AUTOR: IVO MARTINS
EDIÇÃO: Revista Op. #27 DATA: Maio de 2009
BUSCA PERMANENTE
Conhecemos George Steiner através da sua leitura. Os seus livros são sínteses que funcionam como pequenos
paradigmas vivenciais, compostos por acontecimentos seguidos de um conjunto de pensamentos a propósito de
cada um deles. A partir de uma série de ocorrências que nos surgem como encontros ocasionais do autor com
aquilo que o rodeia, ele vai construindo sucessivas criticas que se estruturam em ideias de uma forma muito
natural. A partir deste exercício faz-se uma escrita apoiada numa linguagem simplificada e extremamente
prática. A obra de George Steiner parece que, com o tempo, se vai tornando em algo despojado de elementos
teóricos para se transformar num apanhado de visões mínimas, singulares e humanas sobre um mundo que não
propicia pontos de reflexão seguros, nem tomadas de vista interessantes ou abrangentes, numa sociedade cada
vez mais irregular e inconstante.
“As ciências da vida são um assunto demasiado sério para ser deixado apenas aos cientistas”. Num panorama
cada vez mais destruído pela velocidade das informações e pela violência do choque de muitos momentos
instantâneos que nos são comunicados em tempo real para todas as partes do planeta, resta-nos muito pouco
tempo de elaboração de respostas. As ciências preocupam-se em resolver problemas parciais, questões centradas
em aspectos que dificilmente adquirem uma perspectiva alargada sobre o mundo, não conseguindo ir além do
reduzido espaço onde persistem como soluções. Por isso deparamo-nos com uma situação estranha, na qual
“somos hóspedes da vida, lançados nela independentemente da nossa inteligência e da nossa vontade. Hoje
estamos a tomar sombriamente consciência de que somos hóspedes de um planeta vandalizado”.
Temos cada vez menos tempo para as grandes mudanças e que esse tempo está a ser constantemente destruído
por um sistema que faz da comunicação em massa uma justificação consensual para poder tomar todos os tipos
de medidas que nada resolvem. Existe uma espécie de venda de opinião, uma acumulação exagerada de
comentários que desejam avidamente convencer que se transmitem nos vários meios de comunicação social. O
monolitismo das mensagens é por demais evidente. Há um sistema que se serve de um aparelho de tele-vendas, a
funcionar em regime diário e omnipresente e que nada mais faz do que adormecer o espaço crítico planetário
num simulacro de amplo debate e numa ideia de abrangente discussão. Tudo está a ser trabalhado para que se
perpetuem processos de continuidade sobre o instituído e sobre as alterações suscitadas que nos são mais
impostas do que desejadas. Desde há algum tempo que perdemos a capacidade de nos distanciar com nossa
reflexão da possibilidade de sentir o futuro. George Steiner parece que se insulta a si próprio quando percebe a
falta de tempo e de futuro. O tempo actual atira tudo para a vala comum dos actos mundanos, actos efémeros e
perdidos que se exibem na vulgaridade de uma história sem conteúdo. Quando ele refere que “o meu
comportamento, os meus escritos, o meu ensino foram os de alguém que Aristóteles caracterizaria como um
«idiota», o homem que fica em casa, que se recusa a intervir nos assuntos e responsabilidades da cidade”, está a
concluir quanto nos afastamos da verdadeira intervenção cívica na cidade/planeta onde vivemos. Depois, ao
acrescentar que “embora conceba que essa recusa, esse instalar-se numa situação privada potencia e, em certo
sentido, justifica o acesso ao governo, aos cargos públicos, da figura do déspota, do corrupto e do medíocre”, não
parece haver muito para fazer uma vez que optando por «ficar em casa» o homem, ou mais recentemente
também a mulher, que se recusa a qualquer participação no processo politico é essencialmente um voyeur.
O homem está a refazer a realidade herdada de um mundo biológico e total numa performance das aparências,
está a transformar em espectáculo desportivo as forças que, na realidade, moldam boa parte da sua própria
existência. “Estritamente falando só o eremita adquiriu o direito a um desprendimento comparável”. Sentimos
uma perda enorme de sentido quando nos deixamos cercar por uma passividade que o sistema convida, de forma
ostensiva, ao impingir diariamente todas as explicações e respectivas soluções. Sair deste mecanismo regulador é
cada vez mais perigoso e correm-se riscos desnecessários sobre a importância de descobrir outras formas de
pensar sobre os problemas. O processo de assédio comunicativo generalizado da nossa sociedade contemporânea
inclui uma proposta razoável de se evitarem riscos e modelos de pensamento diferentes das veiculadas pelo
aparelho do sistema. Convidam-se adesões rápidas e colectivizantes, na formação de grandes públicos, sobre
assuntos que não se podem recusar porque a sua negação daria origem à falta de garantia da sua liberdade e da
falta de imunidade da sua recusa. “Tanto a democracia como a tirania, cada uma pelos seus motivos próprios
consentem a passividade”.
Muitas vezes a história é uma produção da estupidez humana, uma consequência da alienação colectiva, da
idiotice e da loucura. Os acontecimentos são promovidos por indivíduos que não sabem o que fazem e que nem
sequer querem pensar na possibilidade de virem a saber, porque isso lhe provoca mal-estar e um impulso para a
violência. Observa-se como as pessoas se aproximam do abismo, como elas montam as suas armadilhas e como
elas próprias vão cair nos artefactos que construíram. Todos dão o laço a corda com que se vão enforcar e como
verificam repetida e cautelosamente os nós e os laços para sentirem se são suficientemente fortes para aguentar o
seu peso.
