AUTOR: IVO MARTINS 
EDIÇÃO:
Jornal Guimarães Jazz #5 - Câmara Municipal de Guimarães/ Associação Cultural Convívio/ A Oficina     DATA: Novembro de 2010 









                            UM FESTIVAL


a) A história enquanto problema

Todas as ideias precisam de exemplos concretos capazes de as explicitarem e incentivarem descobertas: analise-se o Guimarães Jazz para se pensar num conjunto de condições em função das quais ele existe, sendo algumas delas inerentes às suas próprias práticas de sobrevivência e consolidação e outras absolutamente exteriores. Quanto mais vividas e experimentadas forem, tanto mais fortes estas ideias surgem junto das pessoas, aparecendo como representações plenas de sentido e por isso facilmente transmitidas entre os que por elas se interessam. Para proporcionarmos uma experiência que tem um lado muito subjectivo e imaterial, muitas vezes temos de saber encontrar fórmulas eficazes de propagação e de disseminação. Formular ficcionalmente um discurso que pense o evento pressupõe a adopção de uma certa técnica cinematográfica na escrita, como se de um argumento se tratasse. O seu registo facilita a comunicação, criando mecanismos narrativos e descritivos mais operacionais. No entanto, não é fácil envolver as pessoas numa narrativa com a intenção de contar o que se encontra nos bastidores da construção do Guimarães Jazz. Este ano escolhemos abordar e descrever, através da ilustração desenvolvida nas páginas seguintes, as muitas expressões artísticas de uma actividade multidisciplinar. Pretendemos furar na superfície visível do festival, entrar em algumas das suas estruturas abstractas e olhá-lo como o hipertexto de uma metáfora congregada num grupo de conceitos, formulada no desenrolar do acontecimento.

É difícil escrever a história do Guimarães Jazz por não haver distância temporal suficiente e porque se pode transformar numa simples enumeração de pontos representativos, enquadrados como pretextos rememoralistas, compiladores de informação. Revisitar o arquivo histórico de um evento coloca-nos perante a ilusão do absoluto conhecimento da sua essência, restando-nos uma síntese parcial sobre um objecto que é, na maior parte dos casos, uma certificação das nossas emoções e convicções. A leitura histórica está sempre contaminada pelo processo interpretativo, impedindo-nos de ler os factos e impelindo-nos a sermos lidos por eles.



b) Entre a memória e a história


Descrever o Guimarães Jazz será sempre uma narrativa falhada, um texto com muitas lacunas, porque é impossível traduzir a riqueza das emoções sentidas por quem nele participa. Assim, perceber o festival é vivê-lo por dentro, sentir tudo o que se vai passando nos concertos e nas várias actividades paralelas que decorrem nos dez dias da sua realização. A melhor maneira de o observar será comentar e alargar algumas das nossas efémeras recordações, tentando dar a todas elas um sentido pessoal, de forma a condensarem mais memória. Indicar a sequência dos momentos não mostra o verdadeiro significado dos mesmos, não revela o seu subtexto nem as impressões de estranheza nele contidas. A câmara de filmar deverá ter a sua lente fixada nos espaços em branco, ainda por escrever, entre o público, os criadores e o mediador situado numa zona obscura e invisível para todos aqueles que misteriosamente aceitam o programa de cada edição. Decompor a estrutura de um tal evento requer afastamento e negação de posse para suscitar uma postura desinteressada e despojada de valorações subjectivas, de modo a alcançar uma visão sobre a unidade. Este exercício permite uma leitura diferenciada das suas parcelas, onde cada concerto se representa como uma possibilidade de ampliação e extensão no que existe e nos é comunicado pelos acontecimentos. 



c) O início - a passagem do pensamento ao acto

Uma provável metodologia a aplicar a esta descrição seria adoptar-se a clássica perspectiva temporal de organização. O primeiro festival foi basicamente uma experiência e um acto fundador. A fundação, porque elabora sobre o vazio, implica a mobilização de cargas extremas de significado – como se tivéssemos saído de um estado de quase absoluta insignificância para um ponto mínimo de identificação, o início na difícil aquisição de identidade. A criação exige empenho construtivo e solidez simbólica, assumindo por isso mesmo, uma importância fundamental, visto ser através dela que se dá a passagem de um trabalho de idealização para uma prática de materialização. Conceber e definir um perfil para o festival tem como premissa justapor simultaneamente e em paralelo a sua renovação permanente e afirmar a sua própria identidade. Desejamos encontrar um modelo estético que reflicta uma diferenciação relativamente aos festivais já existentes e que antecipe futuras alterações conjunturais.

Todas as intervenções criativas passam, ao longo da sua história, por momentos de dúvida e de reafirmação, provocando crises de crescimento, suscitando inúmeras incertezas e motivando a agir contra a indiferença e a inércia por elas geradas. Reagir aos problemas que se nos foram deparando, terá sido eventualmente a principal medida utilizada. O Guimarães Jazz evoluiu positivamente, adquiriu um corpo, uma identidade, tendo causado sensações ambíguas, ora de confirmação da sua verdade, ora de retrocesso nas suas convicções e entrando por vezes, num território confuso de atrofiamento. Nas ambivalências dos percursos e das observações que fomos fazendo, enfrentámos todo o género de obstáculos e de situações complicadas, conseguindo manter uma atitude construtiva de relacionamento com o meio. Posicionando-nos num equilíbrio entre a vertente artística e os aspectos organizacionais, tentando elevar a sua qualidade às últimas consequências, alcançámos uma interacção constante com a realidade circundante e descobrimos instrumentos de avaliação objectiva. A conjugação entre o lado artístico e as condições técnicas da produção possibilitaram uma organização leve e flexível, adaptável aos problemas e às necessidades emergentes. Convém recordar que este evento nasceu num determinado contexto (havia poucos festivais e a música era tida como uma arte dirigida a uma minoria, em alguns casos olhada como elite) e teve a capacidade de se desenvolver naturalmente.

Organizar um festival é acção e não pensamento. É um trabalho de artesão, radicalmente oposto a um exercício intelectual e estético, baseado na subjectividade dos seus autores. No entanto, as dúvidas e a problematização do seu conteúdo não devem nem podem ser expressas nas escolhas feitas, dado aspirarem fundamentalmente ao consenso e à aceitação, numa dualidade possível se a sua leitura e fruição forem pessoais e despidas de ruído ou dispersão. Ao horizonte máximo de um festival ou apenas à experiência pura de um concerto está associado o conceito de gozo absoluto proveniente do contacto sonoro com o Belo e com o prazer eterno da música – algo apenas alcançável mediante a ausência de intermediações e de conceptualizações estéreis que enclausuram a arte em enclaves racionais, especulativos e emocionais, destruindo a possibilidade desse momento singular se desdobrar em êxtase e elevação através da comunicação e do entendimento dos conteúdos específicos em que se dá o encontro com a música. O acontecimento é, no instante em que se cumpre, algo lançado no mundo sem rede, tentativa precária de atingir um equilíbrio no qual apenas se pode subsistir se se deixar para trás dúvidas e inseguranças. Ele oferece-se ao tempo para depois ser retrospectivamente avaliado, transportando consigo a noção muito clara de que um dia será também eco ressonante, contendo informação e lastro histórico – passado.



