AUTOR: IVO MARTINS 
EDIÇÃO: Revista Acto #9 / ACT - Associação Cultura Tirsense     DATA: Dezembro de 2006 
Esta é a história de um crime - do assassínio da realidade. E do
extermínio de uma ilusão - a ilusão vital, a ilusão radical do mundo.
O real não desaparece na ilusão, é a ilusão que desaparece na
realidade integral.


Jean Baudrillard
in O Crime Perfeito
As vítimas olham-se sem perceberem o assunto que as aprisiona, nem o acontecimento que as manteve unidas,
como se esperassem uma manhã pacificada. Sem essa troca de miragens violentas que as adverte, sem essa
eminência de morte que as modifica, não encontrariam razões para sofrer, nem aceitariam as imposições que
limitam a existência e que as podem separar do conforto transmitido por uma ideia de espécie humana. Seres
sujeitos a sucessivas formulações ideológicas tornam-se nas novas figuras alternativas da decadência do poder,
cada vez mais anónimas e indefesas. Revelam-se em aspectos particulares, que podemos classificar como
subcategorias, neste laissez-faire praticado em economia, e no qual os proprietários são autorizados, em nome da
liberdade, a destruir vidas infantis, a maltratar a saúde das pessoas e a personalidade de quem trabalha. Como se
as dores já não causassem mal-estar suficiente, sentimos o seu medo ancestral, a ansiedade de uma sessão de
tortura encarada como fatalidade, o destino num quadro de referências dolorosas que compila as várias épocas,
de várias civilizações. Não existe o menor impulso de dignidade que ponha cobro à falta de vergonha dissipada,
para sempre, entre as pessoas. Em todos os seus momentos de vida suportados por uma admiração pelo estado de
posse, através da acumulação de objectos que lhes conferem um estatuto ilimitado de individualidade, persiste o
poder inquestionável do grupo a que aceitaram pertencer. Durante todo o tempo de observação recíproca, os
pobres e os ricos movimentam-se como sujeitos que não conseguem passar muitas horas juntos sem recorrerem a
um palco de disfarces, relembrando temores passados e acusando-se mutuamente. A sociedade fomenta uma
ganância insegura e verifica a capacidade de todos os lugares futuros continuarem a permitir a circulação dos
seus próprios cúmplices, os mesmos que, como sombras da transparência social, exploraram a memória dos
antepassados e anularam vestígios acusadores de esbanjamento e destruição.

“Auschwitz correspondeu a um mal moral que outros crimes de guerra não chegaram a ser porque pareceu
deliberado como outros não foram”. (1) O espaço cheio de lembranças recentes de escravatura em massa
transferiu-se para novos conjuntos de terrores, reservados ao uso e detecção de uma violência mais alargada e
dispersa por todas as partes do mundo. Numa profusão de imagens de dor e de sofrimento, erguidas num
exercício de profanação dos sentidos, discreto e total, fornece-se a ideia de libertação de um povo, a afirmação de
uma raça reprimida ou uma oferta de sobrevivência para uma espécie perseguida. A massa de população
empregue no meio industrial e produtivo está a ser despersonalizada e, quem trabalha, insiste em tornar mais
próximas da aceitabilidade global, essas estranhas sensações de perda e de catástrofe que nos cercam. O sítio da
morte/trabalho começa a esvaziar-se das diferenças passadas. Os ruídos dos degredos/máquinas vão continuar a
incomodar de modo simbólico, formando um ensurdecedor barulho civilizacional, silêncio habitado por um
rumor de engenhos automáticos a trabalhar sozinhos, entre outros mecanismos que se desresponsabilizam e se
reestruturam incessantemente por dentro das mais variadas tarefas. Somos os herdeiros dum presente
constituído por novos patrões/patronos, uma gente que se organiza em empresas à escala celestial, e que constrói
organizações sublimes sem território, nem local de permanência. Processos organizativos que dominarão o nosso
mundo tratarão de apagar, com mais rigor ainda, os vestígios de uma liberdade demasiado ingénua, sempre
entendida como possível para atingirmos o ideal humano. O ignorante passa a personagem-chave de um futuro
ao longo do qual se farão, sem grande sucesso, guerras cada vez mais mortíferas e muitas outras simulações de
movimentos revolucionários. As formas surgidas desta reestruturação de sentimentos traduzidos no
empolamento de posses aproximam-se do prazer cego de desfrutar. Pela satisfação de um enorme gozo no meio
do grande sofrimento mundano e planetário, um insulto insonorizado desliza sobre o grito de revolta de todas as
vítimas, abafado por isolamentos acústicos de locais que conhecemos como nossos, e que se transformaram,
também, na face exterior descoberta a reflectir uma dor inadiável e clínica. Ficaremos para sempre conhecidos
como os maiores fabricantes de horrores.