Por isso a busca permanente aparece com uma espécie de nomadismo interior, um descomprometimento que nos
permite encontrar um espaço aberto e livre de actuação, para aí podermos organizar uma construção sem
limites, sem as fronteiras horríveis da vida colectiva que cada vez mais produz violência e destruição.
PALAVRAS RECENTES
Os mais recentes livros de George Steiner continuam a apresentar uma obra que se movimenta entre distintas
formas de olhar e compreender o mundo. “Os livros que não escrevi” constitui uma justificação pública do autor
que tenta explicar um silêncio por si aberto sobre uma vontade de escrever que não se concretizou. Os temas
abordados são diversos e vão desde o sionismo ao sexo expresso em várias línguas, até ao amor pelos animais, ao
exílio e à teologia do vazio. Este livro deseja corrigir uma impossibilidade de comunicar, uma falha sobre a qual
Steiner tinha planeado agir e não o fez.
Na sua obra habituamo-nos a ser confrontados com as mais inesperadas relações entre assuntos aparentemente
incompatíveis, em ligações difíceis que unem espaços de análise tão díspares e aparentemente tão longínquos.
Estas ligações surgem-nos habilmente interligadas, desenvolvidas sobre problemas da nossa actualidade,
apresentados de um modo desafiador e premente. Existe em George Steiner um profundo conhecimento
generalista sobre todas as formas passadas de sentir o mundo e uma maturidade de análise que persiste de uma
maneira simples e bela, por parte de alguém que iniciou uma tarefa de sobrevivência numa sociedade cada vez
mais transformada. Manifestando um evidente desprezo por tudo o que se apresenta banal e particularmente
repetitivo, as experiências ficcionais do autor editadas nos livros “O Transporte para San Cristobal de A. H.” e
“Provas e Três Parábolas” seguem a linha critica habitual, embora pareçam contrariar a tendência inicialmente
revelada para o ensaio e para um certo tipo de pensamento que se desenvolve sobre factos existenciais e
filosóficos do quotidiano.
Assiste-se a uma quebra alarmante de todos os níveis de cultura e literacia, acompanhada pela produção diária
de subclasses de semi-analfabetos cujos vocabulários e competências gramaticais reduzem as suas sensibilidades
a aspirações recreativas de uma vulgaridade desoladora. Numa sociedade que vive obcecada pela tentativa de
corrigir a injustiça social em acções políticas violentas e que recentemente tem enveredado por um caminho
estranho e monolítico de nivelamento por baixo, Steiner convida à rejeição de todos os meios de comunicação
social, não só por promoverem impunemente todas as formas de mediocridade, mas por incentivarem a
corrupção ao formatarem o populismo como prática utilitarista de uma vida pragmática e bem sucedida. Toda a
massificação comunicativa, traduzida nos desvios causados pelas inúmeras inversões de valores, pode estabelecer
perigosas alianças que atrofiam o sentido crítico e marginalizam a eminência intelectual como exemplo de uma
vida verdadeira do espírito.
Com George Steiner tudo parece culminar numa vida que se dirige inteiramente para a escrita e na qual todas as
diminuições de valores estão manifestamente expostas nos seus livros. O autor denuncia, protesta e apela contra
todas as formas de “sujeição penitencial aos direitos populares que tornam ilegítimo o reconhecimento assente
em barreiras alicerçadas em profundidade que podem separar a maioria dos homens e das mulheres das vias de
acesso aos lugares mais altos, àquilo a que Yeats chamava «monumentos de um espírito que não envelhece»”.
Os seus livros continuam a ser conjuntos sábios de palavras que exprimem avisos sérios sobre a decadência e
sobre a dissolução das sociedades contemporâneas. A deslocação, o desenraizamento e o abandono exprimem
um clima generalizado de desastre e descrédito que tornam a realidade mais evidente. Tudo o que nos é
permitido ler nas predições disponíveis da sua obra, são antevisões sobre uma eloquente alienação, uma
realidade veiculada nas formas comerciais e oportunistas de compra e venda para uma felicidade como momento
entediante. As maneiras modestas e humildes dos sentimentos de culpa são causadas pelos falhanços sociais que
se cruzam com a ilusão de uma terra desprovida de angústia, onde cada um fica suspenso no transtorno ou no
desastre reconvertido em processo de salvação. Faltam-nos valores e finalidades superiores que incentivem
descobertas de um espaço mais íntimo, contrariando o momento da grande exposição mediática e exterior, cada
vez mais desprovido de sentido nas suas exibições rotineiras. O que deixamos para trás é uma espécie de silêncio,
um ecrã de clichés acompanhado de muitas falhas de comunicação. A seguir à subdivisão da palavra vai
desenvolver-se uma nova matriz transmissora composta por pequenas frases incoerentes que se aparentam com
uma língua desconhecida, enquanto todos continuamos a saber que “O caminho em direcção à linguagem é o
caminho mais longo susceptível de ser pensado”.
George Steiner, Os livros que não escrevi, Lisboa, Gradiva, 2008.
George Steiner, O Transporte para San Cristobal de A. H, Lisboa, Gradiva, 2008.
George Steiner, Provas e Três Parábolas, Lisboa, Gradiva, 2008.