JAZZ COMO


Jazz como Liberdade

Pharoah Sanders Quartet

Verificaram-se algumas modificações de sentido no jazz. Um interessante método de compreensão, para entendermos estes movimentos, seria analisar as formas atingidas como processo de libertação, no qual se podem detectar muitas das aventuras, ambiguidades e ironias, que aconteceram no decorrer da sua história. Há neste percurso, que se determina pela vontade de mudança, uma ideia de auto-transformação e transformação sobre o mundo cercado pelo medo, pela desorientação e pela desintegração. O jazz expressa uma vida de paradoxo e discordância, uma situação difícil de sobrevivência que se tenta solucionar constantemente, estabelecendo diferentes formas de abordagem e de concepção. O carácter político e sociológico desta manifestação artística sobrepõe-se a conceitos muitas vezes explorados no aproveitamento das potencialidades do moderno. O desejo de mudança identifica-se através de uma visão irónica que não esgota a estratégia de redefinição do instituído.

Procura-se uma passagem entre duas ordens heterogéneas, a da certeza absoluta e a do juramento ou acto de fé. A apreensão do jazz exige um tempo para que este seja submetido ao julgamento da história. É através dos momentos de reflexão e de selecção que se estabelece um regime de intemporalidade estabilizado num conceito estético universal. Não existe estabilidade sem fé, sem crença, sem um sentido superior que sobreviva ao presente, guardando na memória, até posterior utilização, muitos dos elementos caracterizadores e identificativos que anteciparam e ajudaram a determinar novas elaborações para esta música. Anseia-se por uma regularidade mínima capaz de fornecer um lastro seguro de avaliação, cuja ferramenta cronológica de determinação espacial, nunca saberemos utilizar de forma eficaz. Através do tempo e a sua sucessão no espaço, tenta-se solucionar os vazios e dificuldades de entendimento contidos nos projectos que vamos encontrando. Caminhamos neste regime de incerteza e de alteridade, obrigados a agir como se soubéssemos alguma coisa de definitivo sobre a segurança dos conceitos e a fixação das ideias. Se as simbologias construídas são apoios importantes, temos de reconhecer, também, que as definições encontradas não solucionam absolutamente nada. O jazz fez um percurso de abstracção, subjectivou-se, encontrando uma forma de superação libertadora tal como muitas outras actividades artísticas. Tomou decisões sobre o seu espaço, que ao longo do seu percurso não surgiram nem depressa, nem facilmente. Teve a possibilidade de realizar uma autoavaliação, um julgamento correcto sobre si, criando um estado de equilíbrio entre o que se decidiu e as informações internas e externas acumuladas no tempo, sabendo firmar-se no resultado, apoiado noutras ideias mais racionais e mais seguras sobre a sua evolução e progresso. Não há jazz sem respeito pela singularidade ou pelo pequeno mundo contingente onde tudo se determina e não há arte sem uma comunidade de pessoas interessadas em percepcionar estes acontecimentos. Somos um conjunto de sujeitos identificáveis, representáveis e iguais entre si, com a arte a acontecer e a suceder no nosso meio. Por razões que desconhecemos, somos capazes de ser suficientemente livres para agirmos de maneira mais estável do que a natureza, conseguindo atingir um prazer que se ocasiona na simetria entre o objecto e o seu apreciador. Sem a reciprocidade de vontade situada no espaço do ouvinte e do músico criador, não haveria uma constância libertária que nos permitiria assimilar e avaliar o que escutamos. No jazz esta relação é muito mais evidente pela fugacidade dos movimentos e pelo substrato do efémero. Revela-se na improvisação uma abordagem que estrutura um espaço criativo em mudança, no qual se pode tomar a palavra pela palavra do outro, tornando-a letra na sua própria liberdade. Estas características fazem com que o jazz não seja nunca uma música estrangeira. Cada uma das suas experiências aparece como ensaio do possível, numa fronteira sem limites. Os seus conteúdos não nos são totalmente revelados e o seu legado continua por decifrar. Esta situação obriga-nos a ouvi-lo pela necessidade de encontrar o que é preciso. Há no seu centro a música e uma contradição performativa, exposta na memória viva das suas linguagens que permanecem próximas, podendo sempre serem comparadas aos seus acontecimentos mais recentes. O jazz trabalhou estas realidades invertendo sentidos, utilizando paródias transformadas em coisas sérias ou na seriedade refeita em ironia. Não se sabe quem começou este movimento circular, no imenso desequilíbrio libertino que a sua sonoridade haveria de causar. Foram sucessivos os solavancos perturbadores desta estabilidade, da simetria, da segurança e do canónico que era tido como algo de adquirido e fixado, dentro de uma sociedade que olhava a música e a arte com desconfiança, ao mesmo tempo que vivia momentos difíceis os quais, curiosamente, estão a ser reavivados nos nossos dias, numa actualidade preocupante.



