TEXTOS

Kenny Wheeler e Big Band

Aquilo que melhor caracteriza a actualidade é a existência de uma pluralidade de vozes que descrevem situações jamais passíveis de se completarem, ou serem suficientes na representação do seu conteúdo. Vivemos um estado de negação acumulada e somos incapazes de estabelecer com a música um método exemplar de entendimento que seja padrão. Continuamos a depender da capacidade de captar a atenção dos outros e de provocar nas pessoas uma emoção capaz de forçar respostas. O acto de compreender e assimilar a música é um momento eminentemente privado através do qual podemos contemplar o distanciamento daqueles que nos rodeiam. O acto de criar esconjura a forma como entendemos a vida e obriga-nos a reconhecer o momento de grande solidão a que estamos sujeitos. Quando ouvimos algo de diferente, esta situação solitária pode assumir um carácter fatalista e fazer-nos tentar actuar de uma maneira criativa sobre o nosso próprio silêncio. Desenvolvemos relações de nós para nós, induzimos novos procedimentos na busca da essência do acto musical, comparamos e construímos as lembranças como se houvesse uma necessidade de ultrapassar todos os limites e de provar que é possível agir sobre a sensibilidade individual, suportando tudo o que nos é exterior. Talvez seja esta a tarefa que teremos para cumprir quando percebermos que a interpretação de uma obra musical é um acto constitutivo de arte. O silêncio que existe dentro de cada um de nós, confrontado com aquilo que ouvimos, exprime-se numa experiência pessoal, impossível de se fixar através de uma descrição, ressaltando na nudez do seu carácter o silêncio da sua contemplação. No momento em que descobrimos este grau de imponderabilidade e de isolamento comunicativo, percebemos o verdadeiro desafio de sobrevivência que nele está localizado.

O silêncio não é uma experiência do indivíduo solitário mas uma consequência social da sua identidade. Quando as palavras parecem ser as mais adequadas para exprimir uma determinada realidade, e mesmo quando a voz ocorre como o grandioso momento sonoro dessa descrição, continuamos a não ser capazes de transformar em comunicabilidade tudo aquilo que sentimos. A música de Kenny Wheeler fomenta um estado de oposição entre a voz e o silêncio, que tantas vezes se misturam e que tantas vezes se relacionam para lá da linguagem, como qualquer coisa que se vai reconhecendo e que implica uma experiência individual. Todas as músicas se encontram no puro reino do som e das suas sonoridades mágicas, onde o Jazz revela um pensamento através de uma imagem metafórica num espaço vazio e aberto por um grito. O grito apresenta-se como a negação da linguagem e o seu som é o terror levado aos limites da mudez absoluta. Quando a música é capaz de expressar a sonoridade, a atitude e o carácter de uma raça, de uma cultura e de um homem, adquire automaticamente a capacidade de ser voz e de se tornar grito. A música revela um estado de grande comunicação, como o único meio de salvar as pessoas de um isolamento comunicativo generalizado, quando estas se encontram num ambiente onde todas as faltas de referência são meras falhas de interacção. Ao fugir deste isolamento através da música, estamos a alterar e a melhorar a difícil relação que estabelecemos com o nosso medo e com o nosso silêncio, relançando a esperança sobre a voz reencontrada e reconstituída no clímax de uma integração fundadora e reguladora de novos sons. A música pode ser uma narrativa que nos ajuda a compreender o que somos e que nos chama a atenção para os vários problemas da assimilação e da restituição de verdades, como contraponto à retórica indiferenciada que nos cerca.



