TEXTOS

Bob Brookmeyer

Se pretendêssemos estabelecer um conjunto de ideias que passassem a manifestar-se como uma procura de negação sobre a realidade, situada na postura deliberada e prospectiva dos momentos mais preponderantes da modernidade, encontraríamos no jazz algumas respostas que, não representando nada, seriam uma réplica contra a tendência de aceleração global que nos submete. Esta (re)volta parodiada sobre o movimento infinito para lado algum, sob a velocidade que sustenta a criação artística presente, incorpora-se no espaço instantâneo de muitas projecções. Da mesma forma, o conjunto de acontecimentos quotidianos que reagem como se estivessem à procura de, por todos os meios de escape, novos modelos de fuga, fazem prescrever e terminar o prazo de validade dos conteúdos, caso estes não sejam descritos ou parafraseados como um ritual de morte precoce. Os significados reagem àquilo que surge sob a forma avassaladora de uma inversão, na tendência para interpretar os aumentos sucessivos e constantes de aceleração que na música passam a actos de grandeza efémera, nada mais fazendo senão glorificar o estado supremo de intensa mobilização planetária. O centro de gravidade desta (re)volta fica retido sobre o que formos capazes de mostrar, de seleccionar e de chamar a atenção no meio da enorme torrente de imagens diárias que se aglomeram e se acumulam, à luz das condições de estimulação dos sentidos e das capacidades de assimilação. Interessa, neste pressuposto, arrancar das superfícies saturadas de visualidade forças de sentido contrário, alojadas nos interstícios de pequenos momentos - espaços isolados de imobilidade onde é possível sentir o ritmo do sobreviver. Detectar o caminho contra este poder de atracção centrípeta que passará a estar contido no espaço que sentimos necessário à invenção, para podermos estabelecer diálogos amplos de interacção com as artes, será o que precisamos de consolidar como uma nova proposta visionária. A atitude da posição contemplativa, astutamente situada em momentos de quietude e de afastamento da realidade activista, voluntariosa e persuasiva, talvez seja ainda capaz de condensar o impedimento de situações irrevogáveis pró-activas, onde o tédio prolifera na letargia que se exerce sobre a realidade portadora de imposições cinéticas - um movimento obrigatório e uniformizado que remete para um estado geral de depressão amovível, o qual não permite ver os movimentos rápidos, além das aparências. Quem só se deixa empurrar pela tendência social, caminha sobre uma vasta incorporação de matérias inertes e decompostas, onde os sentimentos entre desejos e prazeres não podem perceber os resultados, nem as perdas graduais de agudeza das sensibilidades. O estado de espírito daí resultante assenta na procriação incessante dos grupos integradores de interesses, dificultando e aniquilando o processo de superação individual que abre feridas nas condensações compulsivas dos actos circunscritos em momentos de sublime imitação generalizada, fazendo parte integrante da vida activa actual. Esta realidade sugere uma comodidade e uma passividade demitidas na alienação reconfortante entre máquinas e audiovisual, quando a hemorragia das vontades se dispersa largamente por todos os lugares, nos quais se representa o simulacro de um novo contrato social integrador, através da proposta ridícula e burocrática da vida organizada, segundo o processo comum e global que mais não é do que o alargado sistema de (des)qualificação do indivíduo. As organizações apoiam-se nas mesmas pessoas que, numa atitude de extrema obediência, mais ou menos ignorantes, participam no chamado sentir colectivo e na sua rarefacção e refracção social. Tudo constitui um ponto-chave no seu vazio pessoal, onde não são permitidos desenvolvimentos imaginosos. Só através da preparação de uma individualidade serena e útil é que se podem realizar importantes experiências sensoriais de assimilação. Quando se consegue impedir novos perecimentos sob a torrente de imperativos, de solicitações sobre todos os comportamentos exigíveis, evita-se o afogamento no excessivo processo de produção, onde cada um aparece como portador das actuações mais correctas e concretas. Para que nos possamos manter na permanência de uma actualidade sempre incipiente, preparando no irrisório dos pequenos prazeres mundanos, representados pelos elementos mais situacionistas do viver, é necessário que aquilo que mais nos humilha e que mais nos tolhe seja gerido sem medos. O pânico está focalizado nos actos de procura de uma individualização que aparece e não se alcança como tarefa inatingível, convidando ao amortecimento das nossas faculdades críticas e permitindo que as enormes cargas de aceitação implícita predominem no alargado consenso de ideias sem soluções de retorno. A obra de Bob Brookmeyer é um profundo ensinamento sobre como proceder neste estado de orfandade cultural, criado pela intensidade de uma moda que age de forma grotesca sobre o nosso imaginário, na ignorância e nas generalizações. O didáctico é uma actividade de desfiguração, apesar de a face da sombra conseguir manter intacta a aparente beleza do seu sorriso imobilizado.



