AUTOR: IVO MARTINS 
EDIÇÃO:
Jornal Guimarães Jazz #1 - Câmara Municipal de Guimarães/ Associação Cultural Convívio/ A Oficina     DATA: Novembro de 2006 







                                 INTRODUÇÃO

“Se a estratégia se garantisse a si própria, se o seu cálculo fosse seguro, não se trataria de estratégia. A estratégia implica sempre aposta, isto é, um certo modo de confiar no não-saber, no incalculável: calcula-se porque há um incalculável, calcula-se onde não se sabe, quando não se consegue predeterminar. Portanto, a aposta estratégica consiste sempre no tomar uma decisão ou, mais paradoxalmente ainda, no render-se a uma decisão, no tomar de decisões que não se podem justificar completamente”. (1)

O Jazz precisa de empreender um continuado esforço de resistência para se aguentar no meio do declínio generalizado dos padrões estéticos. As ameaças suscitadas pela democratização da cultura, colocam a arte sob um crescente processo de mediatização, fazendo com que tudo aquilo que não nos permite escapar ao ilusório bem-estar da banalidade e do vazio, tenha passado a determinar-se através de um amplo processo de enfraquecimento simbólico.

Os significados fazem parte do contexto da existência contemporânea e servem para contrariar a tendência geral das pessoas sem rumo, sujeitas a um estado de apatia susceptível de determinar formas de relacionamento futuro, deslocando-as para outros valores menos materialistas. A falta de sentido tornou-se uma espécie de charme discreto do viver mundano, agindo no meio de múltiplos acontecimentos sociais, apresentando-se em convites subtilmente participativos. Apelos de desafectação emocional, reflectidos nos vários sistemas de mediação comunicativa, vão transformando a liberdade numa questão de transparência comercial.

Ao pretender iniciar uma nova era de procura e satisfação, assente no entretenimento, bem como na busca de outros objectivos sociais insignificantes, o acto criativo parece sobressair cada vez mais na exortação de vantagens de fruição sem esforço. As premissas de cada iniciação pessoal passam a determinar-se pelo empenho depositado na elevação dos estatutos, quase sempre associados à glorificação do não-conhecimento, onde o mais importante fica reduzido a um condição de participação colectiva.

O medo de ficarmos sós apodera-se de tudo o que nos rodeia, como um contágio que se expande de maneira avassaladora. A salvação passa por momentos de fuga e negação desse evidente mal-estar. Tentamos encontrar a palavra-chave para um novo mundo de igualdade consumidora, onde os limites de deserção se vendem e comercializam a todo o momento, através da democratização mediana do acesso ao crédito. Numa sociedade uniforme, feita de lugares-comuns, alienação e desumanização, nasce uma psicose colectiva de inadaptados, e o conformismo incide como uma estranha fórmula, quase matemática.

Quanto maior for a quantidade de sabedoria desperdiçada, menor será a qualidade da cultura que se domestica. Os resultados alcançados tornam-se aquilo que se designa por prescrição banal dos actos quotidianos, acções de posse estilizadas na parte inesteticamente integrante de todo o nosso viver. A crítica sobre a dissolução dos princípios, essa espécie de culto da racionalidade paradoxal e inútil, afigura-se-nos sem futuro, eventualmente por atingir demasiado as consciências, nesta conjuntura cheia de pragmatismo.

A realidade afirma-se pelo equilíbrio do senso comum, refazendo-se cada vez mais através de um estado de pacificação, resultante da serenidade atingida na aquisição e satisfação das nossas necessidades. De pouco servirá questionar aquilo que se afirma como normal, e que predomina em todos os lugares onde as actividades que se dedicam à negação e à utopia se revelam desajustadas, contraditórias e relativas.

Terminaram os tempos das construções cosmológicas antigas, das grandes religiões e políticas messiânicas. As acções de resistência são levadas a efeito num terreno de profundo isolamento, envolvido por uma total indiferença, que se detecta no acto de vendar a alma em troca de uma oportunidade mínima de participação.

Nesta insuportável tentativa de estar presente, apoiada em formas de existência que se pronunciam na vida como um todo, só se pode existir em momentos fragmentários. Quando nos apercebemos desta e de outras limitações, compreendemos como somos determinados pelo poder da contingência, assumida como força relevante nos assuntos do Homem. Persiste um estado de inconstância, causado pela oscilação dos acasos e outras irregularidades, cada vez mais claras e indomáveis.

O conteúdo conceptual do Jazz contemporâneo é, na sua forma mais interessante e possível, exposto sob o desígnio de prevalência do acidental sobre o racional, traduzido numa música refeita em momentos criativos, definidos por mecanismos de eliminação de fronteiras que, agindo violentamente sobre o instituído, vai sobrevivendo numa sociedade em rápida mutação.

Nada nos ensina a reconhecer o renovado e diferente processo de reencontro com a utopia. A mudança anunciada pelo movimento do desejo de alteração dos contextos, com que nos deparamos constantemente na história, é uma proposta radical, derivada da incapacidade de se solucionar a estrutura de relacionamento entre o Homem e a natureza. Este desaire também faz entender o porquê da inabilidade de se criarem interacções duradoiras e estáveis: nunca conseguiremos estabelecer equilíbrios, ajustamentos frutuosos, no decorrer do nosso tempo.