O mundo repleto de seres adoentados possuídos por uma estranha energia destrutiva, acumulada pela
necessidade de realizar actos furtivos e selvagens, manipuladores da desordem e do excesso, torna a carne
incapaz de albergar as marcas de tanta e subtil tortura. São golpes microscópicos e invisíveis, retalhados por
dentro, expostos numa longa série de conflitos elementares que imobilizam. Ficamos submersos num mecanismo
de faz de conta generalizado - a coreografia que persiste na visão colectiva de um mundo imperfeito, reflectindo a
ligeireza dos aspectos e a podridão das oportunidades. Ao aproveitarmos as vantagens do anonimato, onde as
virtudes públicas e os vícios privados são assuntos sem interesse, apagamos os perfis de nós próprios, como
alguma coisa de pouco séria, espelhando a importância da compaixão que dialoga isolada - longo solilóquio
sobre doenças colectivas e impulsos incuráveis.

Percebem-se as razões que homens poderosos invocam para se agredirem, ao sabor dos acasos e maus-tratos, na
organização dos seus ímpetos mais primários, padecendo dos mais terríveis aniquilamentos de consciência. Os
choros e as súplicas espalham-se entre promessas de actos bons e inocentes, e as acções totalitárias onde as
caridades escorrem insensíveis, multiplicam-se. Os corpos solidificados estendem-se viscosos por cima dos
cadáveres, dentro de confessionários atulhados de gente ansiosa e uma autoridade fétida que desagua em
pântanos de retóricas supérfluas. Andam frases feitas no ar. Voam símbolos e signos associados a outros lugares-
comuns, que caminham em sentido contrário, formando novos rios de mentiras. Estes factos fazem mais
histórias, com mais palavras, na passagem de uma peregrinação sem final. Sobre as maiores misérias constroem-
se frases de pompa e circunstância que se sucedem ao silêncio ferido pelo fracasso do crime hediondo e
humanitário. Na pobreza age-se como se se fosse portador de uma paixão e de uma crucificação entre
padecimentos onde tudo falta. Os acontecimentos infelizes jazem serenos nas igrejas e agora os negócios atendem
mais compradores do que no passado. Adquirimos objectos de afirmação perpetuados por espaços cheios de
seres arrependidos. Nos lugares de culto os gestos são feitos de sofrimento, e lá se armazém todas as penas
sofridas e relembradas que incessantemente nos ensinam.

“Quanto mais a pessoa o ouvia, mais óbvio se tornava que a sua incapacidade para falar estava intimamente
ligada a uma incapacidade para pensar - e, nomeadamente para pensar do ponto de vista do outro.
Comunicar com ele era impossível, não porque mentisse, mas porque se rodeava de mecanismos de defesa
extremamente eficazes contra palavras e a presença dos outros, isto é, contra a própria realidade.” (2)