Jason Moran

O que se pretende assumir como força de uma entidade soberana, totalitária, expansiva e planetária, encontra-se no facto de também nós podermos estar aprisionados por dentro dos discursos mais anti. Estes movimentos de aparente sentido contrário reduzem a uma espécie de vazio em alta velocidade aquilo que está sempre a reaparecer como manifestação do inconsequente, o mesmo estado de apatia e de demissão em que se encontram as sociedades actuais. O seu conteúdo assume-se num conjunto de ideias terminais que fazem parte da afirmação seminal do instituído. A retórica refeita à custa de uma velha ideia de renovação sobre as crises do mundo impõe, a quem sendo incapaz de se redescrever e de actuar sobre si próprio, limitando-se a fazer simulações sociais e colectivas, um ritual de tetraplegia, resultante da rasura permanente do seu problema básico, fomentado pela eliminação dos que são diferentes - uma perda de diversidade que detém aquilo que não propicia e faz procriar novos delegados do nosso medo. Ao contratarem zeladores de opinião que tomam parte nas sombras do quotidiano, as pessoas agem na conformação e no aborrecimento que está distribuído para consumo imediato, exortando quantidades impressionantes de indivíduos a fomentarem a sua pequena subsistência, nas coisas mais elementares. Estes novos representantes da cultura mediana glorificam-se nas personagens-fetiche dos heróis contemporâneos e emergem dos portadores destes momentos de tensão egocêntrica. Associado à ideia de progresso e de bem-estar surge um ser vazio que exala no meio de uma atmosfera terrivelmente atacada por aqueles que melhor sabem e promovem o disparate, as retóricas do discurso organizado no espectro fantasmagórico de um desenvolvimento global. São os pontos extremos e renitentes deste impossível estado limite que o excesso de palavras tenta esconder. Quando a nossa forma de actuar que, pelo facto de começar a ser demasiado patética, não exulta a multidão ocupada a desfazer-se do desejo mesquinho de satisfazer as necessidades intelectuais na concretização dos seus devaneios infantis e prazeres mundanos, elegem-se os verdadeiros momentos do devir, em que nada mais nos resta senão provocar alterações. Na apatia que se congrega como um amplo conjunto de atitudes automáticas e normativas, constitui-se uma subcategoria expressa por palavras vãs que os líderes, na acumulação de uma potência mínima contida em todos os discursos contrários, sabem perfeitamente exprimir.
A linguagem diverte-se e serve para iludir factos que mais não fazem do que pretender elevar aos céus uma ideia de vida como imagem apologética para o tempo presente. No trânsito rápido das palavras, na torrente vertiginosa das metáforas, no automatismo da mediania e nas paisagens medíocres do saber, encontramos elementos que compõem frases de uma plasticidade retórica, acompanhadas de práticas e costumes informes para não se criarem opiniões críticas. Quem se achar mais desinteressado destas questões e tenha facilidade de se abstrair dos êxtases e dos espantos, pode deixar-se arrastar para a grande atitude de fixação no anti-sonho, sendo esse mesmo o fundo ambicioso de todos os discursos. A pessoa não se pode encontrar na expressão retocada deste sujeito tipo, ou homem liberal porque é a personagem que se revê nas implosões das ideologias produzidas no século passado, sobrevivendo numa ilha abandonada rodeada de redenções, cujos desertos vão persistindo na imensidão de actores inventados a partir de insignificantes narrativas acumuladas nas nossas histórias. Aquele que se vier a tornar na entidade máxima e respeitável de uma sociedade destemperada e descarnada de sentimentos, poderá ser o representante dessas organizações tentaculares que se apresentam como se fossem a mais perfeita elaboração do espírito colectivo e racional. Quando se persiste em alcançar novas esferas de relacionamento e de esperança, construindo estruturas sociais que permeiam e redobram as tarefas de salvação, esquece-se de que o mais importante são as qualidades superiores do empenhamento, da energia, da vitalidade e da expressividade encarnadas na arte construída pelo homem. Deste modo, escolhe-se a forma solitária de apresentação, no caminho que remete para a necessidade de se estabelecer um percurso individual de realização. A música de Jason Moran tem essa espantosa capacidade de estar ligada ao mundo real, ao conhecimento, aos valores e às experiências, podendo libertar-nos de todos os afazeres relativos à necessidade de estabelecermos uma correspondência entre a representação artística e vida aconselha a música a não se deixar seduzir, sem a cumplicidade do sujeito disposto a viver ele próprio também essa experiência.



Ralph Alessi Quartet (com Jason Moran)

Os homens são dirigentes incapazes resultando daqui o facto de nada mais poderem fazer do que facilitar modelos de obediência e de humilhação civil que não pretendem zelar pela diferenciação do individual, nem, em particular, daquela característica que diz respeito à liberdade do indivíduo. No contexto de uma moda soberana que protege e que recruta permanentemente novos escravos, fazemos o melhor que sabemos. Quando se activam mecanismos de exploração, mesmo os que se divertem nos sectores mais anti das nossas sociedades, proliferam em sensibilidades amorfas seres híbridos e reconstituídos reconhecíveis no saber viver. Um modelo passível de se chamar paradigma para um gosto uniforme que se diz público. O regime de desconfiança está instalado, referindo que quem comanda é sempre o liderado, no que poderá ser aquilo que melhor sintetiza este pequeno mundo de fluxos e refluxos. A sombra produzida pelo estado de submissão continuada e reduzida àquilo que existe como objecto de inveja, nada exclui desta estranha possibilidade de contraditório, estabelecido entre todo o desejo eleito e a sua reconstituição em novo desejo. Através de uma relação absoluta e fausta de poder e propriedade, essa relação de proximidade sobre o que não se tem, revela ser, na realidade, a manifestação popular de desejo, numa permanência da crença potente e ridícula que une o verdadeiro proprietário ao seu objecto de estimação. As coisas que redefinem a propriedade sobre a protecção de um direito universal de posse, no interior de um mundo em absoluta decadência, transmitem a distância do espaço que se situa entre o objecto e a catástrofe, no acontecimento que lhe vai pôr termo. Existe uma perda na impossibilidade de mensurar as suas dimensões. A moda surge como alargado processo de imitação, o meio facilitador de reencontros em processos uniformes de medida que fornecem todos os antídotos para a resolução das contradições e das banalidades necessárias ao adiamento da mudança, na vertigem do seu desencadear apocalíptico. Por que motivo se impede a proliferação de uma agressividade invejosa a níveis incontroláveis, por que são estas sucessivas explosões sociais de energia que se acumulam e proliferam de mal em mal? O resquício deste acto sempre larvar de que é feita a agressividade compulsiva dos suicidas, confunde-se com os pensamentos de todos os que não pensam nestas coisas, criando-se uma matéria pegajosa e renitente que, ao ser incorporada nos conteúdos das acções mais inesperadas do nosso quotidiano, encontra nas palavras as estruturas de uma presença, de uma interacção e de uma aceitação diárias que se refazem permanentemente por dentro deste ideário modernista de mobilização intensiva. O movimento extenso da expansão das esperanças concretiza-se em mais consumo e mais progresso. As imagens apontam para simulacros que nos reaparecem constantemente como personagens a divagar numa aurora radioactiva, extenuadas nas simplificações, nas composturas dinâmicas residuais de afectos cuja falta de criticismo permite rever como um momento já destruído. A passagem do tempo por muitos impérios e por muita dominação social do bem-estar, nunca soube interpretar as suas ruínas, as energias salvadoras passadas, as esperanças desde sempre retomadas e anunciadas por homens que não nos podem ajudar a perceber os elementos presentes e essenciais à tomada de consciência. O que é mais razoável poderia propiciar uma ruptura com esse passado permanentemente adiado que devia deixar de fazer projectos para uma humanidade envelhecida e demasiado civilizada, à beira de um ataque paralisador e, pelo contrário, dispõe-se sempre a reviver novas histórias como se tudo se tivesse passado sem sofrimento, nem acontecimento. O que não nos autoriza a tomada de um impedimento extremo na concretização final da mudança, situa-se na possibilidade de afastamento sobre o que é fundamental - o estado de fascínio absoluto do limite, do fim e do ir. Nada irá prevalecer sobre este sentimento de aniquilação decorrente entre a nossa abundância material e a aglomeração de objectos. A vida implica muitas mudanças na formulação das suas elaborações de sentido e nas representações que nada interpretam, parecendo que existe nesta vontade de entendimento total uma insuficiente e incapaz metodologia de salvar. O fim que se reorganiza sobre o seu princípio e sobre o seu limite faz parte do imenso dilúvio que a novidade nos impõe, como momento que passa rapidamente no caso efémero que lhe deu origem. Tudo corre desenfreadamente na direcção do risco compulsivo de cada momento, arrasando as passagens nesse mar que se refaz, no nascimento de mais acontecimentos do nosso quotidiano. Na música de Ralph Alessi existe uma estranha alegoria, desde logo explícita no germe desfeito que inclui a desvirtuação da própria morte. Fica, como único atractivo que possuímos para nos mantermos vivos no meio de todas estas sensações de fim, a possibilidade de nos convencermos de que, a todo o custo, um dia irá aparecer exposta uma necessidade urgente de actualidade sobre o que se passou à nossa volta. Quando decidirmos apagar tudo que se revela, acrescentando um novo aditivo da totalidade necessária à glorificação do consumo das coisas mais banais, estaremos, desde logo, predestinados a desaparecer definitivamente. A seguir, fica-nos-á uma derradeira semântica de coisas irrisórias e de crises apocalípticas, expressas numa possibilidade de ruptura, destruída por vândalos que se terão apoiado no movimento incessante das imitações e que terão feito do nosso modernismo o seu paiol particular de explosivos - as dissuasões que os velhos e milenares acontecimentos de acumulação e de poder fazem lembrar - os grandiosos falhanços, os verdadeiros fiascos da nossa história.