Jazz como Amizade
Ravi Coltrane Quartet

O jazz como processo criativo tem sabido encontrar meios de sobrevivência suficientes para fixar os seus autores e comprometer cada um dos seus ouvintes. Além das vontades de agregação nele inscritas, parece que se estabeleceu, através da sua prática, uma fórmula de amizade instantânea. Esta música que não se limitou simplesmente a existir, fez-se ouvir e alimentou uma comunidade de crentes, atraídos pelos paradoxos reconhecidos de uma fidelidade criadora. Não pediu nada a ninguém, apresentou-se de forma simples, como esforço de reencontrar a visão perdida de um espírito religioso passado, retomado no instante em que se descobriu a força de uma nova sabedoria atractiva mais laica e mais neutra. Esta dedicação solidária passa pela importância de aceitarmos as suas formas de resolução musical que, sendo contraditórias e opostas às ideias mais tradicionais da história, foram apresentadas pelas visões de estruturação musical que pretendiam salvaguardar a perturbante ligação ao lado mais caótico e liberto do ser humano. A improvisação manifesta uma propensão para se aceitar alguma coisa que pode resultar do seu contrário, como uma verdade surgida do erro, contradizendo as suas origens.

Sabe-se que o uso da palavra arruína os seus significados; as causas dão origem a efeitos que lhes são superiores, impedindo assim o acesso às verdades insondáveis nelas contidas. O jazz, não sendo palavra, também pode ser corrompido pelo falar que se degrada na obstinação dos impulsos comunicativos. É uma música solitária que se desagrega, que se isola numa solidariedade saudavelmente individualista. A busca de soluções explicativas para as suas formas, criam mal entendidos, separações e hostilidades. Estas questões lembram a velha e sábia necessidade de renuncia ao gosto, de evitarmos estar unidos por acordos alargados de sensibilidade, porque assim vivemos no imenso mundo subjectivo da criatividade, num estado de segredo no qual se aprende estando-se mais separado do que junto. Aqueles que querem continuar a estar unidos ao grande número avassalador do contrato que os centrifuga, muito dificilmente poderão ter espaço para realizar experiências de criatividade artística.

O jazz apela a que se pense para além da noção do que é aceite e da instituição. Supõe a existência de uma desproporção, a ruptura na reciprocidade entre todos os interventores, desequilibrando relações e refazendo-se em energias. Desta aparente discordância nascem coisas diferentes que se sentem na singularidade da autonomia alcançada, na independência dos modos de sentir e na auto-suficiência da capacidade de criticar culturalmente. Estes aspectos estimulam-nos a redimensionar prolongamentos imaginativos que penetram em muitos outros terrenos musicais, retirando-lhes influências e adoptando estruturas semânticas que lhes são próprias, incorporando-as, de modo útil, no seu contexto. Há uma enorme capacidade de sobrevivência para criar ligações, estabelecer redes de interacções sobre um reconhecimento e uma projecção num duplo ideal; o outro de si mesmo; o mesmo de si melhorado. Tais práticas incitam ao aperfeiçoamento do mecanismo de sobrevivência que se vai consolidando através do sonho de imortalidade. Quando se está para além da morte só há uma luz – a luminosidade extática capaz de comunicar com esse futuro absoluto donde emana a fantasia, dois sentidos que coabitam no original único que se refaz em cópia multiplicável e vice-versa. Por isso é que a tradição parece estar sempre a aproximar-se do seu fim e, contudo, nunca ocorre o final absoluto que à partida se anuncia. O jazz verdadeiro é a sua própria imagem idealizada. Não há um lugar definitivo capaz de nos fornecer pontos permanentes de referência, passíveis de terminarem com esta volatilidade de géneros e tipos. Nem a harmonia nos serve de equilíbrio numa música que vive da exploração descarada dos limites que se distanciam perante a atonalidade das sensibilidades analíticas. Quanto mais se procura uma classificação terminal para o jazz, tanto mais os seus horizontes se distendem e distanciam, criando novos vazios ou amplos espaços de incompreensão. A mobilidade das territorialidades, as suas superfícies refeitas, provocam desejos de entendimento, tentativas de captar momentos de difícil apreensão que não fornecem certezas apaziguadoras. Por isso mesmo o jazz só pode projectar-se através de uma esperança para todos nós, uma união que, curiosamente, se situa nele mesmo, mas que também é projectada para além da sua própria vida, numa amizade benevolente.



Jazz como Objecto
Jan Garbarek Group

No jazz detectamos um dilema profundo, um esforço de regresso à velha ideia de se alcançarem ligações com a realidade através do sentir. O valor estético assente em ideais de harmonia, de regularidade e de unidade orgânica, parece menosprezar-se e suspender-se. O momento presente revela-se no amplo processo de interacção que já não permite aplicar os tradicionais conceitos de mediação e de explicação, baseados na contradição dialéctica e na exploração das oposições em termos simetricamente polares. Na aparente repetição dos estilos que caracterizam a música improvisada actual, estabelece-se uma forma de desequilíbrio detectável na banalização generalizada da arte, uma situação manifestada em inúmeras realizações. Há uma falta de fé, uma retirada da crença no simplismo e na ingenuidade das formas escolhidas. O modo como o jazz se exprime no presente, faz-nos perceber que ninguém acredita na defesa de uma transcendência artística para a arte em geral e em particular para esta música. Algumas obras são arte e algumas pessoas são artistas, mas quaisquer outros tipos de problemas ontológicos que daqui possam advir são sempre sentidos de modo supérfluo.