d) O espírito do artesão

Quando as pessoas se comportam como consumidores deixam de pensar como artesãos. O trabalho do artesão corrobora uma atitude particular e um relacionamento especial com o mundo: agindo como consumidor, o artesão realiza mais do que uma tarefa mecânica porque ambiciona entender as razões de funcionamento do que compra e aprofundar as suas eventuais utilidades. Ele interessa-se por adquirir um saber e quer intervir no mecanismo de troca de informação, tornando-se menos passivo e mais crítico relativamente às suas escolhas. A capacidade de compreender e de processar essa informação decresce à medida que o seu volume aumenta. Estes factores arrastam níveis de consensualização, constrangendo a liberdade de produzir discursos antagónicos. Assim, enquanto modelo de consubstanciação do projecto, o festival deve incentivar relações livres e desinteressadas. Há um clima de confiança e de credibilidade a disseminar junto do público participante que o leva a uma postura de seriedade, reflexão e exigência. Criam-se entre os intervenientes laços invisíveis, posteriormente transformados em simbologia de afectos e de sensibilidade, reflectidos num devir de história e de lembrança.



e) O festival e o sistema da arte

As dúvidas e problemas decorrentes da estruturação do festival revelaram com extrema acuidade a necessidade de se estabelecer, como condição essencial da escolha do programa, uma distância razoável com os vários interesses em jogo – aspecto tanto mais importante quanto mais evidente é a actual atmosfera de desorientação ética que influencia todos os actores em movimento no espaço do jazz. A mudança de estatuto dos agentes poderá constituir um dos sinais da degradação de um sistema estável e eticamente delimitado. Estas migrações imprudentes através das diversas funções da mediação (criação artística, programação, crítica jornalística, produção de espectáculos, promoção comercial e indústria discográfica) e até mesmo o deslocamento fluido da criação para a promoção, originaram abalos com consequências imprevisíveis, num meio alimentado pela legitimidade simbólica dos princípios e valores artísticos, vampirizando os seus efeitos a vários níveis. É curioso constatar como essas alterações favoreceram a acumulação de tarefas, em certos casos incompatíveis por estarem sujeitas a interesses inconciliáveis. Ocorreram casos em que houve o patrocínio de algumas instituições públicas prestigiadas, processando-se tudo isto de forma totalmente impune, sem que se manifestasse o mais pequeno desacordo. Os efeitos sistémicos destas operações de transformismo revelaram-se particularmente graves pela opacidade do discurso dos intervenientes: nunca se soube verdadeiramente em que qualidade eles se pronunciavam, quando tornavam públicas as suas opiniões. Estas circunstâncias criaram um estranho sentimento de dúvida sobre tudo o que se diz e se escreve a propósito do jazz, dificultando qualquer trabalho sério e independente na sua divulgação. Os procedimentos referidos desprestigiam esta música e levam a ponderar a possibilidade de se continuar a fazer uma promoção eficaz e consistente, pelo facto de na sua área se detectarem incoerências e fragilidades de comportamento. É pertinente questionar-se a subsistência ética de um sistema quando os seus agentes não se definem nem se identificam de forma clara; também a transparência da sua “crítica” é questionável por não corresponder seriamente às exigências de legitimação do exercício compreensivo da música. Os interventores na divulgação do jazz não devem prescindir de isenção e impermeabilidade relativamente aos interesses flutuantes e moduláveis que existem no seu meio, como no meio de todas as outras áreas. Não devemos pois cair na tentação de atrair atenções sobre os acontecimentos que não são nem podem ser representativos da sua definição. Temos de saber sobreviver num círculo onde os interesses proliferam e, pelo facto de não serem claros nas suas manifestações, tudo o que acontece está desde logo ameaçado pela vulgaridade e pela banalidade. Um festival tem de ser um espaço exclusivo e descomprometido, aberto à compreensão e à fruição livre e individual do público, prestigiando o jazz, a sua credibilidade e a de todos os seus actores. Neste sentido, o essencial das nossas respostas é encontrado nos concertos – a execução dos músicos e a audição do público.



f) Programação e subjectividade

Nos últimos anos tem-se assistido a algumas mudanças que confirmam a crescente importância da figura do programador, tendo-lhe sido conferido um certo protagonismo e relevância, enquanto instância de legitimação e de afirmação identitária dos eventos. Esta talvez seja a consequência da multiplicação de acontecimentos similares (festivais, concertos, mostras, ciclos) e da concorrência entre eles, daí que seja necessário aprofundar características diferenciadoras e apurar a sua coerência estética. Outro contributo para a emergência da figura do programador terá sido a progressiva tecnicidade e profissionalização da área cultural que exige hoje uma intervenção especializada na produção e na difusão de espectáculos. A função do programador reveste-se assim de uma relevância decisiva e contém um elevado grau de visibilidade mediática, tornando-a um posto apetecível, amplamente exposto a uma confluência de interesses e pressões marginais aos valores artísticos.
Quem elabora o programa deve ter uma preparação técnica, intelectual e ética que o dote de um nível aceitável de invulnerabilidade e competência para tomar as melhores decisões na defesa intransigente da integridade e da validade do projecto. O seu desempenho requer uma visão estratégica e uma capacidade de leitura da realidade que lhe sirva para optimizar, decompor o erro, consciencializando-se da sua inevitabilidade e possibilitar a mediação entre os pólos a gerir e a interagir – os músicos, a obra musical e o público. Mais do que as opções impostas pela programação, são cruciais as rejeições dos elementos passíveis de introduzirem ruído nesta relação. Referiu-se anteriormente o conflito de interesses externos, alguns elementos prejudiciais e eventualmente destrutivos da programação, mas também é preciso ter em conta o factor endógeno deste trabalho – a subjectividade. O programador não deve renegar o seu gosto pessoal; fazê-lo seria eximir-se à sua responsabilidade de mediação. O gosto pessoal não pode ser interpretado numa lógica de submarino, como enclave que não se envolve nem cria vasos comunicantes com as cargas relacionais do acontecimento. No entanto, a subjectividade deve voltar-se para fora de si própria, projectar-se na realidade exterior, ser sensível aos sinais que dela recebe, sobrepondo-se à consideração dos interesses de natureza comercial e de processos de hierarquização e reconhecimento, estruturados em valores e critérios de uma ordem que se (re)define pela auto e mútua certificação da obra e sobre quem exerce a valoração. Por isso nos devemos desvincular das posições predefinidas e exclusivistas de critérios estéticos, porque as análises apriorísticas do acto musical não deixam de afectar a disposição de quem assiste aos concertos, nem a posterior avaliação dos mesmos. Este contágio resultante da confusão gerada pelos vários agentes a operarem no contexto do jazz, impõe uma crítica anterior à realização dos eventos, condicionando os juízos de valor, sequestrando o programador, fazendo-o refém de si próprio, condenado a uma atitude solipsista que não cumpre os objectivos da sua função – promover o interesse desinteressado no contacto com esta música.
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                          O FESTIVAL ENQUANTO ACONTECIMENTO:
                                            FORMATO E IDENTIDADE