A visão do colapso total aprisiona o tempo para um mundo apocalíptico, o espaço imóvel que se estrutura num
grande sisma, que separa os bons dos maus e provoca, a partir daí, a continuação da grandiosa falsificação
universal das democracias com políticas de oposição farsante. Conhecem-se todos muito bem, estão sempre
dispostos a trocarem pequenos favores. As suas aparências-clone animam cascatas de imagens sem sentido,
articuladas sob paixões decadentes, em jogos de contradição e evasivas de linguagem. Homens exibem-se através
de verborreias, palavras/sombras, gestos acelerados (próprios do cinema que perdeu a fala sem chegar a
transformar-se em filme mudo…); snuff movies. Sequências de imagens-produto, contaminadas por publicidade
sórdida e pestilenta, desenvolvida a partir das mais baixas técnicas de repetição compulsiva, satisfazem-nos até à
náusea. Assiste-se ao tráfico obsceno das influências, enquanto a obra-prima do colapso terrorista obriga pessoas
a desempenharem papéis destituídos de senso. Os actores preferem falar a mostrarem-se como são na realidade.
Gostam de contar histórias, deixando de observar aquilo que os rodeia. O som audível da conversa minora os
efeitos na ruína, ilude os elos de ligação através de uma linguagem que se aproxima de um estado de falta de
verdade, ocasionando destruições irreparáveis nas sensibilidades. O que se perde destes ritos de adormecimento,
daquilo que desaparece constantemente (como se o desejo de reparar alguma coisa evitasse mais momentos
aniquiladores), não se sabe valorizar sem se recusar o que resiste. Os que se sujeitam à decomposição da
banalidade, à ruptura dos corpos corrompidos, ao apodrecimento em situações extremas de falta de liberdade,
parecem porcos que sempre fizeram dessa impossibilidade uma coreografia recuperada de aparências para a
face estragada pela mudança constante de opinião. Sob a pressão de uma necessidade de acordo maioritário, a
decadência colectiva torna-se um espaço de existência muito mais suportável, no qual se adquirem gestos e
passos característicos dos seres desconfiados e inseguros. A colectividade fomenta novos momentos de danças
fantasistas na regeneração das aparências. Os nossos rostos recebem essas deflagrações de sentido projectadas
como bombas retardadas e, ao explodirem, provocam graves deformações sobre uma beleza estranha, exposta
nas frivolidades desses novos corpos reconstruídos, conseguindo apresentar um novo conceito de vida feito de
mostruários para transfigurações monstruosas. As ideologias transformam as pessoas em seres aprisionados a
pairar sobre viveiros sociológicos, juntam homens acorrentados a compromissos, transfiguram cidades em
colmeias de negócios e criam uma base teórica justificada pela podridão acumulada de novos aquários terrestres.
As ruas de comércio terminam quase sempre em espaços fechados, lugares submersos de muitos desejos
efémeros. As mulheres fazem passeios em viveiros citadinos a oferecerem os seus corpos. As inseguranças
fomentam realidades que, sendo incapazes de aprofundar pensamentos, recriam horizontes limitados. Existem
filas de espaços controlados, curtos e distorcidos, a crescendo por entre palavras que se esfaqueiam com prazer e
se esfacelam em ideais libertários. Os homens continuam a desconhecer as suas principais características e como
se podem distinguir dos criminosos que infestam as sociedades. Parecem-se cada vez mais com o cidadão vulgar,
sem tipologias capazes de os distanciar daqueles que, ao estarem rodeadas por demasiados afazeres, se deixam
desviar na acumulação de trabalho e de atenções sobre os seus compromissos. Aos poucos vão desfalecendo em
desistências, em muitas verdades insolventes, abrindo uma realidade que apenas permite reter uma máxima
distorcida dessa tensão insuportável. A consciência de um receio massivo experimentado na vida, quando
recomeça a tentar arranjar saídas de emergência para evitar o encontro derradeiro e último com Deus já cadáver,
despeja-se sobre o homem como lava traiçoeira. Ao encontrar-se uma saída útil no espectro alucinado de razões
para a redenção salvadora, aparecem muitas promessas antigas. Nada do que nos vai salvando serve senão para
ajudar a morte de todas as tristezas que acabam por sair deste nivelamento reprimido, situado no viver tornado
vontade e desespero, como corpo submetido às tentativas inseguras de esconjurar pecados e aflições, actos e
demónios sobre os quais incide o mal de uma corrupção generalizada. O lado obscuro situado do nosso interior
recalcado, manifesta-se no difundir de uma reacção em várias totalidades sensoriais, num devaneio de
humilhação que aprisiona, numa passagem calcada que nos faz emparedar ainda vivos e num paraíso sem
queda, cuja decepção se estreita até desaparecer. Nada nos pode fazer evitar novas alienações.

“A «alienação» é um fenómeno que se verifica quando qualquer coisa que foi criada para servir as
necessidades dos homens adquire uma vida institucional própria, uma existência independente, aparecendo
aos homens, não como uma arma artificial que forjaram para satisfazer necessidades que poderão ter
desaparecido de há muito, mas como uma entidade objectiva, investida de poder e de autoridade, como uma
coisa inexorável lei da natureza ou de um Deus omnipotente” (3).

