter passado por uma espécie de
sedução da consciência, um fenómeno que se verifica quando nos enfrentamos com uma obra de arte. Desta
forma, a incapacidade de conhecer as dimensões do real e do irreal vão sucessivamente agudizar-se à medida que
o domínio sobre a natureza se vai acentuando. O grande problema da arte é, actualmente, um reflexo deste
estado de coisas: o facto de estar inserido num sistema que necessita de se alimentar a si próprio
permanentemente de forma a sobreviver e que cria neste processo simulacros e realidades falsas e ficcionadas (da
ordem do económico e do financeiro) que desvirtuam a sua essência. Assim sendo, e afastada a possibilidade de
estabelecermos uma fronteira entre realidades, vivemos a partir desse momento uma ficção alargada sobre a vida
humana na qual a descoberta de uma verdade universalmente desejada terá necessariamente de passar  pela
detecção de erros não intencionais ou então pela propagação insidiosa de mentiras programadas. A arte
sobrevive neste mundo, onde se gastam enormes quantidades de tempo e de recursos na criação e
experimentação de fantasias e ficções, pela mera exploração do fascínio natural do homem por estas duas
dimensões, tornando esta propensão num vício virtual. Para conseguir fazer durar este estado de empolgamento
alienante somos diariamente bombardeados por todos o tipo de produtos pré-formatados e de performances
dramáticas ficcionais.
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A obra de Pedro Sousa Vieira surge numa espécie de contra-ciclo em relação a este vertiginoso fluxo de
informação e de mercadorias em que se transformou o sistema altamente mediatizado e espectacularizado da
arte. Não sabemos se ainda haverá por muito mais tempo e espaço para se realizarem observações das imagens
plásticas reflectidas nos trabalhos de pintura ou desenhos sobre papel, estados primordiais de observação e de
paixão pela arte através dos quais apreciamos o belo e desta forma respondemos àquilo que Kant chama
apresentação do objecto - como o vemos ou ouvimos no nossa imaginação, como este chega até nós no teatro da
mente. Este processo de apreensão da experiência artística supõe um outro regime de tempo e uma outra
respiração da obra que não são compatíveis com a multidimensionalidade da era do virtual e da simulação.

O mundo está cheio de simplificações utilitárias, inúteis e, nalguns casos, excessivamente mercantilistas que
determinam o ressurgimento constante de muitas formas de actuação populista de aquisição de produtos
culturais e que têm vindo a ser utilizadas nas várias doutrinas/expedientes de salvação adoptadas pelas pessoas
que actuam no meio artístico. As retóricas correntes visam apenas justificar o mercado como um momento
injustificável de um sistema que insiste perpetuar-se através da compra e venda de objectos, acompanhando a
decadência e o declínio das sociedades contemporâneas. Se adoptássemos uma tese de pendor “darwinista” e
tentássemos explicar a falta de convivência e o isolamento individualista como se pela obrigação de vivermos um
mundo separado por barreiras alfandegarias do saber estético, estaríamos num estado inumano de uma aparente
inevitabilidade justificadora que racionalmente nos impediria de imaginar todo o tipo de cenários/mudanças e
de situações/alterações situadas além da consciência directa das coisas. Neste sentido a arte tem assumido, no
presente, um papel transformador não radical. Actua sobre um campo imenso de material sociológico, está
sempre pronta a ocupar o espaço disponível de acumulação, transformando as imagens em mais “olhares”. Cada
obra transmite-nos um “olhar” e quando esse olhar já advém de um outro olhar, como acontece quando
observamos imagens produzidas pelas múltiplas técnicas avançadas de reprodução e de comunicação, o seu
conteúdo passa a ser assunto/noticia, um acto que divulga e propaga o vazio do tempo despendido nessas
operações de transmissão. E o que encontramos disseminadas por toda a parte são meras fantasmagorias, actos
alegóricos, obras de arte desvitalizadas, produtos/lixo expostos em cuidadas organizações de material produzido
para o olhar mais banal. Estes produtos já não ambicionam estabelecer qualquer tipo de ordem ou de ligações
sobre um contexto que antigamente era olhado como caos à espera de ser organizado. Tudo se perde num novelo
imenso de relações apressadas e na urgência dos negócios e transacções. Esta incapacidade de pressentir o
universal criou um mundo cheio de segmentações, parcelas que não são susceptíveis de serem associadas e
reconstruídas num todo minimamente compreensível, sendo este o momento onde tudo o que resta e que não se
sabe o que é pertence ao arquivo de um tempo chamado passado. O contexto onde as coisas hoje se passam está
muito alterado, houve mudanças e rupturas profundas nas visões universais do mundo, construídas sobre uma
realidade que foi olhada no passado de uma forma monolítica e unilateral, inserida numa noção regular e
monopolista do tempo, que nos permitiu compreendê-lo como história. Hoje, sobram-nos apenas fragmentos
desse tempo. O passado alterou-se, deslocando as coordenadas actuais do nosso entendimento. Nesse sentido, a
estratégia, continuamente utilizada por Pedro Sousa Vieira, da citação e da transformação da imagem, da sua
recriação a partir do lastro que lhe sobrevive, tornou-se, sabendo  nós que estamos perante a impossibilidade da
irrupção de algo novo ou sequer da construção propositiva de uma obra, tragicamente conscientes de que tudo
são margens e notas de rodapé da história, uma prática artística incontornável de descodificação do mundo e do
nosso tempo.