a) Um conceito de festival

Um festival não é um conjunto desarticulado de acontecimentos no vazio, mas um todo lógico, um corpo orgânico que não pode ser analisado sem se ter em conta a sua unidade. É impossível apresentar e divulgar alguma coisa rasurando-lhe a sua retaguarda, o seu passado e desinserindo-a da sua história e das raízes do presente. Quando planificamos o programa, surgem-nos sempre as mesmas perguntas: o que é actualmente um festival de jazz? Haverá um método específico que permita situar esta música e realizar, através de um evento, algum sinal identificador, seguro e universal de divulgação e de legitimação? No meio destas dúvidas e de alguns dos comportamentos já referidos, detectámos muitas respostas, desde a possibilidade de orientarmos o alinhamento num critério inspirado exclusivamente nos géneros, tipos, estilos e abordagens do jazz, durante as várias fases da sua história, até à selecção de músicos ou músicas que apenas visam fornecer bases mínimas de informação sobre o fenómeno, sem qualquer tipo de preocupação historicista ou estilística. O programa será mais rico se suscitar um maior número de leituras simultâneas e diferentes, reflectindo uma estrutura musical variada, fomentando diversos pontos de vista e incentivando a participação e a movimentação das audiências na direcção dos concertos. Com este objectivo tenta-se incrementar um leque alargado de estímulos e de insinuações que resultem directamente nas diversas propostas. A variedade de estilos e de géneros de cada alinhamento e as suas múltiplas associações a ideias sugeridas pelos artistas presentes e pelas inúmeras actividades paralelas, criaram uma atmosfera de abertura à divulgação da música, aglutinada num perfil estético coerente, numa produção consolidada e expressa nos concertos apresentados.

O festival propõe-se ser um espaço de actuação livre e espontânea, onde os indivíduos sejam estimulados a descobrir uma disposição, de modo a empreenderem um esforço de pesquisa e de aprendizagem. Nestes termos, constitui-se o projecto desenvolvido num modelo de comunalidade, no qual o público se envolve e participa activamente, algo totalmente diferente dos estratagemas de comercialização dos espectáculos, assentes num esquema simples de procura e oferta que convida a uma atitude passiva do consumidor.

A todas as práticas de venda está associado um conjunto de actos teatrais focados no controlo da incredulidade do consumidor, provocando nele uma espécie de ansiedade que o leva comprar mais. Há uma vontade de persuadir que distorce dramaticamente a percepção das coisas a adquirir. A fundação artística de determinados eventos culturais aproxima-se dramaticamente do discurso de convencimento que explora, de forma intensiva, o desejo de possuir. A ilusão alcançada pela aquisição de um produto está relacionada com o exacerbar da sua posse e assume um papel debilitante numa sociedade que incentiva a passividade e deposita confiança na ausência de espírito crítico perante a facilidade de acesso ao consumo. A sensação de satisfação imediata, proporcionada pela posse do objecto é um desvio na necessidade de conciliar o conhecimento das lacunas psicológicas do consumo com o entendimento do mundo. Não nos interessa por isso, desenvolver uma técnica de compra e venda, pela qual os sucedâneos comercializados nas relações entre o festival e o seu público jamais poderão substituir as ligações humanas atingidas. Concebemos um conjunto de argumentos artísticos que certificam as nossas opções e fornecem ao alinhamento coerência e unidade mínimas de compreensão, um discurso sem ruído, formalizado nos concertos e nos textos que os documentam, recusando frontalmente as lógicas manipuladoras e as retóricas de venda do acontecimento enquanto produto cultural.



b) Definição de um formato - um percurso

O festival deve ser encarado como uma plataforma organizativa, composta pelo núcleo principal de concertos realizados no Grande Auditório, mantida durante todos estes anos com ligeiras modificações conjunturais. O Guimarães Jazz criou um chassis, uma estrutura base, a partir da qual se tem confirmado o valor das pequenas diferenças objectivas, factores que permitiram converter as alterações realizadas em algo susceptível de se lhe atribuir uma marca simbólica e uma identidade própria. O facto de ser planeado sem o recurso a um formato artístico específico, sendo por isso mais flexível na sua construção, facilita um programa equilibrado e faz com que os níveis de consensualidade alcançados sejam diferenciados nas versatilidades atingidas. Foi através do espaço deixado livre pelos outros eventos similares que fomos percebendo qual seria o melhor contexto de actuação e quais os procedimentos mais adequados para o executar. A atenção sobre os outros e a abertura ao exterior alargaram o festival na sua configuração possível, gerando compromissos e novas relações de proximidade que o sedimentaram e expuseram de forma muito mais nítida.

Antes da confirmação de qualquer alinhamento, a organização traça as linhas estruturantes e o formato a seguir. O Guimarães Jazz desenvolve-se de modo tentacular e projecta-se em diversas frentes, afirmando a sua presença numa óptica multipolar, de maneira a criar focos de atracção e de atenção mais amplos do que a mera realização dos concertos. Elabora-se numa disposição harmoniosa espaço-tempo com a difusão de acontecimentos dependentes de pressupostos e objectivos diferenciados, (educativos, festivos, conviviais) não intervindo de maneira ostensiva. Pretende atrair diferentes tipos de pessoas, propagar múltiplos e distintos interesses, descobrir motivos para o público o frequentar e evitar enclausuramentos em guetos elitistas e militantes, assim como a sua marginalização relativamente ao meio envolvente. O seu ponto culminante são os concertos no Grande Auditório, nos quais se cristalizam e individualizam critérios e valores artísticos que sustentam o projecto, identificando-o. Ocupando um lugar incontornável na tradição do jazz, as Jam Sessions são actos de divulgação e promoção musical num ambiente mais afectivo com os músicos, provocando momentos espontâneos de improvisação ou competição pura – uma ritualização colectiva, processada através da música. As Oficinas de Jazz constituem a componente pedagógica essencial a um festival desta natureza – altura em que se concretiza um contacto directo entre jovens músicos e reconhecidos e experientes instrumentistas, expondo a sua face militante indispensável. O projecto Guimarães Jazz/TOAP, iniciado em 2006, funda-se em colaboração com a editora discográfica Tone of a Pitch, cujo objectivo é estabelecer uma ligação estreita ao jazz feito em Portugal. A gravação áudio dos concertos é uma das suas dimensões mais significativas, dando-se assim oportunidade ao evento de se auto-documentar e arquivar. Tendo sofrido várias transformações ao longo do tempo, o projecto Big Band evoluiu para uma actividade formativa em parceria com a Big Band da Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo, dirigido por um músico ou músicos residentes. O concerto que daqui resulta conclui uma semana de ensaios, cumprindo-se assim as expectativas de aprendizagem dos músicos participantes. Esta actividade cria dinâmicas colectivas de interacção e troca de experiências.