Em determinadas alturas, a arte alarga-se como rede de pequenos pontos de interacção, estruturados na falência dessa relação perdida, que perpetuamente se faz notar, entre a natureza e a razão. Uma realidade desconjuntada, que incentivou o ressurgir de um grande número de interesses, os quais, querendo destruir todos os outros, pretendiam apenas firmar as suas forças no terreno, nunca desejando ser um final definitivo. O conjunto de situações falhadas nas várias revoluções do passado, remete-nos para uma incapacidade latente de se avaliarem os seus contextos.

Detentora de raízes profundas, reflexo dos perigos contemporâneos, muitas vezes iniciados por passos pequenos, triviais e insidiosos, a música reproduz a transformação dos seus próprios factos. A cosmética do disfarce habituou-nos a não reagir e a desculpar o que de mais desagradável nos é imposto, permitindo que os géneros de discursos, e muitas das suas especulações, se façam repetidas vezes, sem qualquer tipo de justificação.

Pretende-se favorecer o artista, alguém que provoca, sistematicamente, diferentes graus de destruição nas distinções e transformações criativas, agindo como vítima da sua própria obra, perante os testemunhos dos seus cúmplices. Assistimos impotentes a todas estas alterações, que prevalecem na circularidade dos argumentos, aceitando a sua repetição sem sentido. Não se podem diferenciar tipos de culpa ou qualidades de inocência, porque quem alguma vez conseguiu possuir uma clara inclinação para queimar livros, não hesitará em queimar também pessoas.

A totalidade da experiência pessoal é produzida sob certas condições históricas, cujas características nos obrigam a recorrer a uma consciência crítica, reflectida na constante atenção sobre tudo o que nos é apresentado como pretensão de autoridade. A prática de se estabelecer uma narrativa para o Jazz necessita de distância temporal e, muitas vezes, de distância espacial. As fontes de informação proporcionam alterações profundas na compreensão, quando ouvimos pela segunda vez, ou regressamos várias vezes ao objecto escutado. Se formos capazes de identificar esses contextos como denúncias do mundo, reconheceremos a importância do tempo no processo de avaliação e de análise.

A reflectividade exige também distância, e mais não é do que um expediente para reforçar a permanência da subjectividade no constante processo do conhecimento. A permanência não é um facto, mas sim um acto; uma actividade subjectiva, exercida e revelada por quem analisa, como uma espécie de reflexo objectivo, através da eliminação de uma subjectividade preexistente. O impossível tornou-se verdade e, tantas vezes, história.
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                                 TEXTOS

Wayne Shorter Quartet
com Brian Blade, John Patitucci e Danilo Perez

“Nietzsche escreveu que a vida podia justificar-se apenas como um fenómeno estético. Isto significa desistir da exigência de ser inteligível. A estética é exactamente aquilo que não tem significado. Aqui a música serviu-lhe como um exemplo constante. Qualquer tentativa de discernir o significado de uma peça musical será mais enganadora do que falsa. A música torna palpável o que a grande arte revela: falar do seu significado é mais do que um equívoco” (2)

O sucesso tem sempre qualquer coisa de suspeito. O que é adquirido facilmente, tende a banalizar o esforço da busca criativa, rasurando dificuldades que certificam a forma de se viver sem recompensa. A arte tem de possuir essa propensão para o abismo, para a queda, contida na ascese de uma vida como condição de salvação. Ao induzir-nos a seguir uma fé, situada além-desejo, que tem como princípio a lógica específica da alquimia simbólica da interioridade, torna o sacrifício num investimento pessoal, que só será pago e recompensado se for, ou parecer, feito a fundo perdido.

O tempo contido na música de Wayne Shorter contraria as análises despoletadas pelo seu lado mais fácil, mais leve, no qual a arte se transpõe para um estranho mecanismo económico, acusando o seu lado mais utilitário, desencadeado pelos valores do lucro. Tudo se manifesta como se existisse um número tangível, que nos reduz às ofertas simbólicas de uma obra sem preço, sujeita a um simples processo de troca comercial. O Jazz é visto como espelho das capacidades humanas, interpretadas num determinado tempo, cuja história concretiza a forma principal de ocorrência sonora, que se define a si mesma, se nomeia e dramatiza, em confronto com as outras artes, sempre no sentido inverso ao económico - uma missão de solucionar a falta de identidade instituída por um grupo de homens do princípio do século XX.

O conteúdo de uma obra está muito para lá das suas características mais superficiais. O objecto artístico possui um acumulado de referências que inscrevem o lugar onde se encontram os significados mais capazes, as razões de se lhes atribuir sentido, não pertencendo, nem se situando no espaço exterior aos seus domínios. Teremos assim de procurar alcançar as causas dos seus reflexos, longe do local de onde provêm, e de pesquisar, de forma insólita, respondendo a estímulos de auto-recriação permanente.

Quando alguém quer limitar a linguagem aplicada na demanda de uma maneira correcta de ver o mundo, evitando superar os horizontes de compreensão objectiva e agindo racionalmente sobre o facto ouvido - um múltiplo gravado e reproduzido - sofre por não ser capaz de reencontrar a narração consolidada, deparando-se-lhe então um espaço sempre incompleto. Wayne Shorter apresenta esse tempo consolidado numa forma solidamente rica. Só uma sensação de desencantamento repõe a riqueza das abordagens conseguidas para que, numa ideia de linguagem corporizada, a semântica se fixe no objecto escutado e transmita aquilo que se sente.