O jazz sofre todas as incapacidades e situações de mudança inerentes a um processo de reificação do artístico que transforma a arte num objecto tangível, sujeito a uma dupla simplificação. Uma ocorrência como consequência de um processo geral de desmistificação e secularização das manifestações artísticas, envolvendo todas as actividades simbólicas nos seus desvios fetichistas. A sua representação depende de factores de comunicabilidade imediata e directa e não de uma actividade criadora derivada do sublime na sua projecção criativa, através de uma identidade que a sustém e a verifica. Tudo se transforma em mecanismo de troca de mercadorias; quanto mais o princípio do valor de troca destrói a própria possibilidade do valor de uso, tanto mais este valor se disfarça como objecto de fruição. A indústria cultural substitui o efeito pela causa, mantendo uma atitude passiva de adoração perante o produto cultural que se aproxima do conceito de fetiche aplicado aos bens de consumo. A circulação dos produtos está impregnada de uma clara objectividade utilitária que não suscita quaisquer dúvidas sobre estes valores, os quais são amparados por toda a publicidade que trata intensamente estes momentos como se fossem objectos. A sua receptividade pelo público é um acontecimento sem relevância, um momento acessório, um acontecimento que sucede no meio de um processo de concorrência entre vários instrumentos de comunicação de massas, informação e moda. Ao aproximar-se das camadas cada vez mais amplas do público e dos indivíduos pouco esclarecidos e incapazes de perceberem a diferença entre a dimensão real e simbólica, as obras “coisificam-se”, passando a ser objectos estruturados numa dimensão puramente comercial. As obras são desviadas por atenções e cuidados na elaboração das manobras e estratégias propiciadoras da sua rápida circulação e atiram para noções acessórias e desvalorizadas as suas dimensões espirituais e transcendentes.

A arte dissolve-se na moda que embota e apaga a força do real, dissolve a sua radicalidade, normaliza e homogeneíza todas as coisas num espectáculo generalizado, procurando a novidade e o efeito – o que implica a rápida usura e obsolescência das obras que têm de ser continuamente substituídas por outras dotadas de maior força de impacto e de características capazes de despertar novas atenções. A comunicação também exerce uma forte influência na actividade artística, porque a publicidade e a informação desenvolvem meios asfixiantes e insípidos de comunicação, utilizando caminhos que podem parecer sedutores para os consumidores. Descobrir o jazz como uma realidade na sua singularidade irredutível, integrando-o num processo, em que a elaboração de significados como valor acrescentado relativamente ao já conhecido, através de uma projecção imaginária, seria uma das suas principais finalidades. Esta música deveria esforçar-se por conseguir indicar uma outra via de acesso para uma ordem simbólica diferente, que melhor visualizasse o seu real.



Jazz como Sentir
Orrin Evans Quintet

Há estranhas coincidências entre as formas de análise aplicadas ao jazz e algumas características gerais na teoria da história de arte. A experiência da surpresa é um dos elementos do sentir estético que desde a antiguidade grega tem determinado muitas das abordagens críticas sobre a arte, desenvolvidas a partir da oposição entre dois modos de conceber a beleza. Tentando estabelecer um método para interpretar o mundo antigo, baseado na oposição entre forma e evento, verifica-se que a forma está associada à apreciação das obras de arte, enquanto o evento está mais orientado para a exploração do efeito surpresa. Assim, será interessante reflectirmos sobre estes elementos explicativos da arte e sobre o seu sentir, de modo que se consiga encontrar neles uma relação entre as formas de improvisação encontradas na música e as implicações das manifestações artísticas que este tipo de experiências baseadas no aleatório nos podem fornecer.

Não basta criar um evento. Para que possa existir um evento é necessário que se sinta esse acontecer como um acontecer para cada indivíduo. Portanto, nem tudo o que acontece é evento. Só aquilo que se apresenta como algo que consegue atingir um determinado alvo no interior de cada pessoa pode ser considerado como tal. Está também implícito no conceito de evento, uma ideia de sucesso resultante da confiança na verdade histórica, explicada através de um instante de graça, revelado na interpretação da experiência da vitória. O atingir dessa sensação sublime na experimentação artística, partindo da actividade criativa que se universaliza através da sua grandeza, é um sinal de que não se pode dar aos eventos uma explicação racional, porque eles surgem de uma oscilação entre o acaso e a fortuna como causas não manifestas do raciocínio humano. Se atrás tudo parecia evidente e racional, agora começamos a ter de considerar uma série de novos elementos mais inseguros que actuam de modo diverso, como se pudessem fornecer explicações sobre o que é ser humano, possuir certas características físicas, ter nascido num determinado ambiente ou como se nos tivesse acontecido certo tipo de experiências. A palavra “acaso” inscreve muitas implicações filosóficas que nalgumas situações podem ser traduzidas convenientemente por “sorte”. Verifica-se o aparecimento de um novo grau de indeterminação, localizado ao nível do aleatório, que passará também a recair sobre o evento, no momento em que cada pessoa, em vez de ficar prisioneira da oposição entre interior e exterior, entre subjectividade e mundo, encontra uma solução construtiva que lhe permite colocar-se, de forma positiva, num processo de actuação para além dela. Sem este exercício não existe evento e não há acontecimento sem repetição porque tudo o que se impõe como melhor para cada pessoa, deve ser repetido, transformado, elaborado naquilo que se deseja subjectivamente. Desta ideia de evento nasce um conceito de arte como exercício individual.

Certos pensamentos sobre a arte manifestam uma forma de olhar a obra de modo diferente, relativamente à sua forma. Esta apenas exige do seu público uma contemplação, uma passividade que se fecha sobre o indivíduo. O que se passa é que a obra, nesta perspectiva contemplativa, adquire uma nova dimensão. O seu exercício, o momento processual que leva à criação manifesta no cuidado supremo com a sua expressão, na busca de algo extremamente refinado, desvia o acto de sentir para um novo contexto verificado num singular entrelaçamento da contemplação e da acção, separando todos os actos preparatórios do seu resultado prático e final – a obra.