Com a deslocação para as instalações do Centro Cultural Vila Flor, inaugurado em 2005, a história do Guimarães Jazz conhece um momento decisivo na sua existência. Esta mudança permitiu um enorme salto qualitativo a nível da produção, do apoio técnico, da comunicação e da imagem. Contudo, a modificação mais importante verificou-se na disponibilização de um auditório com maior lotação (800 lugares) e de uma infra-estrutura dotada de potencialidade autónoma para a captação de público. Sem os habituais constrangimentos de espaço relacionados com as características do local onde se realizaram as anteriores edições, o novo equipamento, com melhores condições logísticas e técnicas de produção, proporcionou expansão e crescimento, impedindo que o evento chegasse a uma situação de esgotamento. Face a esta alteração, o festival adequou e redefiniu as suas directrizes programáticas, de modo a optimizar e a rentabilizar as vantagens oferecidas pelo Centro Cultural Vila Flor. Isto constitui um exemplo, entre outros possíveis, da constante obrigatoriedade de se adaptar e definir um certame ao seu contexto, às vantagens ou limitações internas/externas dos espaços, das pessoas e também das experiências com a mesma natureza e objectivos.

O cartaz final de cada Guimarães Jazz é o produto de uma apurada pesquisa, contacto e contratualização, executados por uma equipa alargada de pessoas, durante o ano precedente à sua realização. Há sempre um projecto, há sempre uma ideia a propor e a pôr em prática, ideia que por vezes nem nós próprios dominamos completamente. Depois de colocada à consideração, a disposição dos músicos incluída no programa transforma-se em novas leituras e entendimento, projectando vontades de participar e curiosidade sobre os instrumentistas. Muitas vezes os acontecimentos ultrapassam o previamente estabelecido e aguardado. Aprendemos algumas coisas com o tempo e percebemos que não há interesse em repetir músicos, assim como nos parece importante apresentar no Guimarães Jazz grandes figuras desta música, inscrevendo-o na história do jazz. A programação deve relançar novas interacções com o público de forma a exponenciar mecanismos de atracção e de sedução, passíveis de criarem uma atmosfera de confiança generalizada que influencie as audiências. A organização tem de cativar todo o tipo de pessoas, não só as mais atentas e informadas relativamente ao jazz, como também as que, não o conhecendo, podem a qualquer instante decidir ter um primeiro contacto com ele. Tentamos evitar um grau de excessiva seriedade intelectual à sua volta, no sentido de se estabelecerem as melhores condições de acesso e de aproximação. Não negamos a necessidade nem a importância do conhecimento da arte e da sua história, mas julgamos não ser este o momento, nem o contexto mais oportunos para fazer abordagens teóricas e, portanto, mais complexas sobre o jazz. Tudo deve acontecer num terreno despovoado de ruídos, de solicitações concorrenciais susceptíveis de desviarem as atenções, sob risco de se retirar parte do impacto junto daqueles a quem se quer chegar. Na origem desta construção está o prazer de fazer as coisas bem feitas, um certo espírito de artesão que contraria um mundo demasiado móbil. O desejo de fazer as coisas pelo simples facto de as fazer bem, enraíza-se na experiência pessoal ao longo dos anos. Quando as pessoas adquirem sem critério novos produtos, procuram a sua satisfação, agindo como um consumidor insaciável, em oposição à atitude de artesão, orgulhoso e senhor daquilo que faz. Ele sabe sempre explorar todas as vantagens do rigor e da sua capacidade profissional, havendo quem afirme que o “eu” artesanal pode levar a um sentimento de posse desprovido de generosidade. Contudo, este espírito possui uma virtude primordial, cada vez mais em falta nas sociedades actuais: o compromisso. O artesão obsessivo acredita no valor objectivo do que faz e só através de ensaios e erros sucessivos melhora as tarefas. A esta atitude subjaz o desenvolvimento de um talento, uma competência particular de organização que se desenrola por etapas e por impulsos irregulares. No âmbito do festival queremos explorar as ideias e trabalhá-las até às últimas consequências, criando um evento capaz de crescer e de nos arrastar no seu crescimento. Se encurtarmos o tempo dispendido na elaboração do Guimarães Jazz, a nossa aprendizagem torna-se mais difícil, levando-nos a aflorar as questões em vez de as aprofundar. Só investindo nesta postura desinteressada podemos beneficiar, tal como o artesão, de garantias de sobrevivência. Desejamos favorecer o aparecimento de cumplicidades pessoais e íntimas, através de um acordo mútuo que também significa clausura e renúncia, para nos concentrarmos numa coisa só.



c) Identidade e programação

De acordo com as mutações verificadas, a participação num mundo multicultural reclama uma identidade forte e credível. Actualmente, a formação de identidades híbridas e heterogéneas requer meios de divulgação flexíveis e não impositivos, num discurso anti-persuasivo e não ostensivo. Pela tomada de decisões, os indivíduos tornam-se actores de uma determinada maneira de agir cultural, não denotando níveis exagerados de homogeneidade e de uniformidade que permitam intervenções monolíticas e generalistas nas manifestações do gosto. Consideramos o público único e irrepetível, contrariamente ao conceito da sociedade de massas que suprimia as individualidades do sujeito. Nesta dualidade acontecimento/pessoas pretende-se preservar o indivíduo com as suas idiossincrasias e dissemelhanças contra todo o género de acções niveladoras e uniformizadoras na construção de identidade e de singularidade.

O Guimarães Jazz ganha espaço ao pôr ao critério dos que gostam desta música e dos que com ela querem contactar pela primeira vez, um ciclo de concertos e de acontecimentos, transformando-os em oportunidades de audição de vários tipos. O que verdadeiramente apreciamos é a concretização do nosso trabalho e a reacção participativa, profundamente relacional do público aos espectáculos. Recusamos o processo de moda no qual impera uma ideia de marca, evitando que as actividades do festival se dissolvam numa única projecção mediática. Caso não o fizéssemos seria mais um concerto ou um músico do que o acontecimento a impressionar a audiência, prejudicando as diferenças estabelecidas com o alinhamento do programa e reduzindo toda a variedade a um produto de consumo homogéneo e uniforme. Também o público tem de agir como artesão, magnificando as dissemelhanças, conhecendo assim a paixão do instante, sem desviar a sua atenção, nem os seus níveis de exigência. O desafio consistirá em elaborar o que é diferente em cada um dos momentos musicais, inserindo-os na concepção artística unitária. Ampliar as diferenças sem uma ilusão efectiva sobre capacidade de não se ser escravo do desejo de participar é, na sua essência, uma forma de liberdade só possível com uma autêntica e espontânea participação.

O tempo é um elemento essencial de solidificação, facilitando as interpretações de uma multiplicidade de narrativas que justificam, explicam e confirmam a validade e o interesse das escolhas.

São muitas as causas que condicionam o alinhamento e é sempre difícil conciliar as agendas dos músicos com o calendário do festival. O programa é planeado com um ano de antecedência e, posteriormente, vão-se fazendo os contactos. A sua concepção precisa de tempo e de criatividade, sendo necessário ter acesso às digressões europeias dos músicos para depois se confirmar a totalidade das opções iniciais – só assim se mantém coerência.