Dave Liebman

Há uma analogia na história das heresias. Os fanáticos frequentemente reinventam as doutrinas de seitas anteriores sem se aperceberem disso e muitos dos movimentos que apareceram na arte tiveram uma tendência para partilhar um estado de anti-intelectualismo, adoptando pronunciamentos e apelos muito fortes sobre o sentido absoluto da ideia inicial de apocalipse. Cultivaram-se as possibilidades criativas dos homens e viveu-se o tempo caótico sem que tivessem existido preocupações com a continuidade nem com o passado, surgindo então muitos momentos de intenso fascínio. Em todas as grandes obras existe um delírio que nos aparece de forma transversal, formado pelas particularidades reflectidas nas linguagens utilizadas que se vão sabendo, sobre o sentido dessa novidade que cada uma integra. A novidade é sempre uma realidade que afecta todo o passado porque nada pode ser novo sozinho, ficando, neste sentido, situado naquilo que parece estar sujeito a um prazo - um período de tempo capaz de manter a tensão atractiva desse interesse. A sensação de surpresa, no contexto menos durável de todos os sentimentos e de todas as respostas estéticas, compõe a modernidade e faz com que se esteja sempre a descobrir muitas categorias nas suas possibilidades formais, já não podendo originar mais reacções. Isto não sugere que a criatividade esteja totalmente vedada à possibilidade de se fazer alguma coisa inebriante porque haverá sempre redescobertas, reavaliações frutuosas que podem voltar a ser analisadas como renovadas sugestões e reutilizações para esse passado presente. Esta verificação explica as diferenças entre a música de Schoenberg e a música-à-toa. No entanto, quando se sente que não temos, depois de tantas experiências fracassadas, uma forma única de olhar para o mundo, parece que persiste um sentimento terminal sobre uma perda total de sentido cujo absurdo não permite entender o que está à nossa volta. Deste momento desprende-se o perfil de uma atitude de negação, uma aurora de apocalíptica que já faz parte da ordem do moderno, neste tempo que nos acompanha, desde sempre, e que nos parece demasiado próximo. Isto responde à sua própria vitalidade naquilo que passa através dos factos narrados - uma torrente de histórias que se transformam em verdade para repor a ordem nos nossos medos e nos nossos desejos. Umas vezes ironizado, outras vezes qualificado de cepticismo e outras tantas vezes negado até ao absoluto mais extremo, o objecto artístico torna-se um elemento permanente de aglomeração de ideias, um apego a uma metafísica que se sublima nas artes e se aprofunda na crise e sobre a crise, agindo de fracasso em fracasso, nos apelos radicais negativos pós-modernos. Nunca ninguém quis abolir nada de relevante a não ser o momento negado, como uma necessidade de manter viva a atenção.
O que temos diante de nós não é o fim da arte, mas uma transformação das suas funções. Actualmente, aquilo que os artistas e os músicos vão fazendo é mais apurar a técnica de representar a realidade sem qualquer conotação religiosa, através de um meio de instrumentalizar a consciência, de forma a organizar novos modelos de sensibilidade. Eles deixaram de estar remetidos às práticas que tradicionalmente lhes foram legadas e tiveram de se tornar estetas da consciência, desafiando os meios, os materiais e os métodos. Caminharam para além dos sons dos instrumentos, alteraram rotinas, fabricaram sons sintéticos e ruídos. A velocidade das sensações, assim como as provas da assimilação e do entendimento, sujeitaram intensamente os contextos e estabeleceram um novo período de cumulação criativa que fomentou uma sensibilidade, cuja produção de objectos em massa se recriou numa desmesurada acessibilidade. As obras da actualidade, múltiplas em significados, adquirem um carácter de personificação muito grande, quando comparadas com os empenhamentos do romantismo e as do sentimentalismo do passado. O rigor da pesquisa que lhe está associado e as análises dos problemas que pretendem abordar, tornam apenas numa ideia ou num conceito aquilo que o seu autor é como proprietário. Quem explora intensamente a grande obra de arte sente a alteração da consciência e da sensibilidade, mudando a forma de perceber o mundo, alimentando as ideias e os sentimentos específicos que cada um pode adquirir em termos de educação e de modificação individual. O autor é simultaneamente proprietário, passando a exprimir o protesto como recusa de estimação e compromisso, numa época em que não existe nada de aceitável e onde não vale a pena arranjar argumentos. A torrente retórica generalizada e conformista, ordena-se de forma irrelevante e revela-se na incapacidade miserável de viver o seu corpo, para viver e morrer nele. Por isso o desencanto é uma pose sobejamente conhecida e muito em voga nos intelectuais contemporâneos cuja falta de vontade em estabelecer diálogos purificados, foi substituída pela possibilidade de sentir fora da libertação da moralidade e do didáctico. Concretizou-se o abandono definitivo de se aprovar e desaprovar tudo o que acontece. A chatice é somente um nome que se dá a um certo tipo de frustração. As linguagens faladas pelas pessoas que pretendem explicar a música e o processo criativo não escutam e são, na sua grande parte, uma manifestação evidente de pobreza. O trabalho de Dave Liebman representa a arte de hoje enquanto recusa da acessibilidade e exigência de um esforço para todos os que nela se envolvem, zelando pela sua compreensão. As generalidades e as classificações conspurcam a natureza e uniformizam a cultura, introduzindo ruídos e contaminações.