A humanidade deixou-se envolver por práticas de destruição massiva, por glorificações de uma ilusão que
aparece de maneira impune e providencial durante a história. Organizam-se desculpas apresentadas de maneira
larvar. As aparências iludem e deixam atrás de si um rasto actuante e subliminar, rol de justificações sobre tudo
o que existe e não se exige, permitindo aos menos perfeitos e aos mais fecundos dentro da mediania oficial,
tornarem-se portadores de discursos-modelo - retóricas anunciadoras, razões infundadas que incluem uma
prosápia sonolenta; o elogio fúnebre. Estruturam-se procedimentos difundidos na linguagem padronizada como
se fossem peças adormecidas de uma simbologia que, usando a voz suja e imoral da justiça, tem a terrível
vantagem de fazer entender facilmente porque é que as pessoas não possuem rosto e porque é que não é preciso
ter-se uma identidade social mínima para se existir. As representações de júbilo são actos amorfos que apenas
alegram festas e festejos como pequenas réplicas de divertimentos mundanos. Nunca irão conseguir ser formas
isentas de identidade, enquanto que as palavras conduzem as nossas dúvidas para um momento de forte
irresponsabilidade humanista. Aquilo que resolve o que é importante e continua a permanecer omisso e
rasurado, entregando estes valores a uma moral desenvolvida sobre ruínas dos locais dos crimes perpetrados, é a
estranha paixão pelo poder, abandono numa corrente de forças que aglutina e massacra. No crime desfazem-se
sonhos e desejos. Nos actos abandonados dos criminosos continuamos a ser corroídos pelo lixo dos afectos e pelo
apodrecimento dos interesses.

“Submeteu-se Cristo à pior das próteses: fizemo-lo herói da alma colectiva, fizemo-lo dar à alma colectiva
aquilo que ele nunca quis dar. Ou então o cristianismo vai dar-lhe aquilo que ele sempre odiou, um Eu
colectivo, uma alma colectiva. O Apocalipse é um eu monstruoso implantado em Cristo”. (4)

Poucos são capazes de se perder. Os que se afastam dos seus momentos mais controlados caminham nas
autorizações do proibido e eliminam de si os impedimentos insolentes. Os escrúpulos agem sobre um imenso
vazio que resta sobre cada pessoa, como se fossem pequenos actos incestuosos, gestos de conhecimento profundo
que mordem odiosamente a própria mão, deixando-a em pedaços. Aquilo que impõe limites, a necessidade
permanente de poder e de felicidade universal, é um imenso colectivo. O longo contingente de pessoas iguais,
expresso no torpor da multidão submissa, impele-nos para o seu meio, lugar de dentro que viola a intimidade e o
sentido individual e que retira a autonomia de pensar, expelindo os resistentes como se fossem dejectos de uma
imaginação periférica rejeitada. A intransigência em relação ao outro conduz-nos ao desejo de sermos oprimidos,
à aceitação plena de uma ordem suprema com o fim de atingirmos o ser delegado e perfeito, através de um
processo de aniquilamento, transformado em luta contra a metáfora da adesão implícita na vulgaridade que
sobrevive após a concretização de todos os ódios. A sofreguidão de uma força bruta e redutora, nascida sob a
persistente tendência de absorver ideologias e de saborear o gosto desfeito de utopias, produz uma
insensibilidade aceite como providencial. Esta insensibilidade remete para o facto de que, se nos deixássemos
submeter ao domínio do selvagem sob ordens de uma potência externa, tornar-nos-íamos um colectivo
sordidamente intransponível e avassalador. A inteligência desta gente está para além do meio onde nasceram as
enormes capacidades desenvolvidas pelo engenho humano, na mediação das catástrofes e na sua concretização
demoníaca. Talvez ainda seja possível alcançar o tempo sem velocidade - o tempo total contido nos que perderam
referências e que, ao começarem a utilizar com regularidade novas relações sobre o conjunto catastrófico de
actos destrutivos, feitos a partir da distância falsamente livre e devoluta do poder, se refizeram num estado novo
de sobrevivência. Chegámos assim, ao regime normalizado do colapso, acompanhado por uma entidade
protectora, organização que nega a natureza e fica constantemente preocupada em desenvolver um amplo
processo de industrialização global. Surge um novo ciclo de crescimento em franca expansão, elemento
facilitador de um mecanismo canceroso e miserável, onde só se age quando se cumpre a definição da livre
escolha, uma anulação de referências, sobre culturas passadas. Aplicam-se grandes energias para apagar os
elementos que expulsamos das nossas predisposições fanáticas, lugares de culto indiciadores de medos e
submissões. Recusa-se o fim da presença constante no horizonte, sempre a debitar a morte dos avatares que
repõem necessariamente a questão da liberdade na importância de todo o tipo de abordagens utilitárias, sobre
uma ideia pragmática de vida. A sua manipulação escandalosa faz com que o sentido disto tudo seja adquirido
num grau de semi-consciência, no qual agimos em forma de revelação exagerada e decomposta. Talvez nunca
consigamos atingir, no extremo das nossas forças interiores disponíveis, a era da revolução sem matéria, cuja
existência jamais teríamos sentido vontade de voltar a acreditar. O que poderia revelar a mais pequena confiança
nesse porvir, seria sinal de fraqueza, uma anulação sem futuro, essa grandiosa eternidade que nos tritura e onde
passaríamos a desejar ser os únicos habitantes. A linguagem da derrota e do seu consequente reconhecimento
fornece um imenso estado de tédio, passo ocioso através do qual construímos para destruirmos. Erguemos um
edifício-cidade em tecnologia-carnívora. Os homens pertencem a este conglomerado citadino e retiram-se para
uma morada solitária, onde a agressão e a violência criam uma necessidade de lutas sem sentido, afastando-se do
poder contra-refúgio que se fecha em construções-bunker de serenidade promíscua e silêncio insensível. O medo
desencadeado no meio crescente das ciências biológicas, novas descobertas que levantam a urgente
ultrapassagem de todo o saber, arrasta uma ideia de vertigem sobre o conhecimento sequestrado onde nos
refugiamos, fazendo com que já nada pertença à verdade dos factos. O efémero persegue aqueles que se deixam
ficar quietos e imerge na velocidade incessante de um momento dominador de progresso, vacuidade científica,
ponto invertido a expandir movimento.