Terence Blanchard

A palavra sul é um valioso ponto de referência na análise das condições em que se verificaram muitos dos acontecimentos culturais associados e relacionados com este elemento geográfico. Existem formas subjacentes de expressão cultural que dizem directamente respeito a um espaço de convivência. Há um código de símbolos facilmente identificáveis que reconhece padrões sociais e políticos, revelando explicações sobre muitas das causas de marginalização dos povos sujeitos a uma falta de desenvolvimento crónica, reféns do espectro de miséria permanente em que vão sobrevivendo. A pobreza e a cultura urbana emergem segundo a mesma fórmula, no terreno abundante da grande metrópole. A cidade surge-nos acrescida de novos matizes, passíveis de serem detectados na beleza dramática de um conto popular ou no sofrimento irredutível de uma tragédia doméstica. O conceito suburbano transforma-se numa oposição entre convenções e formas sociais estáveis, dando origem a outro tipo de histórias e narrativas que retractam as experiências das pessoas – os imigrantes procuram encontrar uma nova felicidade na terra prometida das oportunidades. Os contrastes formados pela variedade de situações de vida, os caminhos abertos por uma necessidade de fuga à miséria e à injustiça, criam necessidades de adaptação nos contornos da cidade que se desenvolve a partir do século XX como grande espaço de actuação marginal. Estas alterações significativas vão influenciar o modo como as pessoas passarão a entender-se e a relacionar-se. As populações em movimento começam a desvendar os vestígios invisíveis das suas culturas originais, que elas próprias transportam como recursos de identidade e subsistência junto dos seus haveres e das suas memórias. O sul surge-nos como um ponto de referência geográfico fundamental para percebermos algumas das manifestações artísticas do século passado, bem como as modificações de elementos no meio citadino em processo de auto-preservação cultural. New Orleans encarna nos Estados Unidos da América um desses espaços sensíveis, um lugar onde se verificou durante muito tempo elevados níveis de mistura étnica e cultural. A posição estratégica desta cidade facilitou o processo da mestiçagem de heranças, no incremento da imaginação e na fantástica redescoberta do divertimento como processo de fuga aos problemas, transformando a angústia num elemento culminante do entretenimento. O Jazz provém desse território cheio de narrativas de resistência e possui uma intensa paixão pelo prazer. Uma resistência contra as forças que, directa ou indirectamente, transformou o sofrimento num mecanismo de perpetuação da desgraça e da alegria. As suas vítimas foram levadas a aceitar o estado de uma consciência racista e sexista institucionalizada, subtilmente opressiva, através da qual se encontraram as metáforas de superação provenientes dos lugares ambíguos, onde ainda hoje se encerram muitas das explicações poéticas sobre as suas origens. O Jazz é uma das grandes manifestações de insubmissão, assente na intriga sobre a condição humana que o seu estado trágico ajudou a revelar. O Jazz é acção, uma experiência centrada na possibilidade de existirem, a seu lado, novas clarificações cognitivas que poderão levar a uma mudança social ou pessoal. Quando percebemos um fenómeno musical de cunho eminentemente urbano, New Orleans passa a encarnar uma das suas primeiras visões. A música de Terence Blanchard redefine uma busca por estas origens ao destacar o conjunto de elementos intemporais do Jazz num espaço recente de novas vivências sócio-culturais que os tempos presentes suscitam e obrigam a reconsiderar. Também se pode tentar compreender o que é, actualmente, o Jazz. Uma música improvisada, que parece estar a desaparecer na fronteira entre os elementos mais tradicionais e todas as outras experiências artísticas passadas e presentes, que entretanto foram sendo desenvolvidas e vividas a partir da segunda metade do século XX. Quando fazemos esta apreensão sobre o fenómeno do Jazz, sentimos uma necessidade de compreender os seus mecanismos de desenvolvimento nesta terra de ninguém, onde os limites das suas superfícies se movem rapidamente, e onde tudo se encontra em grande tensão modificadora, como acontece em todas as artes. Ao descobrirmos que a variedade dos géneros e dos seus tipos impede qualquer espécie de orientação normativa, concluímos que a falta de rigidez de todas as certezas actuais pulverizaram as práticas tradicionais de redefinição ordenada.