O jazz pode também ser olhado através de todos estes acontecimentos até ao seu último momento, naquilo que se ouve de maneira mais actuante e vitalista. Percepcionamos a obra como se nela houvesse uma necessidade de repetição compulsiva, exprimida num grau de total insatisfação que se refaz na permanente tentativa de superar esse estado. Na forma de angústia sobre o já realizado, determinada nos sucessivos processos de improvisação que o músico executa, há uma actuação sobre a sorte, o momento no qual se joga e se arrisca, na tentativa de aprisionar o tempo real na obra do acontecer criativo. Fazer coincidir no acto que se recusa a não ser efémero, com esses dois elementos, o evento e a forma nas suas dimensões estéticas, é a concretização da arte como sentir.



Jazz como Profanação
John Scotfield 'Real Jazz' Trio featuring Steve Swallow and Bill Stewart

O jazz pode ser olhado como um acto profanador. A palavra “profanar”, para a lei romana, significava retirar coisas da esfera do sagrado e da religião, atribuindo-lhes um uso que não pertencia aos deuses. Assim, consagrar era um termo que simbolizava a retirada das coisas do direito humano para uma reserva particular que dizia exclusivamente respeito aos assuntos dos deuses; profanar designava, por oposição, restituí-las à livre utilização dos homens. O jazz pode também enquadrar-se neste movimento de dessacralização. Os seus primeiros tempos de existência foram vistos como actos sacrílegos, expressos numa atitude perturbadora que violava e transgredia a indisponibilidade de certos e determinados bens que pertenciam ao uso exclusivo do divino. O acesso à música estava vedado a um povo escravo porque era sentido como acto subversivo de entretenimento e divertimento não autorizado. É interessante pensarmos que as suas primeiras manifestações surgem possuídas de uma forte carga religiosa, situação que talvez pretendesse minorar o excesso do sacrilégio a ele implícito. O lado profano foi-se manifestando gradualmente através da prática que exprimia contextos marginais e ilegítimos. As coisas foram sendo libertadas dos nomes sagrados e foram devolvidas ao uso comum dos homens. Habilmente, os povos escravos conseguiram uniformizar diferentes culturas indígenas africanas dos locais donde provinham e, através desse processo de ligação religiosa, descobriram simultaneamente uma nova realidade social e política que passou a ser usada como dispositivo profano de identidade. O jazz adquiriu um substrato libertador o qual viria a accionar e a regulamentar essa separação. Ainda hoje, ele conserva rastos desse núcleo central genuinamente religioso. Como um elemento aglutinador que fomentou relações essenciais à determinação duma identidade referencial salvadora, esta música não deixou de existir como uma espécie de contágio profano – o som que desenfeitiça e restitui ao uso comum de todos os homens aquilo que o sagrado tinha separado e controlado pela necessidade de perpetuar o seu poder. Assim, o jazz foi-se desviando da esfera do sagrado, depois de ter sido reenviado para as vidas quotidianas de todos nós, através de formas populares de expressão. O sagrado participou num amplo processo de identificação e de unidade que, se não fosse deste modo, seria muito difícil de atingir.

O termo religião significa religare, naquilo que une o humano ao divino. As suas organizações foram usadas através de uma prática que se vai reproduzindo também de forma laica, alcançando uma identificação em massa para um povo escravo que vivia no interior de um país poderoso, onde a divisão racial era um elemento fundamental de estruturação produtiva. Esta passagem do sagrado ao profano é um jogo que despedaça a unidade do inicialmente estabelecido. Realiza-se um jogo de libertação de preconceitos e sociedades que, como a maior parte dos jogos conhecidos, derivam de antigas cerimónias sagradas, de rituais e de praticas divinatórias que pertenciam, outrora, à esfera religiosa, em sentido lato. Este jogo pode representar também a subversão que despedaça uma ligação entre mito e rito e que actua na desactivação de outra ligação sagrada, a que lhe dá origem. O jogo liberta e afasta os homens da esfera do sagrado mas não pretende abolir o seu uso. O homem moderno já não sabe jogar e esta situação é confirmada pela enorme quantidade de jogos que nos invadem, numa multiplicação vertiginosa de novos e velhos jogos. O espectáculo é também uma tentativa de retorno a uma ideia de jogo como momento subversivo. Curiosamente, podemos perceber o jazz como um acontecimento que pode ainda restabelecer rupturas entre o sagrado e o profano, criando novas possibilidades de subversão, ao estabelecer formas de continuarmos a participar nos velhos jogos da humanidade. Se o jazz conseguisse fazer o apelo a todas as formas de actuação que contrariam as regras sociais e religiosas, abrindo novas possibilidades para a recuperação dessa festa perdida, num regresso a um conceito renovado de sagrado e aos seus ritos mais propiciadores, assumiria de novo uma ruptura tão profana como a que deu início à sua aventura artística.