Uma negação de emoções e sentimentos, visando uma qualquer igualdade sem sentido, pode entender-se como uma incapacidade de compreender a existência de algo merecedor de respeito e consideração, ou como uma tentativa de normalização artística, independente da linguagem falada. Esta normalização não pode ser resumida à tarefa de se encontrarem fórmulas legais, uma vez que a função da arte se situa, precisamente, na urgência de se inventar, de se criar ou de se produzir algo. Muitas vezes, o acto de buscar sentido consiste no seu próprio contra-senso, e essa negação surge-nos como necessidade de ironizar o momento de regeneração do exaurido.

A crítica não suspende a ordem estabelecida pela conjuntura sistémica das sociedades, nem sequer cria um novo terreno de reconstrução, limitando-se a proporcionar sínteses e reestruturações de materiais sobejamente utilizados no passado. A memória dos símbolos ajuda a ponderar arrumações e disposições, que permitem novas acessibilidades a uma realidade mutante. O culto deste momento original, compreendido na música de Wayne Shorter, restabelece-se na artificialidade presente e instantânea do estético como violação perpétua da natureza.

A arte também pode ser um escape. Num impulso de arrastamento, o artista é atraído por algo estranho à sua imaginação, uma força susceptível de o levar a explorar voluptuosamente o reino do anormal, os territórios da desordem, expostos numa beleza que, sendo nova, é anti-natural. Chegamos ao estádio em que se realiza a assimilação estética da decadência, a observação do resto dos restos, o consumo saturado e refeito em formato normal, certificado pela totalidade dos actos desnaturados, no interior de uma sociedade já incapaz de se chocar com provocações ou escândalos.

Arrancar a música de uma circunstância de indiferença assumida, conferindo-lhe dimensão autónoma, justificada pela verdade sem ideologia acessória, é uma tarefa difícil. Quem empreender o caminho da negação da realidade, no que ela possui de instituído, terá de percorrer, como quem deseja escrever e executar música, um trajecto de solidão na pesquisa e na exploração libertina dos espaços possíveis de liberdade, descomprometendo-se das enormes maiorias que apelam à submissão intelectual perante os verdadeiros desafios.



TOAP Colectivo
Jorge Reis, Nelson Cascais, Bruno Pedroso, Pedro Moreira
com John Ellis, Alan Ferber e Brad Shepik

Existe uma crise moral evidente. Há demasiados interesses, difíceis de contornar, a surgirem na arte e na música. O desfalecimento das margens da criatividade está cada vez mais reduzido a uma gestão de oportunidades e ambições. Este facto faz da mediatização do Jazz um programa de deserção para os grandes desígnios das nossas representações artísticas. Circunscrevendo-nos a atitudes pragmáticas, onde cada indivíduo trata exclusivamente dos seus pequenos assuntos, o carreirismo oficial passa para primeiro plano nas nossas vidas.

Ter uma imagem actuante adquire uma importância crescente, e saber ocupar todos os lugares disponíveis, agindo socialmente, tornou-se uma arte fundamental de vida, uma prática de sobrevivência, facilitada pela formalidade e pela burocracia das boas maneiras. As actividades em torno do Jazz foram submetidas a este regime de humor negro, através de uma glorificação da injustiça, que impele ao empobrecimento global.

É preciso que todas as actividades inerentes à arte tenham, na sua própria justificação, uma tentativa de busca por uma consciência recta, capaz de sustentar uma capacidade eficaz de resistência. Este colectivo revela a presença de um interesse alargado, expresso na ampla liberdade de julgar, só possível através de um escrupuloso respeito pela igualdade de oportunidades, tratamentos e exposições.

Sabe-se que o bom senso exige um trabalho de reflexão fora do estado natural de sensatez e equilíbrio. Quando se observam as várias escritas e ideias sobre o Jazz, desde logo debilitadas pela inexistência de um mecanismo de contra-discurso suficientemente audível, revelado elemento fundamental de denegação, conclui-se que os monopólios continuam activos e em desenvolvimento, e que tudo se repete num processo egoísta de afirmação. O sucesso, fruto do isolamento, e a falta de tendências, conduzem ao ridículo e a um frágil procedimento de rasura e omissão, enfraquecendo conteúdos e prejudicando a leitura das visões periféricas de todos os que se encontram do outro lado.

Novos elementos pró-activos preparam a sua mundialização, da qual ninguém espera nada de maravilhoso. O culto exacerbado da revolta, assim como o elogio das marginalidades, irrompem sempre de forma deslumbrante, sem qualquer tipo de significado, num mundo já totalmente descoberto e cheio de movimentos enganadores. O gesto da indignação moral, destituído de qualquer acção e fundamento, fica para sempre dependente da prevalência de costumes mansos.

Devemos reconhecer a relatividade dos juízos e das avaliações alimentadas por desacordos e incertezas. Criticar e pensar o Jazz é ir mais longe naquilo que sabemos, sempre subordinados aos limites do razoável, da experiência e do conhecimento. Não há, portanto, demonstração possível sobre o significado desta música no momento presente. Estas limitações não impedem, contudo, que muitas das análises efectuadas no passado não tenham sido bem realizadas; encontram-se atrás de nós, dizendo que continuamos a confrontar-nos com o desconhecido, evitando o encerramento na ignorância passiva de uma visão retro.