Sei Miguel Quarteto

A prova infalível de que penetramos um novo campo gravitacional, situado no espaço da música e do Jazz, é a mudança de direcção que actualmente valoriza a narrativa individual em detrimento da história colectiva. A palavra e a voz detêm um papel fundamental na descrição da história. Actualmente o conceito de história começou a dissipar-se noutros géneros, onde as narrativas partilham diferentes papéis, abarcando qualidades que incluem modos de representação tais como o mito, o sonho, o inconsciente, os filmes, as imagens, e todas as situações que ainda não esgotaram a possibilidade de serem contadas. Aparecem então os subgéneros, as músicas ambiente, as sonoridades performativas, as electrónicas, as máquinas, os modelos abertos e multidisciplinares de exploração, como se todos os manuais de instrução, as notícias dos jornais, as retóricas palavrosas e os clichés culturais começassem a fazer parte do texto reinventado, na arte de contar o momento presente. As incorporações de fragmentos, as construções de miniaturas, o diálogo, as personagens, a paisagem, a conversa, as cartas, as anedotas, os inúmeros materiais bibliográficos da literatura tradicional, começaram a reorganizar-se num espaço narrativo que se desenvolve à medida que as propostas de outras utopias esbarram numa impossibilidade prática de concretização. Todas as verdades universais daí decorrentes passaram a adquirir uma contingência e uma relatividade totais. Quanto mais se duvida, mais se pressente a fragilidade das formas artísticas oferecidas pela explicação dos problemas intelectuais. A mudança rápida do meio onde procuramos soluções exige que se coloquem mais perguntas sobre os acontecimentos que no passado se apresentaram seguros e sólidos. Esta inconstância, esta imprevisibilidade que nos determina, requer outro tipo de pensamento sobre os processos históricos passados, significações de momentos consolidados e estáveis, passíveis de existirem como uma visão que torne a música numa parte da realidade histórica. A falta de orientação gerada pela mudança rápida de referências origina reacções controversas que muitas vezes se definem numa desdenhosa mistura de hostilidade e desprezo. Ao não existir, actualmente, uma narrativa unificada e oficial para o Jazz, como em todas as outras manifestações artísticas, o mundo transforma-se num espaço indisciplinado, verboso e contingente, com uma largueza exagerada de conceitos e uma dose insustentável de ambiguidade que o torna impossível de se organizar no quadro histórico que lhe caberia. Numa dimensão fragmentada, se cada pessoa tivesse o direito de fazer prevalecer as suas próprias histórias, e elas fossem elementos importantes na definição da realidade presente, a pluralidade de discursos colocaria a narrativa numa situação contrária à sua função original, ao seu texto absoluto, anulando deste modo o espectro das visões sobre o mundo, uniformizando e unificando. O Jazz sofre deste problema de fragmentação de linguagens quando tenta narrar uma realidade que se apresenta improvável e pouco plausível. Quando somos confrontados com situações de impasse inexplicáveis para os nossos cérebros, ficamos predispostos a superar essa limitação, criando soluções artificiosas. A música deste quarteto, liderado por Sei Miguel, é uma experiência de procura sobre o auto-conhecimento, uma investigação de geografias emocionais que compõem uma imagem possível de ser narrada, trazidas a este espaço por cada uma das pessoas que nele tomam parte e que tentam fazer de cada interpretação, sobre a saturação da nossa fala e da nossa escrita, uma narrativa coerente e ajustada dos problemas específicos da sua existência.