Hoje em dia, as coisas têm de ser muito rápidas a atingir resultados e sucesso. As pessoas não gostam de experimentar mudanças bruscas nas suas vidas, sobretudo quando essas alterações não lhes são apresentadas de maneira justificada; sentem-se ansiosas, inseguras e pouco à vontade. O pensamento a curto prazo prevalece sobre o crescimento e a grande limitação deste tipo de eventos é não ter tempo para crescer devagar, porque crescer exige uma lenta sedimentação de conhecimentos. Para isso acontecer naturalmente é essencial ter-se tempo para arriscar e corrigir, para se pensar e se encontrar o meio mais apropriado de executar as ideias. Talvez muitas das questões explicadas anteriormente ajudem a perceber porque é que o Guimarães Jazz teve tempo necessário para pensar e consolidar um projecto com identidade, conseguindo manter ao mesmo tempo, uma incessante trajectória de ascensão. Pode considerar-se este facto uma situação rara, num mundo onde tudo se altera a grande velocidade.

Quando o jazz é coligido numa táctica de divulgação, – um festival – o seu centro artístico desloca-se para uma afinidade entre os concertos, acompanhada pelos argumentos justificativos da presença dos músicos no alinhamento e pelas divergências respeitantes à sua singularidade. A coerência do programa ganha assim um novo sentido e relevo, concretizados num exercício de comparação.

O Guimarães Jazz cria um método de compreensão entre os concertos, sujeitando-os a uma ordem definida através de impulsos intuitivos e permitindo preservar uma espontaneidade inatingível caso o alinhamento fosse delineado segundo critérios exclusivamente racionais. Isto não exclui de modo algum as particularidades específicas de cada contacto com o jazz, sendo a sua unidade reconstruída a partir desse confronto.

A variedade de relações ocultas e complexas torna o festival um momento único, encadeado numa trama de pontos comuns e de diversidades que, não se anulando, se unem a outros elementos externos. A história de cada projecto aparece como factor de exteriorização, uma busca de tópicos substancialmente enriquecedores da pluralidade de leituras e de entendimento. Um festival é uma montagem extravasante de significados, uma espécie de happening representado pelos concertos propostos – referências, informação e mensagem que nos invadem e nos levam a reflectir sobre o que está a acontecer. Esta montagem pode ser sentida por quem participa e descobre uma orientação para o programa assim construído. O público torna-se um visitante condicionado a recolher conhecimentos, a tactear nos muitos problemas colocados pelas escolhas, a debruçar-se e a penetrar nas inúmeras ocorrências que o possuem e o inundam. Quanto mais informação acrescentarmos, tanto mais expostos a ambiguidades passíveis de conflito ficamos.
                                            A RELAÇÃO COM O PÚBLICO


a) Notas introdutórias

Um programa é pensado exclusivamente no sentido de se estabelecerem novas relações com o público. Na sua origem está a necessidade de se corresponder às expectativas dos que se interessam pelo jazz. Tentamos encurtar distâncias a um conjunto alargado de indivíduos que não podem ser tratados de forma massificadora, nem numa abordagem colectiva.

A proclamação da grande síntese histórica foi um sonho perigoso e, em determinados aspectos, a revolução sempre funcionou ao contrário da democracia. A modernidade não significa o triunfo do uno como proposta de mudança universal, mas o seu desaparecimento, a sua substituição pela difícil gestão do quotidiano. Nas imprescindíveis e complicadas interacções entre a racionalização e a liberdade individual, o século XX revelou uma violência demasiado cruel, não permitindo confiar minimamente na virtude da história, nem na inocência do progresso. O presente incita-nos a abrir clareiras na floresta da tecnologia, dos regulamentos e das burocracias consumistas, para podermos tirar partido da primazia da liberdade sobre tudo. Um festival deve ser espaço de evasão, momento de revitalização generalizada, incentivadora de contentamento através da experimentação da cultura.

O público que começou, no início do século XX, a interessar-se pelo jazz procurava nesta música, bem como no cinema, um tipo de arte altamente inovadora, considerada sinal de modernidade e vanguardismo. Ao mesmo tempo, desejava identificar-se com uma elite culturalmente evoluída, ávida de se mostrar a par das transformações e das convulsões que se faziam sentir em termos sociais, tecnológicos e artísticos. Isto revela uma associação directa do jazz à ideia de tribo, grupo restrito no qual a música actuaria como dispositivo simbólico de acesso e de aceitação – emblema dos mais cultos e esclarecidos. Estas constatações realçam duas ligações fundamentais e aparentemente contraditórias do público ao jazz: por um lado, reconhece a importância artística, conferida pela introdução de rupturas e inovações no cânone musical (evolução verificada num curto espaço de tempo, não acompanhando as transformações estéticas nas artes plásticas ou na literatura, apesar de todas estas manifestações sucederem no interior de um quadro de osmose de referências e de práticas artísticas: - a improvisação, a complexificação dos ritmos, a descontinuidade da frase musical, o automatismo, a utilização de instrumentação não convencional etc.); por outro lado, distingue a relação motivada por razões extra-musicais de afirmação de estatuto cultural – ideal de contestação através do escândalo e da confrontação com a sociedade e trajecto para a assunção de uma posição política radical.



b) O Cascais Jazz e a morte de um paradigma de festival


A componente política tantas vezes conotada com o jazz em Portugal, pode ser explicitada tomando por exemplo o fenómeno cultural associado ao nascimento do Cascais Jazz. Este tornou-se um acontecimento extremamente representativo porque conciliava elementos sociais, políticos, económicos e artísticos. Tendo aparecido numa época de ditadura e de fechamento cultural, foi transformado, contra a sua natureza e apesar da sua extraordinária pertinência musical, num fórum político de contestação ao regime, mascarado de ocorrência cultural dedicada à divulgação do jazz. De facto, só assim se compreende que um festival com aquele carácter e realizado sob condições políticas tão adversas tenha conseguido proporcionar a audição directa desta música a mais de dez mil pessoas por noite, quebrando as previsíveis linhas divisórias que separavam, de modo ainda mais evidente no início dos anos 70, uma minoria esclarecida com acesso aos eventos culturais na Europa, nos EUA e no mundo, de uma maioria impossibilitada de lhes aceder.

O Cascais Jazz é um marco crucial na história da música e da cultura em Portugal, devido à confluência de significados, de transformações e de contactos por ele desencadeados, tendo aberto a porta a outras formas de aprendizagem e a outros festivais. No entanto, também tornou notória a fragilidade das vinculações (nomeadamente políticas) entre o público e o jazz, tendo-se enfraquecido o clima de protesto anti-sistema à medida que a realidade social se modificava. Estas alterações obrigaram a repensar as estratégias de divulgação.



c) O programador e o Outro

Um festival não é só inventado por quem o pensa, mas também pelas pessoas que com ele contactam. A audiência parte de uma elaboração pessoal desligada do projecto e, depois de ter contactado com a música, transfigura o festival numa substância plástica, moldada pela multiplicidade de informações e emoções experimentadas. Para este relacionamento se concretizar de modo frutuoso, é determinante que a concepção do evento não se imponha, mas convide as pessoas a uma apreciação conjunta, sugerindo um espírito capaz de desenhar um espaço livre de constrangimentos. É na relação comparticipativa e cúmplice que se exige a renovação constante dos estímulos. Do desafio do qual nasce o compromisso inicial, pela sedução, pela surpresa e pela apresentação das diferentes leituras do jazz apresentado, surgem novas forças de atracção para um diálogo a prolongar-se e a repetir-se no tempo.