Este projecto, concebido exclusivamente para o festival, num acordo entre o Guimarães Jazz e um grupo de músicos portugueses, tenta demonstrar como se torna desagradável a transformação do Jazz num objecto de nostalgia. Na espessura da história, à sua retaguarda, o Jazz torna-se uma coisa do passado, cujo campo de análise se deslocou, se estreitou e se especificou. Curioso será pensar que a sucessiva mudança de focos de interesse fez com que a música se tivesse aproximado mais de nós, da nossa escala, permanecendo um universo desmesuradamente vasto.

A obra de arte é grande quando nasce num tempo, num lugar, numa cultura, no génio dum criador, formando um todo de particularidades. E contudo, ela emancipa-se das suas limitações para se tornar o laço entre os homens de todos os tempos e de todas as culturas. É esse fenómeno de universalidade adquirida que nos remete para uma transcendência, por vezes ostensivamente negada pelas visões mais materialistas e simplistas.



Marc Copland, Tim Haggans, Drew Gress & Jochen Rückert

“Nunca tive especial gosto pela «grande teoria», e, quando leio trabalhos susceptíveis de serem incluídos nessa categoria, não posso impedir-me de experimentar certa irritação perante essa combinação tipicamente escolar, de falsas audácias e de verdadeiras cautelas. Poderia reproduzir aqui dezenas dessas frases pomposas quase vazias, que muitas vezes terminam por uma enumeração desconexa de nomes próprios, seguidos de uma data, humilde procissão de etnólogos, sociólogos ou historiadores que forneceram ao «grande teórico» a matéria da sua meditação, e que lhe trazem, como um tributo, os atestados de «positividade» indispensáveis à nova respeitabilidade académica”. (3)

Estamos permanentemente à procura de uma versão emancipada de resistência, que nos permita desenvolver formas de actuação pertinentes. A obra, na sua plenitude artística, torna-se um objecto completamente sensível, elemento possuidor de particularidades específicas de estruturação, capaz de estabelecer, junto dos homens, um acordo de amplo sentido universal. A estética surge como modelo concreto e incarnado de possibilidades mínimas de pensamento comum, ao congregar significados, no caminho de uma procura essencial da verdade.

A música de Marc Copland adquire, assim, um valor importante, tomando parte activa no processo de detecção da verdade que é, também ele, um instrumento de aferição do real. O indivíduo realiza-se nestes contextos através de sínteses entre o universal e o seu mundo particular. O autor surge como mediador, alguém que apresenta propostas de superação de limites, ao fazer um apelo à reconciliação entre estas duas esferas de actuação, na aparente impossibilidade de conciliar o universal e o particular.

As pessoas tendem a ver o mundo como um imenso parque de atracções, uma organização previsível de divertimento, sem nenhum sentido aparente que não a satisfação de desejos imediatos. A arte requer tomadas de decisão, escolhas, opções e processos selectivos, de forma a traduzir um trabalho sobre si mesma e sobre o mundo como realidade exterior.

O reconhecimento incomoda quem se deixa aprisionar pelos actos mais fáceis, pelas actuações mais fúteis e, ao preferir-se a leveza das medidas activistas ou pró-activas, acaba por se deixar para trás o potencial inovador das ideias. É preciso ter-se paixão pelo mundo tal como ele é, o que não impede a possibilidade de nele se inscreverem uma série de acções na tentativa de o mudar. Esta realidade coloca questões interessantes sobre a forma de harmonizar a acção com o amor original pelo que nos deu origem.

Gostar de música e apreciar tudo o que nela existe, é também reconhecer que não se pode extinguir aquilo que ela representa. O espaço musical estende-se para além dos seus limites, das transformações impostas por razões de ordem social, política e económica, interferindo no espaço e nas palavras que, de acordo ou em desacordo, influenciam as paixões, tomando parte activa na elaboração do mundo.

No trabalho de Marc Copland observa-se uma totalidade em transformação, em revolta, sendo o sentido crítico da vida parte essencial da clarificação criativa, assente nas identificações levadas a efeito. A existência do Jazz pressupõe o acto de o transformar e essa acção implica a necessidade de se agir criticamente sobre ele. Quem se queixa, quem denuncia o tempo ou a falta de interesse dos processos críticos, tem receio de sentir que tudo pode vir a ser posto em causa, mesmo as verdades em que sempre acreditou, ou de ficar prisioneiro da argumentação desenvolvida na forma de se analisar a música.
As acções transformadoras são partes importantes da realidade onde pretendemos actuar. Se as esperanças alimentam as vontades de transformação, e se ao reconhecerem soluções de mudança elas podem ajudar a atenuar as nossas angústias, isto significa que o mal-estar também é necessário para empreendermos modificações sólidas a estados de insatisfação persistentes e incómodos. O medo surge como algo afastado da possibilidade de irmos ao centro profundo da arte, ao encontro de uma realidade desconhecida, revelando uma totalidade que não nos separa da obra, mas dentro da qual viveríamos um infinito grau de percepção e de satisfação.

É humano querermos e desejarmos sentir na música um qualquer sentimento único de desfrute, para presenciarmos e sermos testemunhas desse momento inovador. As pessoas aspiram a ser parte integrante de um núcleo restrito, um pequeno grupo visionário, com acesso a novos sons da sua música, não percebendo que, em muitos casos, muito pouco de original tem aquilo que escutam. Também se detecta no Jazz uma vontade de descoberta.