Jazz como Pensamento
Ahmad Jamal

O contexto em que se situam muitas das pessoas que acompanham o fenómeno artístico está convencido de que o jazz de hoje, como a arte em geral, pode prescindir da teoria. O papel do crítico está limitado à elaboração de uma crónica narrativa, através de um texto que expressa o amontoado de notícias e de descrições que por aí circulam, sem que exista a menor tentativa de se dar explicações sobre os problemas da música na sua inserção social, económica e política. Reconhecemos um tempo diferente, mas apesar disso, muitas das actividades escritas circunscrevem-se a uma perspectiva dramaticamente utilitária, seguindo ópticas de promoção publicista e comercial dos artistas que agradam, sem nunca intervir em assuntos subjectivos. As questões estéticas acompanham o desinteresse votado à ética numa sociedade pós-industrial mais atenta a vivências de ordem poética ou a outras mais relacionadas com a sua história. Esta ideia de afastamento, de desvio e de distanciamento do pensamento e da reflexão sobre as questões mais obscuras da criação e dos vários aspectos de ordem existencial nela contidas, manifesta-se na inconsistência das narrativas que nos surgem, através do discurso inconcludente de muitas das criticas que aparecem a partir da segunda metade dos anos oitenta. Há uma espécie de desvio geral sobre o que se vem fazendo e sobre o que se sente, detectando-se, de um modo latente, uma agressividade polémica que ocupa jovens músicos e críticos que preferem mergulhar as suas raízes reflexivas numa visão redutora sobre as obras, clamando razões de ordem prática. A incrementação destas tendências nas formas de arte mais recentes, a defesa de um jazz e de uma arte ultra naturalista, afastada de qualquer transcendência não apenas teórica, vai persistindo na antiga necessidade de negar, de transgredir e de agir de modo militante. No movimento contestatário e aparentemente irreverente a que assistimos, existem muitos casos nos quais se prescinde do trabalho de compreensão solitário e persistente sobre todo o processo de teorização imanente a todas as actividades artísticas. A volatilidade destes processos leva as acções para experiências de outro tipo, favorecendo o grupo e o seu carácter essencialmente activista.

A estética nasce da abordagem sobre aquilo que se assume como arte e na forma como esse momento superior da criação se reflecte no pensamento. Não poderá jamais existir nenhum nível de apuramento reflectivo se se fizer da escrita o simbolizar de um regime de afastamento das temáticas da teorização, optando-se por uma actividade relacionada com a luta e a concorrência ou com outros interesses mais utilitários. As movimentações actuais expressam que todas as ideias de estruturação do jazz não se podem centrar no extremismo das provocações nem na violência das transgressões porque estas formas têm cada vez menos significado no mundo presente, recebendo-se deste tipo de mensagens intempestivas uma evidente sensação de chatice, banalidade e “idiotia”. Sente-se que prevalece sobre o campo desta música uma espécie de orientação anti-teórica. Surgem alguns aspectos paradoxais e contraditórios nesta forma de actuação porque, apesar de existir um repúdio por tudo o que pode ter origem como reflexão estética, tal facto não evita que se continue a exprimir juízos de valor sobre os artistas ou sobre quem não quer desenvolver uma prática de análise assente neste tipo de pressupostos. Detectam-se nos conteúdos das elaborações produzidas muitas desvalorizações e depreciações ou rejeições que persistem sem fundamento ou causa, revelando-se totalmente epidérmicas. Quando se olha com mais atenção para este acontecimento, observa-se que a sua justificação não se encontra no facto de quem critica poder também reivindicar para si a liberdade do artista, mas, pelo contrário, pretende insistir na predominância de uma atitude diletante que exprime um juízo de gosto pessoal e privado. Afirma-se quase sempre o que se gosta ou o que não se gosta e não se consegue ir mais longe nesta relação entre duas posições limite.

Ao prestar-se atenção a estes movimentos que vêm sucedendo em força no jazz actual, pretende dar-se a entender que já não nos encontramos a coabitar no regime tradicional da vivência artística, no qual a obra de arte era caracterizada pela sua aura, isto é, pelo valor cultural que lhe era atribuído, um objecto único e duradouro que solicitava uma experiência estética, baseada numa relação de distância nos confrontos com o fruidor. Actualmente encontramo-nos dentro de um outro regime plenamente secularizado, vazio e desencantado, que se inaugurou com a reprodução técnica das obras de arte, o qual veio a conferir à arte um valor meramente expositivo, iniciando-se então, a partir daqui, uma relação de proximidade com o público, extremamente empobrecida de valores subjectivos que deveriam ser suscitados e apresentados nas muitas actividades artísticas com uma maior intensidade.



Jazz como Abstracção e Solidão
Charles Tolliver Big Band

Ouvimos muitas vezes dizer que para se compreender uma obra de arte é preciso conhecer o seu contexto histórico. Contra esse lugar comum de cunho eminentemente historicista será possível concluir que, ao resumir-se todo o contacto com a produção artística a esse tipo de abordagem, insiste-se na observação única e exclusiva do contexto histórico tal como ele é escrito, prejudicando a convivência com a arte, nas suas possibilidades de análise, nas suas potencialidades de compreensão e na detecção das suas influências constitutivas. No jazz passa-se o mesmo. Se se quiser compreender alguma coisa de relevante nesta música, é necessário realizar uma abstracção alargada nas suas considerações enciclopédicas e banais, arrancá-la do seu suceder temporal, no qual as actividades artísticas estão inicialmente inscritas. Esta necessidade formada pela vontade de apreensão do que nos rodeia é tão frágil e tão discutível que se pode inverter nas tomadas de vista até então estabelecidas a partir do peso histórico dos acontecimentos, afirmando-se que será a própria arte a actividade a fornecer um espaço de observação singular. Através dela, no modo como fazemos uma nova apreensão individual, apoiada numa determinada situação histórica, poderemos estabelecer um contacto directo com os factos brutos dos acontecimentos, o qual nos pode levar a querer manter uma certa ignorância sobre eles. Ao invés, se uma pessoa ler alguns textos literários, ou se assistir à projecção de alguns filmes representativos de determinado movimento, as informações recolhidas podem fornecer, na mesma medida, ideias sobre o seu contexto, ajudando-nos a esclarecer os factos brutos anteriormente observados.