Maria Schneider Orchestra

As pessoas vivem numa pequena parcela de espaço/tempo. Aquilo que pode influenciar os acontecimentos nesta reduzida superfície relacional, fixa-se nas dificuldades de cooperação entre as identidades separadas pela contingência da linguagem. A tentativa para desenvolver um “vocabulário final” exprime-se na marca do discurso que se distingue e diferencia, neste processo rápido de alteração circunstancial em que evoluímos. Quando percebemos os movimentos em volta das palavras, localizados entre uma ideia de aparência e outra de realidade, surge aquilo que Wittgenstein referiu como os vocabulários que “são criações humanas, instrumentos para a criação de outros artefactos humanos, tais como poemas, sociedades utópicas, teorias científicas e gerações futuras”. A maneira como se concretizam estes produtos que estão para a arte em geral como tarefas de descobrir, exulta a criação de um vocabulário no qual se exprimem as verdades e as mentiras, nunca estando destinado a convergir. Neste sentido, a diversidade revela-se através das inúmeras frases dispersas, aplicadas na procura de uma forma de expressão distinta daquela que correntemente se usa. Uma nova realidade pode ficar dominada por metáforas, onde o fazer e a novidade são uma conquista. Contudo, aquilo que mais sobressai nesta conjuntura é a luta e a vitória de uma investigação diligente, conseguida na formulação de uma rede de significados que fornecem contextos e apuramentos de expressão, clarificando relações e contrastes entre todos os que não se falam. A representação de uma coisa pode aparecer de um modo correcto e silencioso, passando pelo facto de cada pessoa saber adoptar e modificar todas as incorporações dos autores que observou, leu e escutou. Esta actividade da chamada cultura torna-se a luta contra o receio da extinção do saber - uma tentativa de se conseguir fazer prevalecer a idiossincrasia no seu sentido individual, nessa visão acumulada e confusa que vai ficando límpida, através da grandiosa emoção que resolve as questões colocadas pelo medo de não se conseguir alcançar alguma coisa. Quem passar uma vida a tentar responder às questões de saber o que é, está certamente a concretizar uma possível e importante forma de esconjurar o receio da extinção de todas as respostas. Ao serem revistas as descrições que recebemos na variedade dos objectos a que acedemos, transparecem acontecimentos que incitam a utilização de palavras em novas acepções e que nos impedem de formular novas perguntas com palavras antigas. Aqui reside a identificação do nosso carácter distintivo. O jogo dos vocabulários e o seu confronto, levam a uma exploração de outras possibilidades de análise, em dimensões cada vez mais extra-planetárias, numa comunicação a grande escala, em rede e informacional que se pode mudar, alterando e substituindo as linguagens e a liberdade como reconhecimento da nossa contingência. O medo do criador será o de não lhe restar mais nenhuma obra própria a realizar. A tarefa artística pode ser concentrada nos actos de corte e de negação com as sequências que, ao recriarem-se nos seus vazios, removendo-se em retóricas apodrecidas e destruindo-se sobre sistemas anquilosados de persuasão, não coincidem num momento de maturação único e pessoal. Desta forma, atingem no sublime acto de rejeitar imagens salvadoras, o apagar das vontades em abreviaturas de crenças e de desejos que já não impelem a agir. São estes os momentos mais lúcidos da falta de futuro universal. Só lendo, observando e ouvindo podemos alargar os nossos contactos e conciliar as nossas dúvidas sobre o carácter que temos e sobre o outro lado de nós que é exterior e público. Todos receiam ficar prisioneiros do discurso em que foram educados e que é o seu. Heidegger desenhou a sua experiência de comunicação, tentando evitar ser didáctico, suprimindo o uso de palavras que perderam o brilho, aquelas que foram reduzidas quase à transparência pelo seu uso comum. Quando o que se inventa passa ao uso comum, é reduzido a mero instrumento para a realização de um fim exterior às suas finalidades iniciais. À luz do trabalho de Maria Schneider percebe-se como uma obra pode ser tão inclassificável quanto estranha, situando-se fora de um qualquer critério mínimo conhecido. Este fenómeno poderá explicar o esforço necessário para que se realize uma síntese apurada de acumulações recebidas, negando o expediente de agrupar semelhanças e diferenças que não sofram o tipo de banalização dada pelo uso ligeiro e utilitário das linguagens, de forma a que se consiga atingir um estado de máxima expressão, extemporâneo e deslocado a partir da enorme dificuldade inicial - algo que traduza uma libertadora transparência final.