Abdullah Ibrahim Trio

“…Deixemos de visar a originalidade a qualquer preço, de querer que tudo seja sempre «novo», mesmo quando não o é. A originalidade é a doença do século. É certo, que ela combina agradavelmente com os nossos nascisismos, mas é mais correcto, creio, perceber em primeiro lugar o que nos une aos grandes pensamentos do passado, antes de pretender aventurarmo-nos apenas no «inaudito»!”. (4)

Se queremos usufruir de todas as vantagens de percepção e compreensão das implicações das nossas escolhas, é preciso sabermos, também, preservar as identidades dos tempos presentes. Em Abdullah Ibrahim, a variedade na descoberta do Jazz faz com que tenhamos de encontrar pontos essenciais de ligação, ou uma parte comum, sem que deixemos de lado as nossas necessidades de avaliação. Os momentos mais originais situam-se em processos e construções extremamente difíceis de captar, o que torna a distância entre cada um de nós, e as realidades nela contidas, mecanismos profundos de superação e sabedoria.

O Jazz é um epifenómeno cuja essência se encontra do lado de fora dele, e através do qual se torna difícil transmitir ideias. O que escrevemos não será mais do que um efeito onde colocamos as nossas agregações provisórias e impessoais, votadas ao dia em que o desaparecimento nos faça reencontrar o grande anonimato das nossas origens.

A música refaz-se através de uma experiência comum, na vida conjunta de todos os seus interventores. Individualizamo-nos nela, produzimos um terceiro termo entre o particular e o universal, que não existe sem nós, e utilizamos percursos, onde ninguém é completamente semelhante. Mesmo as nossas reacções mais individuais nascem de referências partilhadas, tornando-se mais ricas. A raiz da concretização destas relações intersubjectivas é a fonte da arte e do Jazz, que orienta experiências comuns e lhes fornecendo um sentido mais amplo.

As estruturas da linguagem realizam uma tentativa de unidade, deduzida na lógica de se ter razão, de se possuir uma argumentação fundamentada, baseada na desconfiança legítima, inseparável da valorização do subjectivo e do individual, por vezes acumulada em vaidades que vêm desequilibrar a própria possibilidade de se existir numa relação autêntica com os outros. Sem essa possibilidade de abertura sobre todas as experiências vividas, o Jazz torna-se uma versão de música dry - o equivalente à aceitação de algumas regras, cujo conteúdo não é preciso conhecer para dominarem as nossas emoções.

Não teremos de esperar demasiado para enfrentarmos um final mais sereno. Resta muito pouca coisa que nos possa interessar na obra musical. O facto de ela nunca alcançar um ponto definitivo de realização, leva a que a sabedoria sobre esta obra seja verdadeiramente impossível de se fixar. A música de Abdullah Ibrahim representa a vida expressa, sempre em si própria, como estado experimental.

Um ideal de obra como sabedoria é uma objecção sobre a impossibilidade de conhecimento que, ao ser impraticável de tão exigente, nos coloca sérias questões sobre as dificuldades de, individualmente, entendermos a música. Relativizar os valores usados na sua compreensão pode ajudar-nos a entender por que é que toda a construção ideal é difícil, ou mesmo impossível, de acontecer.

Existe um amor que é humilde e totalmente desapegado - o amor estético. Não se pretende possuir nada, nem se tem medo de se perder algo. Da mesma maneira, o amor que temos por uma bela paisagem não implica que sintamos qualquer tipo de desejo de a possuir. É por isso que nos apaziguamos e pacificamos neste sistema de afastamento sobre o interesse, ao mesmo tempo que sentimos prazer, porque conseguimos amar de forma livre, sem cobiça, não excluindo nem as preferências, nem esse reconhecimento ou esse fascínio, completamente particular, pelo o acto criativo.



Alexis Cuadrado, Alan Ferber, John Ellis, Mark Ferber e Brad Shepik

A música deve estabelecer uma relação estreita e directa com a verdade. Quando se tenta criar essa relação, com base em informações recolhidas sobre os seus acontecimentos mais importantes, está-se a cometer um grave erro, porque informar é interpretar, é escolher e é tomar partido. A força que actualmente move a informação, implica a necessidade de termos disponíveis doses maciças de escolhas, interpretações em rápida circulação, nunca havendo tempo para procedermos a uma assimilação útil e à sua real apreciação. Assim, incrementa-se um sistema de percepção que torna impossível extrair da verdade outras verdades. Sabemos que a verdade não é informação e que nem sempre coincide com os acontecimentos. Apesar de hoje possuirmos muito mais conhecimento sobre o passado, não quer dizer que o que actualmente lemos sobre Jazz, exprima de forma segura a sua essência no futuro.

As experiências deste grupo de músicos revelam que não existe uma extrema concorrência entre si. Ao apropriarem-se de um fenómeno que não lhes pertence para, a partir dele, estabelecerem as argumentações dos seus interesses e salvaguardarem a parte de poder que lhes diz respeito, conseguem criar um momento instantâneo, contido em cada actuação, que os ajuda a fazer prevalecer num estado de satisfação de forma não egocêntrica, nem desinteressada.

