AUTOR: IVO MARTINS
EDIÇÃO: Revista Op. #21 DATA: Novembro de 2006
Uma vez encontrei um tal rapaz que se retirava de todos os conflitos com uma mestria impressionante. Não
discutia, não tentava convencer ninguém, não se dirigia às pessoas de uma forma coloquial, não se vestia de uma
maneira uniforme e padronizada, segundo a moda correctamente considerada. Deixava que as coisas corressem
naturalmente, sem imposições ou politiquices, e não tinha planos para o futuro. Era, para mim, o verdadeiro
rapaz capaz; uma figura transcendente que escapava a todos os padrões correntes e assumia, perante as coisas, a
prática mais eficaz do distanciamento. Sempre achei que este tipo de personagens nos podem fazer imensa falta,
como, ao mesmo tempo, também podem revelar o lado mais obscuro do desinteresse e do predomínio do medo
em todas as actividades do nosso mundo.
As vantagens e as desvantagens deste tipo de atitudes, muito mais quando comparadas com a pobreza das
imagens diárias do nosso quotidiano, aparecem-nos confirmadas nas informações recebidas, através dos meios
de comunicação social. As formas de entendermos o que se passa, e a partir daí estabelecermos alguns modos de
actuação, estão a ser destituídas por processos afirmativos, acumulados, reiterando-se permanentemente a
desvalorização do “não”.
Já se torna cada vez mais impossível ter todas estas características de personalidade reunidas numa só pessoa,
mas, nesta impossibilidade própria do nosso tempo, ao menos que se apresentem alguns bons exemplos, ainda
que fortuitos e dispersos por muitas pessoas. A sucessiva verificação deste desencontro remete esse rapaz para a
ideia de uma mitologia da facilidade, que, pelos vistos, teria uma enorme repercussão nos momentos presentes.
Ele continuaria acima de todas as confusões, ao abrigo de todos os erros e de todas as verdades, sendo uma
perfeita projecção da nossa identidade profunda.
No momento em que somos obrigados a ser humanos - e esse rapaz, de certeza, pela própria aparência, também
o é -, aquilo que nos faria sentir melhor, quando só pensamos em nos sentir desculpados perante todo o mal que
nos cerca, seria acreditar que os verdadeiros culpados nunca vão existir e que o processo de apuramento da
verdade ficará, perpetuamente, encalhado nas promessas de uma terra prometida. Este rapaz, cheio de
capacidades, não nos deixaria arranjar mais desculpas sobre o imenso campo de morte lenta em que estamos a
transformar o nosso mundo, e falaria, de um modo bem educado, sobre o sofrimento que causamos a tanta gente
e a nós próprios, tratando de nos justificar o aparecimento daquela apatia própria e neutralizada que se revela
intensamente sempre que ficamos sitiados em frente de uma desgraça. Nessa altura, apercebíamo-nos de um
lugar comum na dose massiva de notícias que nos narram os assuntos terrenos todos os dias. E de que nunca
haverá um número suficiente de mortes exemplares, nem heróis em quantidades acertadas, que nos possam
ajudar a desembaraçarmo-nos das nossas vítimas como se fossem as nossas fraquezas, nem da visão suave de
inocência das suas existências cortadas que nos sufocam, nem da grandeza dos seus olhares suplicantes e
interrogativos.
Quanto mais grave for o panorama, tanto mais estará encontrado o momento em que alguém vai pensar que, ao
ser eliminada a mais pequena elaboração do mal, este acto lhe dará uma absoluta certeza de que faz parte da
verdadeira elite guardadora de todos os bens. Todos nós, sem excepção, vamos acabar por sucumbir ao processo
de incitação do heroísmo, como se isso fosse prática vaidosa, cruel e exibicionista, do Homem destes tempos,
quando ser perdido e medíocre sempre foi, desde os tempos imemoriais, o que se eleva por entre as imensas
destruições da História da humanidade. Porque este afã, organizador de matanças, que se exprime através dos
tempos e que insiste, ainda hoje, em desenvolver as suas práticas de afirmação do poder, de geração em geração,
sem nunca adquirir a menor sentido de generosidade, conhece, cada vez melhor, as suas causas e necessita, por
isso mesmo, de destruir.