Na história dos homens o papel da música tem-se alterado, uma vez que deixa de ser um veículo de propagação da palavra, um meio de transmissão da mensagem, para passar a deter e a conter uma simbologia que passou a ser-lhe própria. Julgamos que este tipo de movimentação, esta passagem de um estado de utilidade geral e concreto para um estádio mais individual e abstracto de desenvolvimento, acontece em todas as histórias e em todas as manifestações artísticas. Há aqui uma espécie de aprofundamento subjectivo em relação à primeira mensagem que era transmitida por palavras. Verifica-se um afastamento em direcção a um espaço de solidão que imprime versatilidade e flexibilidade à obra realizada, distinguindo-a das demais manifestações comunicativas. Ela adquire uma dimensão própria existente em todas as coisas únicas, relançando a arte para um plano universal, situado acima de todos os interesses mais mundanos. A música funciona como superfície de solidão, lugar de reconhecimento e contemplação. O jazz manifesta todo esse lado solitário quando não deseja requerer para si qualquer herança de bem-estar interior, experimentado em todos os estados particulares de exaltação superior. Reforça esta ideia de simplicidade, de pureza e de sentimentos, relativos a uma necessidade de suspender os juízos julgadores, adquirindo valores livres e vazios de compromissos terrenos. As obras só alcançam uma auto-suficiência afectiva quando reflectem esse percurso ideal que a humanidade pode realizar, por esta via, sendo a arte um lugar de contacto com a verdade, uma palavra abstracta dirigida a um público que se reconhece na indispensável união de uma dimensão abstracta da subjectividade.

O músico de jazz é uma espécie do ser solitário que se exercita no espaço do saber subjectivo para propiciar um tempo livre moralmente renovado. A intencionalidade e a intimidade parecem fazer parte da música e só através dos seus efeitos instrumentais é capaz de registar uma espécie de evolução ou modificação periódica. Enquanto nas outras artes, a forma expressiva se revela intimamente condicionada pela instrumentação, na música, essa relação surge-nos com maior perspicácia e imediatismo. Este facto leva-nos a pensar que é muito mais difícil mentir através da música e, nesse sentido, ela possui uma afinidade com os materiais emotivos, amórficos e extremamente potentes da infância. Ela absorve um registo de representação que, pela flexibilidade de expressão, considera intraduzível e não alternativa em relação as outras linguagens existentes, às quais o género humano se dirige com a sua atenção, numa utilização quotidiana através da sua existência.
AUTOR: IVO MARTINS 
EDIÇÃO:
Jornal Guimarães Jazz #2 - Câmara Municipal de Guimarães/ Associação Cultural Convívio/ A Oficina     DATA: Novembro de 2007 







                                 INTRODUÇÃO

O programa do Guimarães Jazz nunca foi uma escolha que se projecta ou estrutura a partir de um tipo específico de música. Sabe-se que todos os processos de selecção que tenham como pressuposto uma só temática manifestam, de forma indiscutível, fragilidades de entendimento. Quando se apoia toda a estruturação de um programa num único conceito base, o seu alcance torna-se intuitivo numa situação redutora e limitada, prejudicando soluções futuras.

No princípio do Século XX havia compositores que já possuíam uma noção muito clara sobre a possibilidade de orientarem a sua arte para alguém em concreto, ou dirigirem a sua música a um público específico, suporte daquilo que faziam. Webern foi o primeiro músico capaz de ponderar a inexistência do outro , quando Schöenberg ainda compunha para um futuro ouvinte ideal. Webern assumia que este público não existia, numa tentativa de estruturar a música e os seus actos criativos fora das influências do meio onde trabalhava. No seguimento desta ideia, poder-se-á pensar que o programa de um festival deve ser um acto não conduzido a um destinatário ideal, devendo exprimir uma posição que prescinda de directivas particulares, nas quais os mecanismos de escolha são sempre impulsos contingentes e ocasionais, muitas vezes inconscientes. Como descobrir, então, uma dimensão diferente e estranha para esta relação inevitável de alheamento que se verifica entre programa, músico e ouvinte? O gosto, ou melhor, a atenção que se presta a determinado projecto, surge de maneira ocasional, sem ter, na sua aparente intencionalidade, limites de género ou estilo. A programação inicia-se sempre a partir das experiências anteriores, abrangendo acontecimentos passados, projectando neles a procura de uma nova realidade. Esta prática conjuga formas imprevisíveis de sentir, apoiadas na imagem simbólica da coisa musical reflectida sobre o seu passado, presente e futuro, permitindo relacionar actos de efectivação comparativa entre as várias dimensões temporais contidas em cada um deles.

Todos os acontecimentos têm momentos extremamente subjectivos e complexos, cheios de reflexões e de finalidades estratégicas que se tornam causas de novas tomadas de decisão. Existe também uma vontade interior de se estabelecerem ordens, de se atribuírem coerências, de se situarem os actos programados num ordenamento aparentemente lógico que é profundo e dificilmente transmissível. Pretende-se formatar as várias propostas apresentadas, estabelecendo meios de aliciamento, processos de sedução para o maior número de pessoas, sem abdicar da distância em relação aos interesses e aos valores estéticos essenciais que se revelam na vontade de oferecer uma diversidade de projectos, possibilitando a exploração de outras ideias com a apresentação de novos músicos.