“Acresce agora um segundo processo de selecção, mas este consciente e voluntário: de todas as marcas
deixadas pelo homem, optaremos por reter e anotar apenas algumas, considerando-as, por uma ou outra
razão, dignas de serem perpetuadas. Este trabalho de selecção é necessariamente secundado por um outro de
ordenação e, portanto, de hierarquização dos factos deste modo apurados: uns serão trazidos para a luz e
outros removidos para a periferia.” (5)

Se estivéssemos presos num templo antigo, - local sitiado, espelho intemporal das imagens - pensaríamos que
esta imobilidade era uma evidente manifestação de impotência divina, acumulada na possibilidade de escutar as
revelações das sacerdotisas entretanto transformadas em guardas. Elas falariam de algo demasiado perfeito que
nos faria absorver as nossas vidas, ao mesmo tempo que faziam fluir consistências existenciais sobre a palavra.
Quando sentirmos que tudo começa a ruir, que a prisão se está a desconjuntar, a desfazer-se aos poucos, e
quando as suas formas forem arquitectadas para uma actividade sem futuro, o território seguro do sagrado
passará a existir como setas afiadas sobre cada um de nós. A actualização do conflito faz acertar o descalabro da
desarmonia corrente, dando a entender uma ilusão milenar insistentemente construída em vão. Olhado no desejo
de um mundo melhor e mais justo, o ressentimento forneceu-nos tantas concepções úteis para uma totalidade
renovadora que se perdeu sem fim nas impossibilidades da vingança. Ninguém acredita no optimismo utópico,
nem na recuperação de alguma vida perdida. Nada será capaz de suspender o que nos acontece. O resultado
deste impasse, representa-se no desespero, som latente e acumulado de um mundo cheio de vítimas que
reclamam e transformam o desenrolar da história comum, na quimera de poder eterno, num défice moral
elaborado por uma tendência para se remeter imagens de transformação. Emerge uma ideia heróica de
sofrimento, parábola refeita no clamor universal das paisagens abandonadas, nas poeiras das cidades destruídas,
nas paragens contaminadas, diluídas em bairros periféricos. Vão começar a aparecer sob os nossos olhos,
horizontes como preces, salmos, orações e outros clamores reunidos em preceitos - um futuro insolúvel e patético,
um barulho a pairar e a espiar por dentro de nós. Nada restará para que fiquemos agarrados, senão a esse
estranho equilíbrio conseguido sobre o gume da violência corrente, algo fugaz e transitório apoiado nas angústias
que nos cercam - embelezamento em acto amnésico revelado nos objectos de muitas satisfações e de muitas
desejadas afirmações a perpetuarem-se num estado de violação intemporal. O horror formado pelas desordens
sucessivas das idas e vindas ao cosmos, como paradigma da banalidade, a imagem do inverso suspenso por cima
de cada um de nós, traduz-se no objecto intransponível.