Jason Lindner, Bill McHenry, Omer Avital e Daniel Friedman

Receia-se que a liberdade de auto-expressão, a livre expressão de uma vontade criadora, na sua forma mais pura e mais forte, constante em todos os indivíduos, possa vir a desaparecer, extinguindo-se do mesmo modo como tantos homens e outros seres vivos cuja incompatibilidade de determinados fins últimos sobre a perda do seu desaparecimento, fez prevalecer. A arte é mais uma voz que fala associada ao objecto no qual se incorpora. Através do juízo de valor, tudo o que possa existir com as suas características próprias, independentemente do propósito, do carácter e do meio social que lhe deu origem, cria um desfasamento cada vez mais inevitável que divide e afasta a obra do seu contexto inicial. Esta falta de espaço associada a um défice incessante de tempo, provoca a sua separação da natureza que, quando levada às últimas consequências, desprotege os sentimentos e as acções de quem frui, enfraquecendo leituras e conteúdos, impedindo a organização de defesas sobre a sua aguda permanência. É seguramente aconselhável nunca calcular o incalculável, nem pressupor que existe um ponto central no universo, sobre alguma estrutura eterna e pesada, a partir da qual tudo é mensurável e alterável. Ao ser preferível aplicar a cada contexto os nossos pequenos métodos individuais, mais descomprometidos e mais leves e que melhor se adaptam aos contextos fugidios e voláteis da actualidade, desejando produzir os melhores resultados, envereda-se por uma atitude susceptível de encontrar novos conceitos de humanização, numa estrutura social que surge num sentido muito impessoal e não induz nem uma ideia de progresso, nem de evolução - um modelo clássico já desgastado que permite estudar, distinguir e classificar aquilo que pode ser isolado através da detecção das suas características mais permanentes. Quando as situações começam a tornar-se mais familiares e mais presentes no nosso mundo, este facto aparentemente benéfico, leva a que fiquemos pressionados por ele e, no seu seguimento, percamos as capacidades de reparar e de rescrever os seus conteúdos. Todos falam das razões do coração, da natureza moral ou espiritual, do sublime ou do profundo, da visão que se adquire nas tipologias especiais do conhecimento e da compreensão, interagindo sobre uma unidade inscrita no universo, uma infinidade de relações que permite alcançar a ligação entre o movimento inalterável, gerado pelos laços existentes dos que nasceram e daqueles que ainda vão nascer. Sente-se uma corrente indiferenciada que sublinha este contraste, gerando profundas diferenças e até violentos antagonismos entre a compreensão e o conjunto de situações expressas no realismo céptico e no autoritarismo dogmático. Apesar de todas as mudanças entre o interior e o exterior, persiste o conhecimento dos limites da imaginação e do pensamento - o confronto com o padrão exterior que divide e fragmenta a verdade. Não existe mais tempo para visões de unidade na experiência da história, como se esta fosse possível conhecer, enquanto verdadeiro saber de uma realidade assente na crença incomunicável da sabedoria do sábio. A música de Jason Lindner, Bill McHenry, Omer Avital e Daniel Friedman indica que nada pode ser prognosticado porque a parcela de vida submersa não examinável fica permanentemente fora do alcance das inúmeras possibilidades de apreensão, ampliada nas complexas relações em rede. A ficção que permitia ver aquilo que nos escapava, mostrando a consciência de interacção entre o ponderável e o seu contrário, aquilo que podíamos encontrar no quotidiano, ensinava a resolver conflitos, ao achar situações de equilíbrio no que se vê e naquilo que nos limita. O que funciona e que é incompatível, o que se pode conciliar no que é inconciliável, o que se vive e o que as finalidades deixam atingir, não possibilita o encontro de uma solução, nem a resolução dos problemas que o quotidiano coloca porque agimos de determinada forma e não de outra e porque orientamos a vida como se existisse um propósito único capaz de adquirir uma certeza mínima. O conhecimento sobre a falta de uma verdade que vem causando destruições irreparáveis nas parcelas de vida de cada indivíduo e na forma como vamos ficando impedidos de ter certo tipo de reacções, abre o horizonte da contingência como a única grande escola da existência.
AUTOR: IVO MARTINS 
EDIÇÃO:
Programa Guimarães Jazz 2005 - Câmara Municipal de Guimarães/ Associação Cultural Convívio/ A Oficina     DATA: Novembro de 2005 