Uma ligação desta natureza implica dois pressupostos: a consciência do outro enquanto entidade capaz de ajuizar e avaliar e o saber colocar-se no lugar de quem assiste aos concertos, algo só possível mediante uma gestão eficaz de conflitos e uma contratualização de sensibilidades, inerentes à assinatura de um acordo mútuo e radicalmente diferenciador.



d) Sociedade de massas e sociedade global

O público é o mais importante difusor de informação, absorto no tratamento das diversas formas de cultura recebidas, movendo-se numa interacção complexa entre o lugar donde provém e o momento em que se encontra. Estes dois factores interpenetram-se e fundem-se, através da comunicação numa composição criativa, dinâmica e constante, conduzindo a formatos abertos e híbridos de entendimento. Cria-se assim uma comunidade complexa e heterogénea, assente num colectivo plurilingue, dividido em grupos que vivem seguindo os seus próprios trilhos. Tendo-se saído da comunidade de massas caracterizada pelo anonimato dos seus membros, pela ausência de reciprocidade social e pela indiferença perante os indivíduos, o homem que surge das ruínas desta sociedade, define-se pela vontade de se encontrar entre iguais e a si mesmo, assumindo as respectivas diferenças. Este indivíduo resulta de uma nova época de transição da sociedade de massas para uma sociedade global. Ele tem de sobreviver na convergência de dois fenómenos: a aceleração e consequente globalização planetárias e a decomposição da ordem estabelecida pelo fim da guerra-fria. O ambiente pró-democrático favorece a mobilidade, a proximidade e os confrontos. Por isso o homem foi obrigado a subsistir num domínio estruturado em rede, variável, dinâmico e desprovido de pontos de referência. Este ambiente dificulta a aplicação de acções influenciadas pelo critério centralista/dirigista. Se compararmos o contexto social, político e económico donde surgiram as vanguardas (sentidas como posto avançado da elaboração artística e estética, através das quais se organizava toda a contestação cultural) com o actual, verificamos a não existência das mesmas condições para que essas vanguardas exerçam a sua influência renovadora. Na altura, para se manifestarem, elas precisavam de uma sociedade organizada numa perspectiva hierárquico-funcional. Hoje o mundo mudou e não tem necessidade de qualquer tipo de acção de choque para alterar o que quer que seja, porque transitámos de uma sociedade monolítica de grande consumo para uma outra mais desejosa de contrariar o egoísmo, a indiferença, a tendência para o isolamento individual e para a separação em grandes grupos. A sociedade em rede abandonou a organização em pirâmide para adoptar uma forma mais complexa, estruturada numa superfície plana, intersectada por cruzamentos e contactos, numa miríade comunicacional. Neste terreno complexo, as ocorrências culturais mais importantes verificam-se no instante em que as pessoas, individualmente consideradas, interagem com a arte; no caso concreto, será no primeiro contacto com o jazz que cada um se pode ver reflectido em si próprio e assim iniciar hábitos conducentes a uma melhor percepção e entendimento dos fenómenos musicais.



e) O público e a subjectividade

As pessoas são consequência do equilíbrio entre projecto e memória, aparecendo-nos como um todo particular onde se combinam a vida e o pensamento, a experiência e a consciência. A ambivalência desta unidade reflecte-se na tensão sentida entre dois modos de actuação, obrigando a constantes movimentos de passagem ou de transferência das esferas da consciência de si, para a dos outros: do estado do sujeito, olhado de maneira mais generalista e enquanto parte de uma totalidade, para o estado do indivíduo, detentor de um domínio específico e aprofundado de vida. É pelo controlo exercido sobre a sua vivência que o indivíduo adquire um sentido pessoal e se transforma em agente, inserido nas diversas relações sociais. Esta imersão no social altera-o e impede-o de se identificar completamente com um grupo ou uma colectividade. Desde que se dá o contacto imediato com o jazz, verifica-se uma grande produção subjectiva de juízos e valorações em constante mudança e complexificação, solicitando modelos de comunicação suficientemente amplos para se promover a curiosidade e a participação.

A relação com o público exige inexoravelmente uma postura de distanciamento. No limite, isto requer uma espécie de reformulação do compromisso, no qual o evento constitui a ponte que facilita o trânsito afectivo, emocional e estético entre os músicos e o público. Só o público deve falar, só ele deve ter um discurso. A aparição do proponente/programador neste trabalho de permuta consensualizada distrai e impossibilita a motivação central do encontro – uma experimentação do acontecimento e a consequente reacção emotiva por ele suscitada. Este é o verdadeiro diálogo e a sua transparência deve ser preservada do ruído provocado pelas proximidades excessivas dos interesses que viciam relacionamentos e podem transformar uma proposta limpa e aberta numa marca de imposição – opinião ou impulso efémero de afirmação absoluta de um ego condicionador da liberdade e da subjectividade do público que não só se apropria do evento, como dialoga em exclusivo com ele.
              DAS VANGUARDAS À INOVAÇÃO:
A NECESSIDADE DE UMA NOVA INTERPRETAÇÃO


a) Jazz e memória

Vivemos numa época tão globalizante que escapa à nossa capacidade de assimilação e nos torna reféns de muitos problemas insolúveis. À semelhança da biosfera, o mundo artístico ou cultural vive tempos difíceis numa conjuntura de devastação ideológica, sustentada pelo crescimento do consumo. A cultura está à mercê dos meios de comunicação nos quais triunfam o zapping e o entretenimento; a arte submeteu-se voluntariamente ao princípio de “impacto máximo e obsolescência imediata”. A atenção não pode ser senão captada durante pequenas fracções de tempo pelo choque e pelo escândalo e assim se pode dizer que a actividade artística ficou destituída do seu capital subversivo, tendo-se rendido às lógicas dominantes do sistema e do mercado. Enquanto autoridade simbólica da vida, a cultura perde influência e paralelamente a indústria audiovisual desenvolve-se através da proliferação de jogos e de artefactos tecnológicos, convidando-nos a descobrir novos mundos virtuais e a ficarmos muito tempo diante dos écrans e a vermos televisão. Deixámos para trás o ciclo das obras imortais que elevavam o homem para entrarmos numa outra realidade onde as pessoas apenas ambicionam adquirir um produto, satisfazendo a necessidade criada por um engenhoso sistema de publicidade e de marketing. As indústrias culturais pretendem aumentar a distracção e o acesso à coisa cultural, facilitando a animação, o entretenimento e a exploração comercial de todo o espaço circundante. O valor do espírito é substituído pelo consumo indiscriminado e a durabilidade dá lugar ao descartável, assim como o dinheiro destrói o antigo prestígio do pensamento, negando a dimensão universal do homem que se estruturava na meditação e na reflexão. Assiste-se hoje, a uma multiplicação de manifestações culturais sem critério que não acrescentam substrato de consciência ao mundo e se nos impõem para além da nossa vontade, tornando-se por vezes obscenas. Somos confrontados com uma profusão de eventos e de espectáculos que pulverizam os conceitos do belo e da obra duradoura. A atitude contemplativa e esteticamente orientada é suplantada por imagens renovadas a grande velocidade, destinadas ao olhar e ao consumo. Teremos de encontrar um caminho contrário à generalizada falta de preocupações estéticas na cultura e interromper, de maneira eficaz, a promoção generalizada de superficialidade. Devemos ainda aprender a tirar partido das vantagens do enriquecimento sensível, através do conhecimento da arte, do distanciamento crítico e da sensibilidade ao belo, apesar da perspectiva utilitária das suas manifestações. Estabelecer um contacto orgânico com o passado, numa época em que todos vivemos uma espécie de presente perpétuo de uma história a escrever-se a grande velocidade, é tarefa cada vez mais difícil de concretizar.