As ciências não conseguirão ultrapassar a paranóia da acumulação do conhecimento sublimado, adquirido sem
perda de mais vidas, encontrado sem esforço no peso do progresso incessante. O défice de momentos gloriosos
persiste na sociedade esvaziada de princípios e de direitos, por baixo de uma falta de conciliação entre
desenvolvimentos e economias. A resistência está localizada naquilo que não se pode prever, no tempo cheio de
impossibilidades, anunciador de catástrofes, contido em muitas cosméticas de dissimulação introduzidas
persistentemente no desdobramento e na cisão das imagens. A nossa unidade perdura nas verdades que não
conseguirão ser mais seguras do que mentiras, no tempo olhado como sucessão de acontecimentos. Perdemos o
corpo no lugar onde as pessoas vão estar sobrecarregadas de falatórios, enquanto a violência restaura a ordem
violada e organiza mais mortes, causando a vitória da substância pensante geral e amorfa. A reconciliação nunca
acontecerá. A contrapartida da submissão à ordem expõe-se em sucessivas faltas de respeito sob formas de
existência. Quando se buscam ordens mínimas de pacificação, soluções de posicionamento do homem com a sua
natureza arrasada, é-se acusado pela frontalidade das ruínas. Estes processos de acerto e de contingência exalam
a desgraça que viola o símbolo do parricida, permanente artifício de vida, representado nas várias eras da
história da humanidade. Surge assim, uma imagem símbolo de homem novo, obrigado a iludir e a congregar
finalidades fictícias. O que se executa como modificação salvadora das fronteiras do inumano, verificado entre a
ideia de sujeito e objecto, entre mente e corpo e entre observador e observado, não muda. As imagens que temos
da paisagem, do horizonte sujeito a forças escondidas, fornecer-nos-á uma solução redentora. O colectivo
representa apenas o teor asqueroso, a desgraça sobre a porcaria, o homem corrompido e corrupto sob a
dimensão de uma ética abandonada na densidade dos actos falhados. Estes gestos estão condenados a
produzirem pequenos efeitos secundários e medíocres e incapazes de resolverem problemas, substitutos da
tomada de consciência no constante retorno aos materiais corrompidos. Assiste-se a um desenvolvimento assente
em destruição, razão dependente da tecnologia que fica imediatamente obsoleta, dando-nos uma ideia
subalterna de evolução que satisfaz.

O progresso que o poder faz questão de escolher e preservar para determinar os nossos medos futuros, inclui a
adopção de práticas pornográficas, gestos destituídos de vergonha, … obscenidades que, ao deixarem-se observar
sem limite ou avaliação, representam a canalhice do homem sem particularidades, a podridão de uma sociedade
que mais não pede do que viver sobre algo que lhe é totalmente insondável. O género humano lançado no espaço
sideral, ambiente de uma luz branca e lívida, semelhante à que se fez no primeiro dia do nascimento do mundo,
exerce sobre ele uma violência mais destituída de tempo, mais gratuita, mais intensa do que nunca, perdendo
para sempre a sua inerência ontológica. Aparece então, o tipo de mentira que aspira a ser universal, quando não
pode ser senão mundana, implicando pelo menos que, aqueles que nela acreditam e não mentem, se deixem
morrer sem ideais. O grandioso momento perdido desses golpes oportunistas, sabiamente cultivados pela
política, é representado por uma multidão que se move como seita secreta, localizada num lugar sem referências
e onde se encontra o epicentro de um horror constantemente a surgir nas cabeças a rolar, no barulho
ensurdecedor do cadafalso, na aspereza de uma voz inumana e televisiva, na ameaça do apodrecimento, no
convite a cumprir e no aceitar da lei do mais forte. Cumpre-se o acto esperado, primeiro passo para uma outra
realidade ainda mais putrefacta. A proliferação de paradoxos políticos, a prostituição dos seus actores, as
passagens vendidas e comprometidas com o poder, a deriva sem finalidade, os povos sem propriedade, não fazem
parar o crescimento da ideia de negação generalizada. Tudo isto está cada vez mais associado à democracia
assaltada por burocratas e por incompetentes. Os indivíduos corruptos e mecanicamente incapacitados de
solucionarem os problemas postos pela modernidade, - pretensa época curiosamente apelidada de “idade da
técnica” - surgem como miseráveis especuladores de oportunidades.