O Guimarães Jazz, sendo o último festival do ano, realiza-se depois de uma série de eventos similares. A sua concepção tem de reflectir esses factos, através da análise dos outros programas. Pretende-se evitar repetições desnecessárias que transparecem uma falta evidente de ideias, as quais traduzem um empobrecimento nas oportunidades de divulgação sobre os vários tipos desta música. O programa deve estruturar-se sobre um conjunto de sugestões, que sejam ao mesmo tempo convites de participação em concertos, capazes de despertar estímulos e curiosidade no seu público.

Uma música é sempre uma realidade irrepresentável. Para ser trabalhada, a obra precisa de encontrar um sentido infinito sobre a sua interpretação e sobre a forma de se fixar numa identidade singular e em diferentes moldes de se fazer representar. Tem de se proceder a uma reelaboração alargada sobre o que se reconhece no espaço artístico do nosso mundo em permanente mudança. Todos os anos chegam ao terreno do jazz novas ideias, projectos que desencadeiam atenções e interesses, que, expressando modelos de compreensão diversos, trazem consigo conceitos e pressupostos tantas vezes repetidos. Os princípios como "jazz pelo jazz" e "jazz como arte pura", são referências que nos devem orientar, despidos dos habituais preconceitos de reconhecimento, hierarquização, consagração e moda – essa estranha actividade do efémero que nos obriga a ter de compreender a vastidão deste fenómeno, exigindo que se saiba diferenciar e individualizar o que lhe dá origem e distinguir as suas manifestações mais autênticas. Por vezes aparecem terminologias infelizes e ambíguas, formulações semânticas que confundem sem realmente definir posições, reflectindo não mais do que a relatividade de todas as avaliações. Há um evidente processo de persuasão associado à escrita que tenta convencer e convencer-se de que existem métodos supremos de classificação, em que os melhores são reconhecidos e aclamados como tal. Sabe-se que o sucesso está longe de ter um equivalente no que diz respeito à qualidade da criatividade, do talento e da autenticidade artística. É sempre difícil fazer uma abordagem selectiva no que se refere aos músicos novos. As movimentações no meio do jazz estão cheias de acontecimentos banalizados pela comunicação de massas, linguagens que veiculam interesses comerciais, chavões promocionais e vícios de mercado. É impossível haver soluções definitivas na elaboração de ideias sobre a qualidade da música, quando são preestabelecidos conceitos sobre os actos da sua própria crítica, conceitos que são tendencialmente classificatórios e hierarquizantes. Todas as reflexões exprimem um gosto, uma avaliação sempre discutível e contingente, uma tentativa de se encontrar resultados satisfatórios de compreensão, a partir de formas de ver pessoais, pragmáticas e provisórias.

A arte não é a realização de um acto ideal, porque se assim fosse ela seria a sua própria negação. Um festival é, por princípio, um somatório de actos criativos inacabados e que, por isso mesmo, comportam todo o tipo de riscos e fragilidades. Se o acto criativo alcançasse um estado ideal de permanência, não autorizaria sucessivas leituras, nem tantas outras reinterpretações. As obras nunca se tornariam grandes na sua realização universal e seriam incapazes de assumir uma dimensão estética intemporal. Uma obra realiza uma espécie de síntese, anexa vários momentos ideais expostos na força de uma simbologia que se renova e que vai permanecendo actualizada. Este enriquecimento, este acumular de soluções, consequência de sucessivas visões, experiências e sentires, faz com que o jazz possua a estranha capacidade de questionar constantemente o seu público. Sendo o portador de uma tensão inquiridora, o jazz torna-se uma música imprescindível à compreensão do nosso mundo. O grau de descomprometimento exposto nas possibilidades múltiplas das suas leituras e nas alterações de circunstância que se revelam de forma insistente através dele, adapta-se ao modo de viver rápido e instantâneo que caracteriza a contemporaneidade.

Assim se confirma que nada é capaz de corresponder às expectativas daquilo que estabelecemos antecipadamente. O festival "ideal" seria o que conseguisse atrair o interesse do público, sem que manifestasse a mais pequena influência de preconceitos, moda, consagração, reconhecimento, hierarquização, etc, transformando-se em acontecimento neutralizado, capaz de estimular a necessidade de aprender e de incentivar actos corajosos e humildes de exposição perante os problemas colocados pelo seu entendimento. O festival alcançaria, desta forma, o fim último da sua existência, quando fosse capaz de cumprir totalmente as suas promessas, alcançando um tempo coincidente entre o que se espera e o que se assimila.

O jazz e a arte vão adquirindo valores que lhes asseguram uma autonomia esclarecida. No meio da abundância de símbolos que transformam a prática artística numa actividade que já não é arte, mas cultura, existe o perigo de tudo passar a ser olhado como finalidade de incentivar processos de consumo, através da adopção de mecanismos de troca, cuja principal finalidade se atinge na medição de graus de popularidade e níveis de audiência.