Ao contrário dos poderes instalados no Jazz, os músicos parecerem querer zelar e aprender a manter a sua música, a qual deveria ser uma espécie de contrapoder - a condenação da fealdade técnica, surgida na relação dominadora do Homem sobre os outros homens, sempre que o feio se instala no medo de se ser ridicularizado, ou de não se voltar a ser convidado. Este contexto, manipulado por uma associação de interesses alimentados a expedientes de informação, impõe o receio sobre quem ousa dizer. A pseudo-vanguarda trabalha actualmente este tipo de confrontos. E isto é tanto mais grave quanto mais esse poder é, também, económico. Mais grave ainda é não se poder dizer a verdade, sendo o estado de segregação um dos aspectos mais inquietantes do Jazz e da informação que o acompanha. A diferença dos discursos públicos e privados avisa-nos da delicadeza de um momento, que nos obriga a questionar a fórmula democrática do seu próprio funcionamento.

O descrédito é muito mais visível por detrás do brilho. Apesar de toda a gente se dar conta deste facto, continua a perder-se tempo com fantasias de omissão, de quem já não suporta mais o segredo de recusa e deseja dizer uma ou duas coisas em público.

Se alguém tem alguma superioridade sobre os outros, não é porque conheça melhor o bem ou deteste mais o mal, é porque conhece um pouco mais de verdades, pelo menos, no domínio dessa competência, e porque adquiriu mais meios de análise, de crítica, de argumentação. A sua função não é dar lições de moral, nem julgar, denunciar ou condenar, mas compreender e explicar. O fácil sucesso daqueles que não condenam, deve-se aos métodos simplificados que utilizam, adiando as preocupações com a verdade e com os valores positivos. Fazem, assim, concluir que os meios de informação albergam muitos dos que se profissionalizaram e desejam profissionalizar nestas actividades de derisão, sendo esta atitude, por essência, a antítese de toda a tendência para a verdade.

Há muito que já não esperamos o melhor. Ninguém acredita em nada. A hora da lucidez e da coragem fica na possibilidade de participarmos em alguma coisa, num momento que aceitamos e que nos faz pertencer a um grupo de pessoas que gosta de arte e das suas manifestações mais relevantes, sem que deseje aderir a um programa de acção e de transformação. Neste contexto, toda a militância no Jazz está deslocada e não tem qualquer tipo de justificação, porque não possui um objectivo activista.

A música de Alexis Cuadrado, Alan Ferber, John Ellis, Mark Ferber e Brad Shepik reitera, sem objecto de propaganda, o espaço onde a subjectividade é soberana e onde a autonomia de quem critica terá de conter, obrigatoriamente, heteronomia. Este facto adensa ainda a necessidade de nos localizarmos no tempo em que as vanguardas se tiverem esgotado, e os ideólogos tiverem acabado por se extinguir nas últimas revoluções salvadoras. Existem apenas pessoas, que se agitam muito sem nada acrescentarem de interessante. A inteligência frequenta todos os lugares, a coragem e a amplitude de vistas nem tanto.
Andrew Hill Quintet

“Sentir-me-ia justamente tentado a dizer que a experiência que faço da escrita me deixa pensar que nem sempre se escreve com o desejo de ser compreendido; há, pelo contrário, um desejo paradoxal de o não sermos; não é simples, mas há como que um “espero que, deste texto, nem todos entendam tudo”; com efeito, se a transparência da inteligibilidade estivesse garantida, destruiria o texto, mostraria que não tem porvir, que não transborda o presente, que não se consuma imediatamente; portanto, uma certa zona de desconhecimento e de incompreensão é também uma reserva e uma possibilidade excessiva – uma possibilidade para o excesso de se ter um futuro e de, por conseguinte, se gerarem novos contextos”. (5)

O essencial não é a arte, mas o que ela revela. O essencial não é a música, mas uma certa qualidade de silêncio. Os artistas ajudam a suportar o real. A sobrevivência é a vida para além da vida, a afirmação do vivente que prefere viver e, portanto, está profundamente empenhado em enfrentar a morte.

Nietzsche dizia que nós temos a arte para não morrermos da verdade. O sábio já não tem necessidade dela, pois vive-a. Quanto menos os artistas parecem ter ilusões sobre a arte, tanto mais as suas obras nos sensibilizam e tocam. Esta aparente contradição, faz com que todos os trabalhos artísticos se direccionem para uma coisa diferente, que não é necessariamente uma obra de arte.

A música de Andrew Hill demonstra que criar é, em primeiro lugar, recusar, negar, contestar, confrontar, transformar, destruir. Pode detectar-se um processo de salvação pela arte, negando-se a própria arte - uma curiosa forma de agir, revelada numa das estratégias preponderantes do artista, a caminho de uma negação também sobre si próprio. O artista faz uma síntese entre o particular e o universal, convidando-nos a iniciar o nosso próprio processo de individuação das existências, contra um colectivo sempre empenhado em conquistar poder, o qual se assume como oportunidade única que devemos aproveitar se não queremos passar o resto da vida a ser assediados por uma carência de morte.

A obra de arte contém essa tentativa, esse esforço de superação da vida, e por isso transmite-nos, de forma clara, aos que a percepcionamos, a conveniência e as vantagens de fazermos dela, tanto quanto possível, qualquer coisa de sensata vinda do lado do futuro. Ao mesmo tempo, introduz uma questão interessante, que passa por uma necessidade de definir trajectórias particulares, que constituam o quinhão de todos e de cada um - uma ambição universal, através da qual estamos ligados e pela qual participamos num estado completo de humanidade.

