AUTOR: IVO MARTINS
EDIÇÃO: Revista Op. #26 DATA: Julho de 2008
A arte não tem em vista alcançar na sua concretização uma verdade factual e mesmo com o advento de
equipamentos poderosamente tecnológicos de captação da realidade, nunca se conseguirá apreender nem
comunicar de forma eficaz a imensa carga subjectiva que acompanha todas as imagens. O lado imaterial desta
realidade não poderá jamais ser transmitido pelo incremento do grau de veracidade das imagens pintadas,
desenhadas, fotografadas, filmadas ou dos inúmeros objectos construídos e esculpidos. O âmbito das nossas
explicações levariam a situar a pintura e o desenho reunidos nesta exposição, como momentos de fixação de uma
realidade que admite não poder dar conta de todas as solicitações artísticas que a imaginação requer no seu
impulso de descobrir novas formas de superação e de exaltação do real. A pintura e o desenho de João Queiroz
inventam uma realidade dotada de uma dimensão estética própria, mais descomprometida e mais livre das
referências de onde provêm os elementos naturais que a compõem, dando origem a uma quase invisibilidade
sobre o espaço que aparentemente deseja captar.
No confronto directo entre aquilo que identificamos como real e aquilo que nos aparece como irreal, e mais
recentemente como virtual, há na nossa mediação entre estes três enormes blocos sensíveis de percepcionar uma
simbologia autocentrada na pintura e no desenho, uma totalidade difícil de dissociar nas suas partes reais e não
reais; verdadeiras e falsas. Esta exposição apresenta um conjunto de pinturas e desenhos sobre papel que têm
como tema central as paisagens, espaços construídos de elementos vegetais, geológicos, entre outros, desprovidos
de uma relação mais evidente entre si. Esses elementos são pintados um a um, desligados de uma continuidade
formal que seria de esperar das geografias terrenas, compondo o seu conjunto uma imagem com aproximações à
natureza, simultaneamente suspensa e dotada de uma certa qualidade atmosférica, que a envolve e a transporta
do solo para o centro do quadro. Enquanto nas pinturas as composições são trabalhadas com recurso a métodos
tradicionais, nos desenhos João Queiroz introduz a linha através de sulcos gravados sobre cera, previamente
espalhada na superfície do papel. Nas pinturas existe uma procura de efeitos cromáticos pela conjugação de
cores e de formas que nos induzem a espaços abertos, susceptíveis de neles se inscreverem ambientes naturais
facilmente reconhecíveis; nos desenhos, uma qualidade monocromática realça um conjunto de procedimentos
sobre a superfície do papel, fornecendo uma dimensão mais matérica a cada uma das obras.
A pintura surge-nos como um processo de captar a deformação da realidade ocasional e sucessivamente
aleatória, algo que aumenta as possibilidades de libertarmos a nossa imaginação para podermos agir
criativamente sobre aquilo que observamos. Desta forma, podemos considerar-nos uma parte actuante da
realidade veiculada que chega até nós através das sugestões visuais que cada obra nos transmite. Somos os
observadores de uma superfície que não podemos abandonar e que somente conseguimos olhar com coerência
quando nos localizamos no lado de fora, sentindo-a numa perspectiva que nos é exterior. São paisagens que
pedem para ser habitadas, logo devemos olha-las como um produto da imaginação pura, que não é artificioso na
medida em que todos os elementos que apresenta são passíveis de existirem individualmente. Estamos deste
modo eternamente do lado de fora de cada obra e somos simultaneamente uma parcela integrante, que goza do
privilégio de percepcionar as suas formas soberbas. Muitas vezes confundimos as nossas apreensões com as
configurações e os espectros representados por João Queiroz, que parecem mais insinuados do que construídos e,
por isso mesmo, inacabados na sua maior parte, deixando-nos em excelentes situações para os interpretar. Ao
confrontarmos as pinturas com os desenhos e as formas utilizadas em cada um deles, podemos eventualmente
verificar que existe uma relação muito íntima entre as duas abordagens: a pintura e o desenho surgem como
contraponto um do outro, o verso e o seu reverso. Enquanto no caso das pinturas as formas nascem da
conjugação das linhas estabelecidas pelas cores e pelos movimentos das uniões entre elas, nos desenhos, verifica-
se apenas o aparecimento de sucessivos riscos ou linhas gravadas na cera, não existindo uma preocupação de se
estabelecer aí qualquer tipo de jogo cromático ou combinação de cores. Se através de um processo de projecção
numa tela pudéssemos sobrepor os desenhos e as pinturas, obteríamos talvez uma terceira dimensão que nos era
dada por uma mistura das cores de uns com os traços e limites de outros. O desenho pode então considerar-se
como uma espécie de esqueleto ou exploração linear que depois é composta a outro nível mais pictórico através
da utilização da cor.
Esta exposição propõe um conjunto de imagens em fractura com o princípio da factualidade, que reconhece a
necessidade da morte como a última das ordens da estética da representação. A ficção contida nos trabalhos
expostos irrompe desses espaços tão irreais e contamina tudo o que se encontra à sua volta, influenciando e
interferindo com o que nos rodeia. Nada ficou diferente, nem ficou susceptível de ser detectado a partir das
paisagens que se pretendem fixar e a partir das quais aparentemente se basearam todas as experiências vividas
pelo artista e por todos aqueles que as observam. Ao pensar estamos a estabelecer monólogos intensos com o que
vamos vendo, mediando concordâncias e discordâncias; estamos a relativizar e a aceitar as perdas nas
comunicações e na transmissão das intuições que executamos, reconhecendo diferenças entre o verso e o reverso,
entre as palavras e os factos, entre artifícios plásticos e a realidade das coisas que são os elementos fundamentais
que sustentam a nossa vida. Foi fácil visionar o futuro imaginando um dia em que a tecnologia poderia libertar a
humanidade de todo o seu peso existencial, mas a realidade presente está cada vez mais inundada de informação
e este sonho aparentemente libertário, tem vindo a tornar-se num imenso pesadelo. Alguma coisa falhou neste
processo de captar o real e a partir daí serem imaginadas novas formas futuras. Apesar de tudo, julgamos que
todas formas imaginosas ligadas à arte são soluções bem mais benignas, nas suas consequências, do que os
problemas da liberdade anunciados pelo desenvolvimento tecnológico.