                                 INTRODUÇÃO


Quando falamos em alcançar visões concordantes sobre as dificuldades sofridas no caminho da existência, estamos a referir o que elas têm em comum relativamente à sua disposição no tempo. A prática de tratar o passado como um caso presente, quando essa mesma ideia pode ser associada ao futuro, faz com que exista uma complementaridade que põe a questão de ter de se saber agir com as ideias que, aos nossos olhos, se encontram velhas e desactualizadas. Esta fonte de estímulos, que teremos de ignorar ou de rejeitar, caso contrário ocorreria um erro definido na descontinuidade entre os acontecimentos que persistem num determinado conjunto de interesses, faz com que tudo o que vai passando, apareça como um momento que, sendo visível e sustentado por inúmeras manifestações de evidência, nos pode trazer uma novidade. O novo não é um conceito crítico sobre o qual se possa trabalhar, sem que se perca a esperança de encontrar outras indicações de valor para além desse estado. É impossível falar do que agora acabou de surgir, sem ter em consideração que estamos sempre a utilizar uma linguagem antiga. Há, portanto, uma tendência para agirmos de forma generalizada sobre as análises que fazemos, sem que tenhamos consciência de que, de facto, acontece uma incarnação que altera as relações com o passado. Ao ser uma transição sem fim, o tempo não termina com o decorrer das histórias que ficaram anexadas na memória e, ao percebermos que as histórias continuam a não explicar as suas brechas perturbadoras, os seus intervalos de falta de entendimento, as suas fissuras, a segurança adquirida no saber, continuamos sem encontrar explicações suficientes sobre a complementaridade final de todos os acontecimentos. Neste sentido, a tarefa de se estabelecerem relações causais nas várias fases por onde passam os acontecimentos, entre momentos importantes que aparecem durante um dado período, uma época, uma era ou um contexto de um determinado movimento estético, torna-se uma actividade de difícil realização, sobretudo quando a concordância encontrada é uma ordenação simplificada, uma hierarquia sujeita e dependente daquilo que se está a fazer. Não é fácil aplicar a muitas das preocupações de autocrítica sobre o mundo em permanente mudança, a nossa intervenção que é cada vez mais insuficiente para alterar o desenrolar dos acontecimentos. Uma ideia que não seja de apocalipse não transfigura a tendência traduzida num estado generalizado de grito permanente, revelado sobre um sentimento de impotência global que furta o entendimento do mundo, no que ele reproduz de paixão infeliz sem forma, nem tempo. O programa do Guimarães Jazz está dominado por todo este tipo de conjunturas que determinam as nossas avaliações. Nada pode ser utilizado sem uma ironia provocante porque o novo é sempre ininteligível e a sensação de que existe um pequeno número de pessoas, aglutinado num público minoritário que entende este facto, não põe fim às angústias que sentimos, nem ao aparecimento de muitas interrogações. Se a novidade não reflecte absolutamente nada e só se define através de uma relação estranha na apreensão sobre o futuro, do qual o núcleo muito restrito de indivíduos compreende o seu significado, utilizando modelos que retiram do seu passado mais remoto e oculto, é porque a obra de arte contém particularidades que não saberemos nunca entender, nem nunca seremos capazes de dominar. Aquilo que é novo implica impotência e conhecimento sobre um passado que, não sendo necessariamente novidade, pode ser utilizado por todas as pessoas como processo natural de compreensão. Temos uma tendência para reler o que, durante muitos anos, este festival forneceu como elemento crítico, revelando que se nos tivéssemos preocupado em estabelecer ficções de concordância, elementos facilitadores de uma unanimidade sobre todos os discursos de ordenação no tempo, continuaríamos a não encontrar respostas nas acções de integração que se fizeram sobre a realidade fixada num fim comum. Nunca teria sido criada tanta tensão à volta do Guimarães Jazz, nem teriam surgido alguns ambientes de ruptura como momentos essenciais favoráveis ao crescimento e à consolidação dos projectos porque estabelecemos pontos de corte e de atrito As nossas decisões parecem ser réplicas atentamente confrontadas com explicações sobre o acontecido. O que nunca foi capaz de ter saído do estado de concordância ou do estado de um assentimento concordante, tende a atrofiar-se e a morrer rapidamente. Um dos aspectos mais importantes do Guimarães Jazz, situa-se no suceder dos acontecimentos nos quais se estava, por vezes, muito longe de imaginar o número de consequências pelo aparecimento de discursos alternativos, pelas narrativas interessantes e úteis que vieram a promover novas aberturas. O que se passava era o ressurgimento de um fenómeno geral de recusa e de integração que se vinha realizando todos os anos através do jazz, dos músicos e dos projectos apresentados. A possibilidade de, neste contexto, surgirem novas reacções e novos ciclos de acontecimentos, criou as condições necessárias ao desenvolvimento e ao desenrolar de renovadas leituras. Se admitimos para a arte em geral, uma ideia na qual está contida uma afirmação de realidade, devendo o seu conteúdo estar sempre em primeiro lugar, é porque percebemos que esta dedução se aplica a tudo aquilo que vamos construindo como proposta de programa. O interesse não se deve esgotar nos sentidos retirados, nem na proximidade relativa da ordem dos concertos em cada ano. O momento presente, aquele que está mais nítido, as influências dos outros festivais, a palavra veiculada na escrita jornalística, as conversas das pessoas interessadas, induzem outras análises e novas discussões que acabam por focar quase em exclusivo, o espaço de tempo do festival, nada podendo ser feito sem que tudo isto sofra as consequências dos aspectos mais equívocos. Quando tentamos estabelecer uma ordem e um desígnio sobre este presente, estruturado na programação do Guimarães Jazz 2005, sentimos que estamos a escolher uma via de crise que se sujeita a ser interpretada de muitas formas diferentes. Este aparente desfasamento parte da necessidade de que algo deveria ser dito sobre o sentido dessa crise, expressa nas explicações que se retiram do público, dos diversos meios de propagação de ideias e das conversas das pessoas. Pensamos, contudo, que esse momento pode ser um elemento central do empenhamento em prol de uma tentativa generalizada de compreensão, causada pela sua singularidade. Quando o Jazz pode estar a ser levado ao extremo limite da sua própria existência, podendo ser engolido por outras músicas que se situam num tipo de unidade histórica mais consistente, sujeito a uma transição catastrófica para outra cultura que já outros teriam sentido, também percebemos que o desenrolar dos acontecimentos, através destes pontos de vista aparentemente negativos, podem ser o reflexo de um saber sobre as limitações da nossa actividade. É sempre difícil deduzir o porquê de não termos o direito de construir um programa que tente ser o reflexo de uma sensibilidade apocalíptica generalizada, quando essa estranha forma de sentir nos aparece de uma maneira tentadora, no que vem surgindo com mais evidência no termo de uma era cujos momentos críticos tanto podem ser princípios como fins. Ao sermos confrontados com os medos actuais, com o cepticismo das imagens do horror, com as poses grotescas dos homens do poder, com a imagem profunda da decadência, com a falta de confiança profusa das organizações e com a impossibilidade de uma renovação sem perdas sérias de vária ordem, percebemos como nos encontramos cercados no meio de um momento de abertura suprema, numa época que se quer transformar noutra e que, paralelamente, jamais se poderá recuperar. A nossa inocência perdida, aquela que existia no tempo em que para se ouvir jazz não tínhamos necessidade de dar a mais leve justificação está, desde agora e enquanto existir esta consciência de possível perda de valores que sentimos aumentar à nossa volta, num decréscimo de influência. Será bom dedicarmo-nos à tarefa de defender as ideias de todos aqueles que existem e que nos falam do Jazz como uma arte que adquiriu um papel, ao qual pode ser atribuído um significado humano de uma radical liberdade. Deverá pôr-se de parte o que consideramos demasiado, no momento menos apropriado para as necessidades e para as práticas contemporâneas. O hábito de nos aproximarmos de uma obra de arte com uma atitude receptiva de interpretação, alimenta a fantasia de que existe algo mais do que o que se detecta na noção de conteúdo - uma determinação superior alojada no objecto sobre o qual se aplica uma excessiva ênfase.
“Não há factos, apenas interpretações”, dizia Nietzsche, alertando para o perigo de sermos incapazes de compreender o fenómeno, não achando um equivalente necessário à preservação da realidade que nos cerca. Neste pressuposto, o programa do Guimarães Jazz não pode ser percebido como uma coisa que remete para o acaso, ou para um sentido que não estivesse já contido noutras edições. Se existisse um explícito desprezo por tudo o que até aqui se tinha passado, a realidade resultante não teria qualquer significado plausível e a interpretação surgida neste quadro seria impertinente, traiçoeira, conservadora e dramaticamente atrofiada.
[ ENGLISH ]
Katrine Madsen com a Danish Radio Orchestra