O Guimarães Jazz deve ser também um meio de divulgação. Encontramos um extenso campo de actuação onde coexistem músicos e destinatários. O jazz tem de ser acompanhado por muitas outras actividades essenciais à vivência estrutural e ambiental da nossa realidade, podendo ilustrar as inquietações de conflito com as quais todos convivemos. A crítica, a história, os movimentos criativos, as polémicas, as monografias, os ensaios, a escola, a improvisação, o coleccionismo, a tradiçãoversus modernidade, a arte comercial, a arte pura, os interesses sociais, políticos e económicos... os seus jogos, os confrontos, os choques, são elementos estruturantes, entre muitos outros, indispensáveis ao respirar do jazz como música viva. O mundo está em constante mutação e o jazz precisa de a saber assimilá-lo e de participar na rapidez deste movimento geral que cada vez mais nos determina. Ser activo e resistente pode significar que ainda se consegue difundir estímulos susceptíveis de unir pessoas, ultrapassando este regime homogeneizador, no qual todos nos encontramos.
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Jazz como Viagem
Projecto TOAP / Guimarães Jazz com Matt Renzi, Jacob Sacks, Bernando Moreira e André Sousa Machado

Gertrud Stein afirmou que “quem cria uma coisa, é constrangido a fazê-la feia”. O resultado do esforço para gerar intensidade e tensão na obra de arte, traduz uma luta para produzir a intensidade da qual deriva sempre a marca de fealdade. Os que vêm a seguir à sua concretização podem fazer dessa coisa uma obra belíssima, porque, uma vez já inventada, conhecem melhor o meio onde actuam. O inventor não sabe o que inventa, sendo inevitável que faça uma coisa que tenha de possuir a sua própria feiura. A conciliação da criatividade quase instintiva da criação com as formas nas quais ela se historia, isto é, se confia à fruição dos demais, manifesta-se no raciocínio, onde a feiura é um excesso da viagem na perfeição estilística. Quantas vezes estas situações aconteceram no jazz, em momentos que foram criadas obras musicais, em que se atentou contra aquilo que estava adquirido, causando profundos sentimentos de rejeição, acompanhados por estranhas sensações de falta de perfeição? O feio pode ser considerado paradoxalmente, um passo importante para o aperfeiçoamento estético. Há também, neste movimento da memória sobre a fragmentação dos pensamentos e das recordações que nos fornecem uma ideia de continuidade e permanência temporal, uma sensação de viagem imaginária, caminho possuidor da mesma característica do que supostamente é real e que interfere com ela. O jazz contém o elemento nómada próprio a todo o caminhar dos viajantes, através dos quais se manifesta uma confiança no futuro, nascida a partir da profunda consciência presente. O jazz, como música libertária, assenta na ideia de futuro. O feio surge-nos como aquilo em que confiamos e não conhecemos enquanto tal, sendo o belo aquilo que aparece como um processo de confiança no que já foi adquirido e compreendido. Estes dois lados da mesma questão cruzam-se permanentemente nesta música, interagindo num espaço de invenção musical, adquirindo identidade nesta relação entre os vestígios do que já foi passado, mas que está ainda próximo e o perfil do futuro imediato e esperançoso do porvir.

As viagens dos seres humanos são tentativas de se darem respostas a uma necessidade de busca geral, a uma finalidade de mundanização que se procura na eventual descoberta de percursos míticos, religiosos, racionais, históricos, artísticos. A grandiosidade dessa habilidade individual consiste na sua capacidade de se movimentar de forma inventiva, proporcionando novas descobertas, encontrando maneiras de projectar viagens no conhecimento, trajectos sempre acidentados e continuamente turvados pelos impulsos da esperança e pelas agitações da intuição. As rotas jamais serão rectilíneas, simples e acabadas e nunca possuirão um só sentido, não contemplando o achamento de términos certos e satisfatórios. Conseguir manter esse movimento peregrino, essa energia inquietante que nos faz mover no indeterminado e no incerto mesmo quando, como aconteceu com Ulisses ao visitar os infernos, as dimensões sombrias da condição humana, por um lado propensa a caminhar na direcção dos céus e, por outro, gravitante nas vísceras da terra, continuou a querer empreender a aprendizagem de itinerários tornados testemunhos para as gerações futuras. Os caminhos descobertos vão encarregar-se de cumprir o seu momento revelador, para que o nosso desafio encontre confirmação na sua própria reabilitação.

O jazz detém todos estes momentos de inquietude nos quais “o processo da criação artística é guiado por um único objectivo motivador: maximizar o valor estético sob vínculos”. A criatividade é a capacidade de se alcançar êxito nesse esforço. A viagem oferece-nos a figura independente, situada no espaço da imaginação, dotada de vida própria que se relaciona entre si e entre os homens. Reduz as entidades que geram desconfianças e suaviza os cenários naturais onde o viandante pode representar as suas próprias inquietações, no intento de reduzir os efeitos devastadores, propiciando a utilização de unidades de medida, categorias de cálculo e de conforto. A viagem reencontra nessa relação entre ideia e realidade um ponto decisivo em toda a história do pensamento ocidental, enquanto convincente descrição dos cenários dominados pelos sentidos alimentados com fantasia, um potencial imitativo, inventivo e comparativo que, inevitavelmente, se vai instaurar em todos os hemisférios da experiência.




AGAMBEN, Giorgio: Profanações , Livros Cotovia, Lisboa 2006;
CAMPA, Riccardo: A Modernidade , Fim de Século, Lisboa 2006;
DERRIDA, Jacques: Políticas da Amizade , Campo das Letras, Lisboa 2006;
PERNIOLA, Mário: A Arte e a sua Sombra, Assírio & Alvim, Lisboa 2006;
ŽIŽEK, Slavoj, A Subjectividade Por Vir , Relógio d' Água, Lisboa 2006.