A política encontra-se no auge de uma afirmação compulsiva reduzida à sua teatralidade mais dramática,
quando aceita a regra do jogo liberal, o definhamento do seu verdadeiro poder. Da declaração de princípio, ao
clímax televisivo, da arrogância das demonstrações de poder, aos invólucros vazios e às deslocações oficiais
militarizadas, tudo vai exibindo sinais exteriores de uma grandeza perdida. As motas, as bandeiras, os
estandartes, os polícias, os guardas, os serviços de segurança, os serviços especiais, os carros potentes com vidros
fumados, as velocidades ilimitadas em transgressão, a abolição do código da estrada, as sirenes a berrarem, os
veículos repletos de médicos presumidos, são um cortejo de pretensiosas figuras inchadas de orgulho. “Mas o
cortejo vai vazio: o verdadeiro poder manifesta-se na cibernética, cúmplice dos que organizam os fluxos de
dinheiro e que controlam, segundo os seus meios, as mitoses e as meioses legíveis no material celular dos capitais
flutuantes, corpo virtual onde o verdadeiro poder mede e vai buscar essência”. (6)

Não sei se a dualidade através da qual construímos a actualidade, como se fosse um instantâneo retomado de
outros momentos presentes em permanente superação no agora e sempre sobre o mesmo, está para o ecrã
gigante, como o raio estava para as hordas de homens do neolítico. As correntes de imagens atirarão a realidade
construída a partir daqui, para um estado de desencanto avassalador e irreal. Abandonados pela utopia e pelo
divino, rumamos na direcção de uma pequena frincha, buraco negro, recorte estreito ou trincheira, entre esteiras
de retóricas esgotadas que se deixam passar estranguladas através de um raio de luz espectral, frio e desumano,
reflectindo sombras da porta quase fechada, em acenos de milhares de convites para o derradeiro olhar voyeur.
Todos desejamos espreitar por essa série de acontecimentos violentos que, na densidade do segundo vivido, se
revelam compactos como rochedos. As revoltas surgem ao ritmo avassalador de irrepetíveis enredos dramáticos.
A realidade funde-se e constitui-se em conglomerados de ideias descartadas, conjuntos de cenas infelizes e fluxos
de idealizações falidas, estruturas móveis de fragmentos de consciência, dizimadas e sucessivamente agrupadas,
que se perdem no espaço - cometas a passarem sobre tragédias. As novas galáxias compostas por medos,
esperanças, opressões, liberdades, exílios, isolamentos, e as novas redes de compromissos, recomeçarão a
neutralizar atritos na sua propagação, depois de, durante algum tempo, terem estado a rememorar ódios e
fanatismos. As impossibilidades que afectam a fluidez da comunicação reagem sobre o tempo, no infinito do
limite máximo, na velocidade a que nos projectamos. Este terreno minado, esta atmosfera contaminada por
desejos na qual seremos criaturas a prazo, (pequenas vítimas à espera de uma salvação que ponha cobro ao
desencanto) está presente na nossa história. Como portador da hemorragia constante do desespero que precisa
do mal para se estancar, dos ódios à espera de melhor oportunidade para se glorificarem, das concorrências para
sobreviverem, das orgias para se satisfazerem em prazer, o homem torna, todas estas acções que não podem ser
atribuídas a ninguém, independentes e desresponsabilizadas. Esta possibilidade histórica permite aos seres-
autores produzir actos na medida do seu livre-arbítrio.
A liberdade que se revela como significado de omnipotência, perde todo o seu conteúdo varrido por ventos secos e
tórridos de abandono individual, um lugar numa escala impossível de habitar que nunca admitirá entregar-se
aos homens senão colectivamente. Mesmo quando os homens estão contra a liberdade das vontades, por
perderem o poder e a capacidade de controlar o que quer que seja, as imagens paradigmáticas do mal nos
campos de morte nazis, assim como as da paixão de Cristo, aparecem simultaneamente, no meio de um estado
submerso de apatia, onde a história se extinguiu no tempo sob a falta de vontade humana. Adensados nessa
escuridão abissal, as sombras do impossível feito notícia fornecem-nos uma ideia consistente para um Deus