A única forma de realizarmos uma experiência total na arte exige emoção. Isto obriga a desligarmo-nos dos princípios, dos valores e dos preconceitos. A noção de vanguarda, tal como foi sendo formulada e estabilizada no passado, centrava-se na definição de um objecto artístico ao qual se atribuía uma determinada simbologia, uma pose específica, uma iconografia do escândalo e da confrontação – factores estranhos à relação com a arte quando não são conciliados com a emoção. Os excessos do vanguardismo e as suas ideias sucedâneas de inovação e de novidade levam a uma postura social, traduzida em exibicionismos e em ostentações estéreis que limitam as respostas aos apelos de universalidade e de inclusão, incessantemente lançados pela arte.



b) "Quais os limites do jazz?" - uma pergunta desnecessária


Reconfigurar o espaço contemporâneo coloca questões incontornáveis sobre a comunicação. A introdução das redes digitais e das vias virtuais de circulação da informação impõe outras abordagens da linguagem, levantando novos problemas e respectivas soluções. Com a consequente mudança do processamento comunicacional, constata-se uma alteração radical do paradigma da reciprocidade e da convivência, da perspectiva reflexiva sobre a realidade e, por inerência, da própria arte. Hoje tenta-se descrever e problematizar categorias volúveis e incertas, das quais apenas se intui a sua acelerada transformação. A representação estável do mundo é-nos, neste momento, desconhecida e devemos concentrar esforços no sentido de descodificarmos a sua linguagem cifrada para actuarmos sobre o real. A pressão proveniente do facto de hoje não sabermos como ler o mundo nem como nele intervir, induz um sentimento de dúvida e de angústia, gerador de mais incompreensão e de mais bloqueios na comunicação.

Enquanto acontecimento público, o festival é uma tentativa de resolver conflitos da contemporaneidade através de consensos, de movimentos compreensivos e de compromissos – algo contrário ao cortejo sumptuário dos exibicionismos promovidos pelo escândalo, assim como pelos simulacros vanguardistas mais actuais. Ainda há quem pense a arte como um centro em expansão, resultado dos esforços de afirmação irredutível de uma minoria militante que, a partir das suas origens de gueto elitista, a consagra e a reconhece universalmente, insistindo em ignorar um mundo cujo centro se perdeu para sempre – tudo é margem.

Criar assuntos de controvérsia e de polemização acerca das definições do jazz não resolve nenhum dos seus problemas, nem ajuda a construir um perfil de festival assente no diálogo profícuo e abrangente com as pessoas. Os programas têm de ser planos utilitários de divulgação musical, fontes de acção pragmática não submetida às imagens de propaganda e de marketing, assumindo um espaço exclusivo e liberto para a sua compreensão e fruição. A reacção aos concertos constitui a resposta assertiva à planificação do evento, – os músicos tocam e o público escuta – não havendo interesse algum em transformar esse acontecimento num fórum ou debate ritualizado sobre as interrogações dos limites desta música.

Não negamos a pertinência dos discursos de questionamento crítico da arte nem, no caso específico, do jazz. Preferimos o diálogo, de forma a definirmos a delimitação das suas fronteiras, a sua relação plástica com o mundo e com as transformações mais recentes. Contudo, enquanto acto público de divulgação e de proposta relacional, um festival não é o lugar indicado para se manifestar angústias ou avaliações internas mais ou menos subjectivas: na nossa opinião, é o lugar do fazer e não do pensar ou do discutir, onde estes dois últimos aspectos assumem um papel subalterno. Entre nós e a realidade interpõem-se múltiplos obstáculos de leitura; o presente é o vórtice da tempestade, o seu centro imaterial e confuso, ao qual apenas podemos fazer simplificadas aproximações perceptivas, produzindo reflexões contraditórias; a sua descodificação exige tempo e distanciamento face ao objecto.



c) As lógicas da desorientação e do ressentimento

Os conflitos sociais são provocados pela reconfiguração da política e da economia. No passado, a desigualdade concedeu a uma humanidade ansiosa de encontrar o seu momento salvador, a energia capaz de transformar o mundo. Hoje surgem novas forças de pressão, obrigando os indivíduos a assimilar rapidamente todo o tipo de alterações incompreensíveis, complexas, incontroladas e desprovidas de direcção. Deste estado de coisas sobressai um sentimento de impotência, cujas tensões internas ao próprio sistema não produzem senão doses maciças de ressentimento. O cidadão é hoje um homem irritado por sentir que, apesar do seu esforço em respeitar as regras do jogo, foi injustamente enganado e descaradamente maltratado. Para além da satisfação alcançada pelo consumo intensivo e indiscriminado de bens, vive-se numa sociedade sem alternativa, por isso a divulgação de um acontecimento cultural deve evitar acréscimos de crispação, mais mal-estar sobre o já desgastado e esmagado tecido social no qual temos de encontrar outros pontos de referência, susceptíveis de nos fornecerem elementos estabilizadores de identidade individual e colectiva.



d) O jazz e a pós-modernidade

O escândalo – produto essencial na afirmação das vanguardas – não dispõe hoje, do mínimo espaço vital para cumprir finalidades disruptivas e apoplécticas sobre a classe burguesa, declarada como entidade inimiga a abater porque se assumia como classe detentora do poder. A arte foi usada como modelo provocador de impacto e de incompreensão, abalando o sistema e criando condições para a revolução esperada. Pergunta-se se o neologismo «pós-moderno» criado para apreender toda a época contemporânea, continua a justificar a sua utilização actual. No final dos anos 70 iniciámos uma nova etapa, denominada hipermodernidade. Esta mudança não ocorreu por termos superado a fase anterior, mas porque este novo ciclo, associado a uma maior potenciação da antiga modernidade que agora surge elevada ao quadrado, assumiu um novo patamar superlativo, onde a realidade está a ser lida na tripla metamorfose da ordem democrática-individualista, da dinâmica do mercado e da tecnociência – um mundo no qual já não existem forças estruturantes capazes de intervir na sua modificação. Vivemos numa era de particularismos, caracterizada por uma espiral hiperbólica de comportamentos e por uma escalada paroxística das manifestações artísticas, reflectidas nas mais diversas esferas da tecnologia, da economia, do social e do individual. Erráticas e fugazes nos seus quadros temporais, as vanguardas privavam os indivíduos do sentido do movimento narrativo porque se inspiravam no aleatório do inconsciente, na criação em tempo real e no mundo dos sonhos. Hoje é impossível retomar uma estratégia que recusa liminarmente toda a inovação formal pela apologia do valor do inconsciente, como local donde provém o mundo contingente e incerto das palavras e dos símbolos, no qual se ancora uma imaginação espontânea não mediada pelos sistemas de controlo racional, levando-nos para um universo imaginário visivelmente ilógico. Tendo por objectivo rejeitar a própria arte, as vanguardas alimentavam-se dessa destruição, num pressuposto inscrito na revolução universal, cujo alvoroço público era um dos seus princípios de coesão. O conceito mais recente de “inovação, no contexto da arte, transporta outro significado porque a procura do novo corresponde a uma exigência do mercado e do sistema que se desinteressou da necessidade de conflito e de confronto relativamente à sociedade e aos seus valores. A vanguarda é hoje um anacronismo porque não tem um “inimigo” a combater, restando-lhe a sua reinvenção formal, desinserida da componente política, anti-institucional e reivindicativa.