O que me atrai na decadência é a possibilidade de todos poderem sorrir perante a auto-desilusão permanente. Neste estado de recusa de viver, segundo os padrões ditos correntes, teremos de exceder sempre os nossos limites como uma forma de superação, utilizando a destruição. Não passar além das fronteiras do nosso pequeno mundo e não esperar muito dele, anulando uma parte considerável de todas as barreiras e saindo do círculo normal das coisas efémeras, faz lembrar aqueles que aplicaram questões de estética a meros valores pecuniários, forçando os artistas a venderem os seus produtos como se fossem mercadorias. A decadência situa-se no ponto crucial dessa passagem - no preciso momento em que sentimos ter deixado de existir um equilíbrio entre o útil e o necessário. Tudo o que se define como útil tem uma tendência degenerativa evidente e vive sempre abaixo de um limiar mínimo de sobrevivência. Quanto mais a utilidade passar a ser forjada por sistemas massificadores de formação de opinião, tanto mais a utilidade daí decorrente será uma simulação. Por vezes parece que estamos a viver por baixo de uma estação de comboios - cada passagem de locomotivas equivale a um abalar intenso do nossos corpos, os quais ficam sujeitos, de uma maneira indefesa, às vibrações dos carris. Tudo treme e tudo se sente inseguro, incapaz de reagir a uma ideia de medo mesmo à beira de um atropelamento destruidor. Este momento de insegurança transforma-se num grito longínquo de impotência que anuncia uma enorme perda de unidade sobre todas as formas de vida passadas. Deixámos de ser homens que orientavam os seus comportamentos, segundo utilidades que os instruíam como seres humanos preocupados com “responsabilidades civis e sociais”. Perdemos para sempre o sentido do mundo coerente, explicado segundo um processo de evolução e de progresso, no qual apenas somos pequenas partes de um universo em crise. Foucault pensava que a verdadeira história do homem fora demasiado curta e que naquele momento ele era um ser obsoleto. Porém, o que não é obsoleto, actualmente?
Terminaram os tempos das rupturas. Queremos e desejamos viver em paz e não se devem atribuir papéis e destinos que não sejam sentidos como nossos. O facto de se estar farto das grandes profecias e das missões impossíveis, no desejo apenas de se ser um tipo normal que não se situe entre uma ideia de Deus, nem de Diabo, não querendo fazer parte de nada em especial e não se interessando pela história do homem, nem pelo seu futuro, talvez consiga transformar os homens em seres responsáveis por alguma coisa que se aperfeiçoa, na demissão de todos os cargos e lideranças.
Poderemos pensar que tudo isto se deve ao grau de sofisticação e de entendimento que atingimos, como parte de uma grande civilização e de um desenvolvimento que progride numa força extraordinária não susceptível de se controlar. Assim sendo, isto pode, de facto, acabar muito mal. Não ultrapassaremos nunca a imagem de um homem de rua, vulgar e mundano que, provavelmente, será mais um medíocre consumidor que nunca se irá preocupar com os sons puros, despidos de significação humana. A maioria concorda que vivemos num mundo pluralista, capaz de aceitar sem limites todos os acontecimentos e isto faz com que se esteja imediatamente perdoado porque, em princípio, tudo é permitido. Daí que nos seja autorizado enganarmos e enganarmos os outros, da mesma forma como a velocidade da mudança tende a desvalorizar os efeitos da própria mudança. Deste modo, vamos assistindo ao enterro diário da novidade, daquilo que nos aparece como um momento de superação da realidade e da força criadora, inscritas na arte suprema de se ser um homem disposto a praticar actos de heroísmo, numa sociedade global e mutante. Somos os filhos do tempo presente, do dia eterno, do olhar fixo, do gesto parado, do acto falhado... no espaço descrito por Baudelaire quando escreve em Les Fleurs du Mal, que «A modernidade é o transitório, o fugitivo, o contingente, a metade da arte, da qual a outra metade é o eterno e o imutável...». A música de Katrine Madsen com a Danish Radio Orchestra está reflectida numa ambivalência e numa ampla oposição de valores entre estes dois grandes momentos.