Em cada situação é preciso criar um modo de exposição ajustado, inventar as regras do evento singular, ter em consideração a quem se destina. O que nos individualiza são as nossas histórias. Para Andrew Hill, o Jazz torna-se um mecanismo de particularização, quer quando é olhado através do grupo restrito dos seus executantes, quer quando é perspectivado pelo grupo mais alargado das pessoas que gostam dele e que o seguem.

Os músicos permanecem presentes. Reconhecemo-los, amamo-los e, mesmo quando já nos esquecemos do seu nome, sabemos, pelo menos, que a sua obra, como toda a obra de arte, transporta um traço das suas características, porquanto elas acederam à humanidade inteira, perspectivada no que uma obra pode conter de insubstituível, único e singular. Por outro lado, as descobertas científicas vão sendo, com o decorrer do tempo, sempre completadas por outras descobertas. Viver não é uma arte. Nenhuma obra é a vida. Querer fazer da vida uma obra de arte é enganar-se sobre a arte e sobre a vida. Estas questões levam-nos a pensar naqueles que nos incitam a conhecermo-nos a nós próprios, por supostamente haver mais verdade dentro de cada um do que do lado de fora, embora a individualidade alcançada não tenha de ser, necessariamente, confundida com uma obra de arte.

É preciso aprender a distinguir os homens que, sobre a individualidade alcançada de forma capaz de fornecer sentido a um imenso colectivo, possuem uma alquimia, quase miraculosa, de características, reconduzida na direcção do universal. Na elaboração da sua obra, alguns músicos dominaram verdadeiramente a história do Jazz, visto que outros a pensaram por dentro, isto é, no interior das grandes linhas que haviam traçado, nunca ultrapassando a barreira da universalidade.



Brussels Jazz Orchestra com Dave Liebman

O saber de que precisamos para pensar profundamente é, muitas vezes, mínimo. A ideia de que o pensamento é uma prática, mais do que uma representação, leva-nos a afirmar que a análise da música é uma oportunidade única, da qual deveremos retirar todo o proveito. Quando alguém deseja aprender e quer levar mais longe aquilo que, até determinado momento, se reflectiu sobre o Jazz, - porque as sociedades se alteram e cada época tem de inventar a sua própria análise - realiza importantes esforços de transformação da palavra para poder viver uma vida mais razoável. Isto não significa que seja obrigado a existir um acordo total com aquilo que acontece no momento presente.

As críticas de alguns são parte do argumento necessário que consolida ainda mais as experiências e o carácter ocasional dos acontecimentos, fazendo-nos dispensar os interesses. Na Brussels Jazz Orchestra c/ Dave Liebman, tudo é incerto e fugaz, e o Jazz, curiosamente, incarna essa incerteza, o tempo real que nos escapa, como prova evidente da incapacidade de apreensão do que escutamos. Ao fazer uma espécie de apologia do contingente, este estado de coisas, sugere que os cépticos são sempre os mais fortes, pela confissão da sua fraqueza. Por outro lado, os dogmáticos (os mais fracos), através duma incapacidade em demonstrar a sua própria força, tendem a vulgarizar a linguagem, por pretenderem torná-la mais susceptível de ser compreendida pelo grande público, sendo-lhes garantido o apoio imediato das amplas maiorias.

Quanto mais uma reflexão é profunda, tanto mais o raciocínio em que se fundamenta é longo e trabalhoso, e tanto mais ele pressupõe tempo para adquirir conhecimentos particulares, tornando-se inacessível o seu entendimento. Se não considerarmos a tentativa de explicar a grande música de forma coerente, de acordo com o grau de empenho dos seus apreciadores, como poderemos negar a importância dos que escolhem viver a via de uma aceitação difícil, sob a tensão entre os dois pólos formados pelo objectivo e pelo subjectivo? Assim se abre portas a um terreno fértil em contradições e frustrações, improvável ao sucesso e tão impessoal e indiferente à generalidade das pessoas, que nos remete para o processo de afirmação solitário de um sujeito que deve esquecer-se de si próprio.

A Brussels Jazz Orchestra c/ Dave Liebman recusa a aceitação conformista da concepção da obra de arte como bem cultural agradável - acontecimento que expulsa do seu conteúdo toda a negatividade de conflitos, elementos essenciais da sua génese. A relação conflituosa entre interesse e recusa denuncia uma prática de resistência, indicando uma conduta contra a censura e contra as mentiras que tomam parte actuante no modelo de alienação instalado. Manter este confronto, permanecer neste conflito como estratégia de desembaraço do carácter de entretenimento no Jazz, é uma forma de protesto contra a mediatização da música, contra o consumo da arte e contra a transformação da cultura em mercadoria.

Ao abolir-se todo o momento mesquinho do deleite, a espiritualização da arte na sua forma contemplativa passa a expressar um sentimento abstracto e desfasado duma realidade que reitera a ideia de pobreza. Sem esforço não é possível evitar-se a partilha da arte em propriedade cultural, tornando-a uma estrutura coisificada, entorpecida e comprometida em obter o máximo prazer do seu consumidor, e não em recuperar a sua essência estilística. O que resta, na maior parte dos casos, pouco tem a ver com o objecto criado.