Não sei qual será o melhor caminho a percorrer para tentarmos sair desta cilada grotesca da nossa natureza, se
aquele que contraria esta direcção de desculpa permanente na cara do caos gerado pela grandeza das destruições
acabadas ou se aquele que esbarra com o porquê das suas razões abonatórias, que deseja encontrar o sentimento
ilusionista do gesto que o pode reduzir à sua dimensão solitária e única. Por que é que não se conseguem deixar
de lado as visões simples e grandiosas do ser banalizado pelos horrores dos homens prisioneiros, e por que é que
as políticas de descriminação sem sentido tornaram o passado num lugar de terror onde está reunido tudo o que
não vai servir para nada?
A farsa do tempo não possui nenhuma relação com o presente, torna-nos elaborações dispensadas de efeitos
nocivos. O passado que nos surge no processo de sentirmos parece uma emulação de desejos irreais. Quantas
vezes sentimos que perto de nós se movimentam algumas das coisas mais ridículas e obscenas que fizemos - esta
tomada de consciência remete-nos para o facto de nunca mais sermos capazes de corrigir nada do que vindo dele
se aproxime, nem o que quer que possa ser uma imitação forçada da sua forma.
Um político, esse ser estranho que convoca opiniões e joga a roleta de todas as hipóteses de sobrevivência
possíveis - escolhendo o número teatral da sua arte suprema de camuflar unanimidades, mesmo que contribua
para o bem estar do seu povo, quando à volta do seu país existem as maiores manifestações de medo e de
desordem, com o espectáculo das destruições e misérias a abarrotar de tragédias -, continua a ser confundido
com um bom rapaz. Se esse indivíduo configura o bem estar colectivo através de práticas de usurpação pela força
que todos conhecemos, mesmo que seja movido pelo seu imenso desejo de glória, continua a ser apresentado por
toda a gente como uma personagem claramente conotada com o lado bom de todos os homens. Vai ser sempre
muito maior o número das vítimas desse tipo de encarnação providencial do nosso bem do que daqueles que se
deixarão tentar, de forma explícita, pela paranóia totalitária do mal dos outros. O mais interessante será que, um
dia, iremos todos perceber que existe uma natural propensão para sermos capazes de imaginar e de perder
tempo na realização prática do pior em relação ao outro, e de deixar de lado as balelas moralistas de que tudo o
que fazemos é porque estamos a lutar activamente pelo nosso bem colectivo.
O culto do que quer que seja nunca serviu boas causas, e a comemoração dos nossos momentos mais grandiosos
revela-se uma prática bem mais negativa do que positiva, pela imensa quantidade de valores de liberdade
invertida que apresentam. Quando se isola a recordação, de uma maneira quase instrumental, seguindo um
processo de retirada da centralidade referencial da memória, está-se a proceder à exumação do nosso cadáver
apodrecido, dos heróis inconscientes do bem comum e universal.
Quem se deseja manter como exemplar de alguma data vencedora, começa a transformar-se no tempo de um
fetiche de memórias desprovidas de verdade, porque a nossa História é, na sua elaboração, uma derrota
permanente do Homem como actor de um mundo que precisa de destruir para aprender a nele viver. Ao
retirarmos a capacidade crítica sobre tudo o que somos, banalizando este imenso momento presente que nos
absorve, estabelecemos relações inexistentes entre tempos que se definiram como desinteressantes.
Há muito que procuro, sem encontrar, uma razão para vitoriar o que quer que seja. Aos meus próprios olhos,
seguindo os seus próprios contextos que são, por essência, irrepetíveis, o rapaz capaz nunca irá aprender
absolutamente nada com os erros cometidos, porque nunca haverá de conseguir fazer a mais pequena análise
sobre o que, de facto, andamos para aqui a construir. O rapaz capaz aparece então como uma espécie de isenção
de tudo aquilo que fizemos. E, por isso, ele será retrospectivo. Continuará a vestir eternamente a pele dos maiores
suspeitos de nós próprios e viverá dentro de um campo de concentração global em que os prisioneiros e os
carrascos se olham com a verdadeira cumplicidade de todos os traidores, concordando numa visão promíscua de
espaço e de tempo sem memória. Todos somos potenciais malfeitores e o nosso ser ou não ser poderá ter a ver
com uma mera questão de sermos capazes.