apocalíptico. O ódio e o prazer aparecem como se nada tornasse estas pulsões mais suportáveis do que a
compreensão de momentos de incomensurável dor. Momentos que são o sentir razoável de um acto de auto
dilaceração, uma ferida que se abre ao mundo quando sente o sofrimento e que é incapaz de suster o espaço de
tensão aceitável, colocado num ponto médio de entendimento entre dor e prazer. A carne costuma actuar mais
depressa que o homem, conseguindo ter acesso directo à morte que, englobando tudo o que nos escapa e tudo o
que se transforma em impotência, se transfigura num luxo de dor absoluta a sobreviver no tempo vazio da
destituição das consciências. Não basta que a humilhação perca um espaço mínimo de sobrevivência como se
fôssemos filhos de um lugar infra-humano, onde a ideia insuportável do mal nos conduz à forma de vítima mais
perfeita. O nosso final enquanto seres ingénuos é um encontro de desconhecidos, medo e apatia, sujeito a ritos
para uma sexologia de terrores, com acompanhantes dispostos a viverem a orgia do poder. Talvez no sexo se
encontre o conjunto de actos irrisórios que a miséria e o abandono de quem não sabe enfrentar a corrente agreste
de vida, tenha afastado das coisas mais sensíveis, depois da falência dos comportamentos. Os cortes e as suturas
mostram-se desprovidos de significado e ávidos de catástrofes. Mais dores, mais feridas se acumulam na
superfície da pele e agem numa corrida avassaladora de novas destruições, momentos em que a cirurgia da
transfiguração torna as pessoas facilmente manipuláveis, faces do desagregar insolvente dos valores, numa
identidade sempre desconcertante. O cutting é a tentativa radical de busca no domínio da realidade. Os cutters
dizem, muitas vezes, que depois de terem visto o sangue vermelho e quente a escorrer da ferida que se infligiram,
sentiram que voltaram a viver solidamente integrados numa realidade que haviam perdido.
Quando tiver deixado de existir um único espaço por conhecer sobre a Terra, e quando ela se encontrar fora da
nossa civilização, começaremos a viver um novo mundo. Deixou de ser possível a existência de povos ou de seres
que pudessem ser expulsos da humanidade, como aconteceu no Éden. Através de visões de hegemonia ou de
superioridade racista, este tempo, que durante séculos influenciou as instituições e os modelos de organização
social, sobrevém sempre enfermo, em múltiplos microfascismos locais e pessoais, difundidos no conceito de um
universalismo popular e ontológico. Apesar de todas as razões para se pôr fim a esta situação e de todas as
oportunidades para o fazer, elas têm sido rompidas, justificando, nos casos mais extremos, a crise de interesses
do sistema capitalista. As maiores dissertações pacifistas repetem-se acerca da questão do devir que se situa em
sabermos onde é que os paradigmas do mal, atrás citados, virão de novo a acontecer. Poderá o pensamento
actual assegurar com alguma garantia a sua não ocorrência? A justiça, como segunda linha de defesa contra o
mal, exige isolamento, uma recusa crítica dos prazeres e das alegrias mais estúpidas. O decrépito provocado pelo
uso das luzes da ribalta, a visão insistente e pornográfica dos ecrãs, renovam esse lado naturalmente corrompido
dos homens. Por mais que se evitem os disfarces e as sombras, as luzes permanecem acesas. As personagens, os
magistrados, os advogados, os réus, as testemunhas ficam sujeitos a determinados papéis. Pela sua exposição
pública acabam por serem actores, encarando este mundo sedento de espectáculo como uma situação inevitável e
necessária à concretização da sua pequena justiça.


(1)NEIMAN Susan, O Mal no Pensamento Moderno. Uma história abreviada da filosofia, Gradiva, Lisboa, 2005, p. 301;
(2)ARENDT, Hannah, Eichmann in Jerusalém, uma reportagem sobre a banalidade do mal, Tenacitas, Coimbra, 2003, p. 105;
(3)BERLIN, Isaiah, O Poder das ideias, Relógio d’Água, Lisboa, 2006, p. 167;
(4)DELEUZE, Gilles, Crítica e Clínica, Séc. XXI, Lisboa, 2000, pp. 58-59;
(5)TODOROV, Tzvetan, Memória do Mal, Tentação do Bem, uma análise do séc. XX, Edições Asa, Porto, 2002, p. 147;
(6)ONFRAY, Michel, A política do rebelde, Instituto Piaget, Lisboa, 1999, pp. 243-244.