Charlie Haiden Liberation Music Orchestra com Carla Blay

“Mas o tempo da nossa técno-cultura mudou radicalmente a este respeito. As pessoas da minha “geração”, e a fortiori das mais antigas, tinham sido habituadas a um certo ritmo histórico: julgava saber-se que uma certa obra podia ou não sobreviver, em função das suas qualidades, durante um, dois, ou mesmo, como Platão vinte cinco séculos. Desaparecer, e depois renascer. Mas hoje, a aceleração das modalidades de arquivo, mas também a usura e a destruição, transformam a estrutura e a temporalidade, a duração da herança. Para o pensamento, a questão da sobrevida (survie) assume doravante formas absolutamente imprevisíveis.” (6)

As análises são representações de sujeitos que se exprimem num campo de discursos múltiplos, tornando esta realidade a condição fundamental da actividade crítica. Charlie Haiden Liberation Music Orchestra desenvolve uma ideia/conceito, através da qual o que é dito é, em concreto, um diálogo aberto e criativo nas diversas formas sensíveis de se entender a música, entre íntimos e estranhos e entre várias facções. Podemos encontrar na sua música uma descrição constituída pela interacção e pelas disputas de muitas formas de pensar diferentes, lugares-comuns e discursos próximos, compondo textos que identificam esses cenários de diversidade e descrevem esse espaço textual utópico, onde se pode alojar uma complexidade discursiva numa contradição de vozes.

Será que o texto do crítico expressa, perfeitamente, aquilo que os músicos pensam, do qual a citação directa é suprimida, beneficiando de um discurso controlado, que representa mais ou menos o autor? O recurso à comunicação indirecta é inevitável, e chega-nos sempre apoiado em diferentes níveis de abstracção. De pouco valem as interrogações sobre o que se está a pensar. A possibilidade de se habitar a mente dos autores, aparentemente concedida ao crítico, é sempre discutível e apresenta um grande número de problemas. Esta é uma das questões constantes sobre o método adoptado e matéria de impossível resposta. A melhor forma de se descreverem, na música, as situações incertas, será redigir um texto aberto, uma descrição sujeita a múltiplas reinterpretações.

O texto sobrevive-nos. A música pré-existe, deixando-nos rastos de si. A tentativa de controle, sempre limitada, de quem critica, a vulnerabilidade relacionada com o acto de tecer comentários, como o vocábulo texto significa, ajudam a perceber a necessidade de se golpear e de se rasgar o que se escreve, de modo se provocarem aberturas no discurso que se estrutura, e a se alcançar uma visão de relatividade sobre a autoridade fechada do crítico.

Não existem palavras ou formas neutras que sejam pertença de uma só pessoa. A linguagem é atravessada por intenções e ênfases e uma parte da palavra é pertença de muitos outros. A crítica é uma experiência de interpretação, feita através da realidade circunscrita, que envolve vários sujeitos – o músico, o crítico e o público. Todos os elementos são potencialmente políticos e significantes porque se movimentam em torno de um conjunto de interesses que comunicam e se ajuízam. As narrações podem ser mais ou menos ingénuas, ou mais ou menos elaboradas, exprimindo, em geral, a ignorância inicial sobre o que se crítica - os equívocos e a ausência de contacto.

A escrita é ritual ou acto textualizado, que deixa de manter uma relação íntima com a produção de uma obra musical, tornando-se texto, testemunho afastado da actividade interpretativa. Charlie Haiden Liberation Music Orchestra permite uma multiplicidade de leituras e reflecte o facto de a consciência já não poder ser entendida como monopólio de certos indivíduos. Leitores de todas as origens irão descodificar, de maneira diferente, todas as músicas e todas as palavras, por isso as obras devem estar naturalmente abertas às leituras mais imprevistas. A prática sugere que a possibilidade de um texto fazer sentido, depende menos das intenções voluntárias do autor que está na sua origem, do que da capacidade criativa de quem o lê. Roland Barthes dizia: “um texto é um aglomerado de citações extraídas de incontáveis centros de cultura (…) a unidade de um texto reside não na sua origem mas no seu destino”. Uma preferência arbitrária ou meramente pessoal, baseada no gosto de quem escreve, não pode oferecer-nos princípios racionalmente defensáveis para o narrado.

A inclusão de inúmeras histórias de grupos, até agora ignorados, apela ao sentido de democracia que impele a disciplina a orientar-se cada vez mais para fora de si mesma. No pós-modernismo existe uma possibilidade acrescida de criar música sobre múltiplas narrativas e múltiplos modos de elaborar histórias.



(1) DERRIDA Jacques; FERRARIS, Maurizio, O gosto do Segredo, Lisboa, Fim de Século, 2006.
(2) NEIMAN, Susan, O Mal no Pensamento Moderno, uma história alternativa da filosofia, Lisboa, Gradiva, 2005.
(3) BOURDIEU, Pierre, As Regras da Arte, génese e estrutura do campo literário, Lisboa, Editorial Presença, 1996.
(4) COMTE-SPONVILLE, André; FERRY, Luc, A Sabedoria dos Modernos, Dez Questões para o Nosso Tempo, Lisboa, Instituto Piaget, 2000.
(5) DERRIDA, Jacques; FERRARIS, Maurizio, O gosto do Segredo, Lisboa, Fim de Século, 2006.
(6) DERRIDA, Jacques, Aprender Finalmente a Viver, Coimbra, Ariadne, 2005.