f) O jazz, a política e o mercado

Anualmente têm aparecido inúmeros festivais em regiões afastadas dos centros de Lisboa e Porto, o que é um sinal positivo e revelador de interesse pelo jazz. No entanto, este fenómeno pode não ter uma ligação directa à democratização da arte.

Quando misturamos pensamento, criatividade e acção, incorremos num perigoso equívoco que afecta as nossas posteriores elaborações culturais. A acção tem uma clara conotação com a actividade política e não deve ser confundida com a criatividade e/ou a arte. Enquanto princípio de participação igualitária, a democracia pertence ao campo da acção e nesse sentido, não há qualquer tipo de vínculo imediato à arte, actividade mais ligada ao pensamento. Falar de conceitos como “democratizar pela arte”, remete-nos para o tempo em que se acreditava ser possível construir sociedades ideais, formadas por elites, nas quais o papel dos activistas seria refinar, civilizar e esclarecer os não civilizados.

Ao desrespeitarmos as características diferenciadoras do pensamento, da criatividade e da acção arriscamo-nos a enveredar pela vulgaridade artística e pela falta de qualidade, embora não se deva imputar este facto à proliferação de festivais. A crescente importância do mercado na cultura foi vista por alguns como uma expropriação, criticando-se fortemente esse momento irradiador de massificação. Protestava-se então, contra as forças invasoras do mercado que se apropriara da cultura, fomentando o lucro e instalando a uniformização dos conteúdos, através da homogeneidade dos produtos culturais. Pensava-se que se estava a promover uma espécie de nova mediania, assente numa prática artística insípida e incaracterística e considerava-se a possibilidade de prevalecer de facto, uma uniformidade cultural estabelecida na indiferença monótona do público em matérias de gosto e de escolha, empobrecida pela incapacidade de avaliar tanto ética como culturalmente todos os acontecimentos. Curiosamente, o mercado cultural da era da globalização parece beneficiar da diversidade e da aceleração do ritmo das modas. A banalização e a uniformização do gosto não se verificaram como seria de esperar, na perda insanável dos critérios de valoração, nem na adopção de fórmulas artísticas medianamente previstas. O mundo entretanto criado pelos novos agentes culturais, destituídos de sentido ético e remetidos exclusivamente aos aspectos comerciais dos seus negócios, trouxe consigo um turbilhão de produtos, muitas vezes opostos entre si, causando distorções e confusões na sua compreensão e obrigando-nos a encontrar novas estratégias de sobrevivência e de resistência à vulgaridade das suas manifestações.

Confrontado com todas estas questões, o Guimarães Jazz foi autonomizando a sua organização: conhece, contacta directamente os músicos e os seus agentes, defendendo sempre os seus valores artísticos. Esta independência só foi possível pela adopção de um espírito rizomático de liberdade, baseado em formas de actuação próprias de organismos independentes. O festival transformou-se num corpo de enquadramento misto, integrado num estatuto de carácter institucional, assente em códigos artísticos relativamente estabilizados. Este modelo de organização configura uma aposta arriscada porque se sustenta no equilíbrio precário, de uma fronteira instável e indefinida entre institucional e não-institucional (espaços independentes e/ou alternativos). Assim, evoluiu através de uma fórmula progressiva de afirmação, de uma certa dose de marginalidade em relação ao institucional, formalizada numa estrutura mais leve e flexível nas interacções dos parceiros que compõem o seu núcleo organizativo. A recusa de lógicas hierárquico-funcionais fez prevalecer um espírito de equipa, uma solidariedade e polivalência nas funções, permitindo ao festival abrir-se a uma participação mais dinâmica na qual o mediador e o público estão em plano de igualdade. Foi portanto, esta nova realidade que provocou a emergência deste acontecimento enquanto espaço autónomo, lugar de intervenção livre, incentivador de novas abordagens e de novas participações adaptadas à contemporaneidade, à sua efemeridade, mobilidade e constante adequação ao tempo acelerado e vertiginoso do mundo actual. As transformações observadas nos fenómenos culturais e sociais mais recentes, obrigam-nos a repensar a definição dos paradigmas de actuação do festival, levando-nos a explorar outros regimes de criação, mediação e recepção da arte, mais ajustados à realidade.






                           NOTAS FINAIS:
                       UMA ADVERTÊNCIA



Quem concebe o programa de um festival tem de exprimir as raízes de um gosto simultaneamente emotivo, individual e colectivo. Quando se reflecte sobre uma escolha a partir das origens culturais, racionaliza-se em privado e actua-se como indivíduo não totalmente livre porque se encontra ética e subjectivamente limitado por uma dimensão universal da razão. O privado é o espaço das idiossincrasias, um lugar onde reinam a criatividade e a imaginação selvagens e onde as considerações morais se encontram suspensas; o público é o espaço da interacção social, onde temos de obedecer a regras de convivência, de modo a não ferirmos os outros – o privado é um espaço de ironia, uma oportunidade para agirmos criticamente sobre nós, enquanto o público é um espaço de solidariedade, uma porta aberta à tolerância e à relação com os outros.  

Quando se esquece esta dualidade e se elabora um programa de festival, representando quem escolhe os concertos e o gosto de cada um, provoca-se uma espécie de curto-circuito na relação entre a componente pública e a privada do acontecimento. Deste modo, podemos ver o festival como um momento único de mediação entre as pessoas e um local onde se estabelece todo o tipo de raciocínios e de avaliações sobre o que se escuta. Falhamos as metas de construção se formos incapazes de equilibrar estes dois planos de actuação porque impedimos a afirmação da vontade de uma universalidade emancipatória a viver em cada um de nós, nos limites impostos pela identidade e pela posição, individualmente consideradas no interior da ordem social.

As histórias, assim como o conhecimento, a leitura e as audições, são tópicos intermináveis de fundamentação e de aperfeiçoamento das ideias. São pontos constantes de reflexão que compõem uma série incessante de interrogações, descobertas e desafios. Em cada escolha está contido um enorme conjunto de rejeições. Os programas do Guimarães Jazz incluem muitos actos de selecção e cada opção inicia uma narrativa identificadora, susceptível de conferir um perfil estético a esta imensa experiência artística, desenvolvida e em curso desde o seu começo.