Art Ensemble of Chicago

Ao fazermos uma escolha estamos a assumir todas as responsabilidades inerentes a esse acto. Perante as consequências de estabelecermos um possível entendimento totalmente diferente daquele que tínhamos acerca das nossas ideias, coloca-se-nos a questão da possibilidade de errar e, neste sentido, vem-nos de imediato ao pensamento uma interrogação sobre qual vai ser o movimento causado pelo medo que nos surge, na sequência dessa liberdade. Há dias em que a dimensão do receio causado pela abertura da mente a todas as hipóteses possíveis de libertação, pode repelir qualquer tentativa de superação. A ultrapassagem do patamar de entendimento em que nos encontramos, repele e anula a acção de escolher porque, quando falta uma referência que possa ajudar a reflectir sobre os vários passos a dar, surge um vazio situado no estilo que assume a totalidade da decisão tomada. No contexto da criação de uma obra de arte, o estilo traduz a vontade do artista que deseja explorar até à exaustão todas as possibilidades da imaginação, podendo ser capaz de originar uma série infindável de elaborações sobre o mesmo tema. As opções que resultam das decisões sobre as características estéticas de uma obra, são também um modo de a restringir, de a limitar numa recusa contida noutras elaborações. As repetições tornam-se forma, revelando uma parte essencial da obra que surge inteligível, indo assim, facilitar a sua compreensão. A possibilidade de se virem a acumular impressões, como conjuntos de estímulos imediatos dos sentidos e de estes mesmos estímulos serem memorizados, pode vir a influenciar todas as escolhas futuras, criando aquilo a que muitos chamam estilos. A dificuldade ocasionada pela impossibilidade de os estilos poderem nascer lentamente e evoluírem gradualmente através de longos períodos de tempo, como momentos necessários à sua plena assimilação por parte do público que se apoia nestes mecanismos de repetição, é um dos aspectos mais importantes que ajuda a definir os tempos presentes. Como tudo está a acontecer muito rapidamente, de tal forma que nem se dá o tempo necessário para que possamos respirar, os processos de assimilação ficam por completar e, ao serem percebidos como uma obra que se repete num curto espaço de tempo, muitas das suas áreas envolventes tornam-na imperceptível e simultaneamente ininteligível. Revela-se assim, ser essencial ao processo de apreensão do seu conteúdo, a possibilidade de possuirmos um passado necessário à descoberta dos princípios da variedade e da redundância. Todos os estilos são, por isso, um expediente que o artista possui para poder insistir em qualquer coisa. As obras de arte mais poderosas são as que nos transmitem a ideia de que o seu autor não tinha outra alternativa, sendo esta maneira de actuação, o resultado de uma concentração intensiva sobre o seu estilo. É evidente que não basta colocar a questão de se saber o que está certo ou errado. Todas as tomadas de decisão são limitativas, sobretudo quando tentamos interpretar fenómenos estéticos. Tanto este esforço como o empenhamento individual são insuficientes para elevarem as análises acima de um ponto de vista pessoal.
Os momentos mais altos são sempre isentos de ideias interesseiras. As retóricas que resultam do poder servem, no fundo, apenas para nos veicular a uma unanimidade que, por mais atractiva que seja não consegue compreender senão, de modo censório, a textura, as particularidades dos seus actos, nem possuir uma visão privilegiada da realidade contemporânea. As críticas genericamente falando, pese embora o seu apego ao progresso, mostram-se singularmente insensíveis à maior parte dos aspectos interessantes e criativos. Quando sentimos que existe uma clara falta de interesse pelo processo criativo, naquilo que se pode disseminar como ruptura, tão diferente em qualidade como em importância do conceito de vanguarda, verifica-se que, cada vez mais, aparece uma tendência para perceber a arte contemporânea como um conjunto de actos de alienados, desumanos nas suas formas, ou mecânicos nos seus pressupostos, conjugados numa fácil exploração da sua incapacidade em estabelecer consensos nas sensibilidades. Esta fraqueza faz com que o movimento artístico moderno se baseie numa espécie de forma de poder pelas características formais que adquire. A compreensão do mundo exige coragem, prazer pela aventura, resistência à solidão e também pensamento apurado e livre de ressentimentos. A alienação como um angustiante subproduto da nossa inteligência persegue-nos, impondo face às nossas dúvidas, as maiores incertezas, - anulações numa visão dualista da cultura - uma consequência das várias estruturas institucionais que nos cercam e nas quais nada se forma de maneira neutra. São os homens que controlam e fomentam esta alienação intelectual, em que os próprios vivem padrões de valor situados numa visão de rejeição da dissidência. A arte vista como um acto capaz de salvar, através de um curioso e ambicioso processo de catarse, parece ter sido abandonada, passando a exprimir-se numa técnica de desempenho político. Quando se estabelecem juízos críticos, as atitudes das pessoas parecem movimentar-se dentro de um jogo, uma estratégia de luta vista como actividade manipulável, utilizando esquemas de confronto diferentes, no qual os jogadores podem realizar diferentes lances. A linguagem é a metáfora para analisar estes movimentos. As análises não provam nada sobre os conteúdos, nem sobre os objectivos que exploram, a não ser o facto de se verificar a necessidade de uma ordem considerada numa posição mental, assente na ideia de que não existe uma verdade universal sobre as relações que se desenvolvem entre a música e o seu ouvinte. As narrativas que daqui resultam são modelos que confirmam esta variabilidade entre uma experiência musical e o gosto pessoal. Contudo, as narrativas também são sistemas lógicos de descrição e de flexibilização das regras do jogo, quando este começa a sugerir tensões e contradições.
A distância da experiência pessoal, perante a ideia de segurança dos factos e dos sentimentos, é um momento essencial de estruturação dos discursos que assim se deixam purgar pela severidade das suas contenções. A música dos Art Ensemble of Chicago indica que o jazz vive um momento difícil de se situar, face ao horror da violação, da destruição final e irrevogável dos povos que lhe deram origem. Esses povos tinham uma história que nos era desconhecida e que se situava por fora das sociedades conduzidas pelo domínio do progresso, vivendo num estádio mais estático, cristalino e harmónico de liberdade. Por isso, essas sociedades eram muito mais impregnadas de pensamentos míticos. Neste sentido, o seu acto crítico foi simultaneamente marginal e central, localizado dentro de uma realidade que se torna quase intolerável, organizado por uma intelectualidade marginalizada, traduzida no homem que prefere a alegoria a uma consciência histórica. Há épocas demasiado complexas, demasiado barulhentas para se poder escutar a voz do bom senso, nos quais a verdade não é um elemento fundamental de aquisição para uma visão sadia do mundo. A necessidade de verdade não foi constante na história dos homens e, por vezes, uma ideia, mesmo sofrendo de distorção, pode induzir um impulso criativo superior àquele que foi gerado pelo escrupuloso cumprimento da verdade. Isto revela que o equilíbrio resultante da aplicação de uma verdade nem sempre tem como seu oposto o desequilíbrio assente na elaboração de uma mentira.



Final

Existe uma tendência conjuntural que leva a que muitas das abordagens sobre o jazz se façam utilizando métodos descritivos e narrativos. A história olhada numa perspectiva cronológica é uma das formas mais estafadas de perspectivar e de estabelecer sequências sobre sequências, pretendendo-se dar a entender que se está a perceber mais alguma coisa sobre o que já está ordenado no tempo. Outra das formas que se encontra bastante em voga é a das chamadas práticas descritivas sonoras, exercidas sobre as gravações que se colocam no mercado ou sobre os concertos que parecem acumular, nesses momentos cruciais, muitas razões e causas suficientes para serem capazes de fornecer explicações sobre o facto passado, sobre o momento do registo ou sobre a sua audição. É evidente que, ao repisar estes terrenos, percebe-se que se procuram achar apenas pequenos expedientes de última hora, numa sobrevivência reveladora de pobreza sobre conceitos e conhecimentos. Os seus praticantes afligem-se, empobrecendo de uma forma irreparável todas as leituras e todos os significados que a arte pode fornecer e que, neste caso, a música de Jazz pode conter. Quando isto se passa, muito pouco haverá a dizer sobre a enorme banalidade das linguagens que formatam textos e escritas, com mais ou menos metáforas e dizeres a propósito. Tudo vai caminhando penosamente de lugar em lugar, com mais ou menos datas conhecidas, com mais ou menos nomes e lugares de nascimento e de morte...
O didáctico é um enredo fácil que serve de alibi a um buraco negro do conhecimento contemporâneo, perigosamente generalizado no saber tipo shopping, assente na ideia geral que se assume numa simulação matreira, sobre o medo de arriscar o mais pequeno pensamento sem rede. Vive-se numa época em que não se aconselha grandes divagações intelectuais à volta daquilo que não é desde logo explícito, nem daquilo que não se determina com clareza perante os nosso olhos. Logo a seguir e de uma maneira muito subtil, estamos a ser convidados a reter as práticas de exercício analítico, as subtilezas das visões dialécticas, as descoberta dos nossos vocabulários finais, a idiossincrasia e a destreza da nossa imaginação...