Cecil Taylor - Tony Oxley - Bill Dixon

Tudo aquilo que pode criar uma nova experiência de vida tem um papel fundamental no processo de aprendizagem das pessoas, quando estas se dispõem a ouvir histórias, a escutar música, a ver arte ou a pensar. Os indivíduos definem-se para além da sua própria pele e na complexa teia de relações humanas, podendo organizar ligações cheias de significados e mudanças benéficas, apesar do medo, apesar do peso dos conflitos, apesar da influência dos interesses e muito para além da presença inevitável de uma noção de morte, sempre a rondar por perto. As emoções desembocam em inúmeras percepções que passam por sucessivas fases de descoberta, de conhecimento e de ajustamento a cada circunstância, podendo mudar para situações que nos ajudam a adquirir uma visão mais positiva e reconciliada com a realidade e com tudo o que dela se sente. A música de Jazz pode ser associada a um enigma, uma passagem, uma entrada num lugar que nos é revelado pela criação artística, e que insistentemente nos escapa, parecendo que se manifesta através de uma incapacidade de compreensão sobre a sua verdadeira grandeza e impacto. Escrevemos para descrever um tempo, mais preocupados com a localização de um espaço na nossa história pessoal do que em assinalar o verdadeiro momento de assimilação estética, inerente a todas as possibilidades da música que ouvimos, e onde é possível encontrar explicações pertinentes sobre o mundo. Estamos empenhados a redefinir o nosso calendário dos acontecimentos, depois do momento da sua audição, e em entender aquilo que na verdade compreendemos como parte da essência de qualquer objecto artístico reflectido em cada indivíduo. A ausência de ideias nunca permitiu que se estruturasse qualquer processo de entendimento sobre a natureza das coisas. Não podemos entender porque é que actualmente se assiste cada vez mais no Jazz em Portugal, a uma taxativa e exagerada acentuação das suas formas avant-retro ( neo-free ), que nos surgem totalmente desprovidas de empenhamento analítico, rodeadas por uma mímica altamente rudimentar. O FreeJazz nunca foi um parque temático desligado da existência dos seus músicos, nem da forma como eles o fizeram. Não se trata de um espaço de diversão, assente numa elaborada forma de divertimento, criado artificialmente para um público ávido de espectáculos, como se os seus sons pudessem conter a sobreposição explícita da imagens dos seus intérpretes, e estes nos aparecessem como desenhos animados a caminhar por entre a audiência. Quem visita este território simulado de prazer, está submetido a um cenário pré-fabricado da alegria, seguindo um arquétipo da diversão sem sentido, onde a falta de entretenimento tornaria as pessoas mais isoladas, mais carentes e mais dolorosamente entediadas. As utopias degeneradas que invadem o nosso mundo apoiam-se no aparecimento de muitas organizações amolecidas e pouco duradouras, associadas a estados de espírito amornados e desprovidos de ironia. Tudo parece encarnar uma fé cega na tecnologia, fazendo com que o desenvolvimento e o progresso nos forneçam mais realidade do que a própria natureza. Criam-se lugares onde os espectadores podem admirar abertamente a perfeição das suas maravilhosas falsificações sobre a imensa paródia do mundo. A imaginação reflecte-se numa realidade que atinge o absoluto estado de saturação no lugar onde já não somos capazes de distinguir a torrente das imagens e a disseminação das suas retóricas e das suas ridículas simulações. Com Cecil Taylor, Bill Dixon e Tony Oxley encontramos a naturalidade do mito, alimentado por um tempo passado, que se estrutura com fluidez numa forma real e activa a pairar sobre o nosso presente. Sem concessões ao glamour e às poses de estilo, qualquer pessoa pode entrar nesse oásis de fantasia revelado na profundidade e originalidade do seu piano. Cecil Taylor vive dentro de um espaço hermético de actuação supra-musical, onde a técnica da utilização do corpo e as correntes de emoções imaginosas conspiram insistentemente para nos manter aprisionados no interior das suas fronteiras. Não precisamos de esquecer ou excluir quaisquer elementos que nos possam recordar a vida quotidiana ou o nosso mundo exterior. Músicos como estes fazem-nos continuar afastados da extensão deprimida da vida quotidiana, constituída por mitos contemporâneos adornados de sucesso, promovidos por fantasias consumistas, apoiados por variadas formas de violência gratuita que persistem no caos gerado por uma nova ordem planetária. A sua música não é fotogénica, nem é recente. Os seus concertos não são actos de divertimento, repletos de imagens vazias e desertoras, refeitas de formas vulgares, a agir contra as boas ideias reduzidas ao projecto inacabado de uma cultura terminal. As provas da sua autenticidade artística são irrefutáveis e fortes, embora aquilo que se passa à sua volta deva ser interpretado com cautela. Esta música é a configuração de um foco, uma unidade complexa e concentrada, definida pela teia cultural das relações estéticas e criativas que constituem o feixe único de uma personalidade arrebatada. O carácter e os valores éticos são os elementos que estruturam os princípios e apuram as condutas de uma vida. A diversão que é vista, por muita gente, como uma fuga aos problemas que nos cercam, sempre procurou encontrar fórmulas de esquecimento que sejam eficazes e que evitem a reordenação das nossas angústias. Os seres descontentes que conseguem recusar a simplificação do saber e são capazes de criar uma fórmula alternativa ao conhecimento corrente, como aquela que Cecil Taylor aperfeiçoou, através de uma música implicitamente democrática na sua mistura de vozes, pode alcançar amplos recursos de sobrevivência. A liberdade desta música zela de uma forma notável pela supressão da insignificância, a qual se vai instalando pacatamente em todas as hierarquias opressoras.



Orquestra de Jazz de Matosinhos

Ao assistirmos a uma diferenciação, cada vez mais intensa, nos diversos códigos de expressão e nos vários contextos culturais, estamos a afastar-nos da ideia de uniformização global que durante algum tempo pairou sobre as nossas mentes, como um receio legítimo sobre as consequências sociais da modernização. Apesar deste processo de transição não ser muito linear, temos hoje em dia uma percepção muito mais apurada das várias fórmulas existentes em interacção e do modo como se tem vindo a desenrolar o seu reconhecimento. A realidade elabora-se através da ideia de arquipélago , como um quadro desenvolvido no espaço, retalhado sobre um plano cultural, suportado por uma relação que continua fortemente interligada à sua componente económica. O efeito causado por esta ordenação deixou para trás das nossas histórias mais recentes alguns fantasmas que se situavam no perigoso fenómeno da aculturação, da unificação e da homogeneização das culturas. O conjunto das palavras de cunho profético, reverentemente expostas nas várias teorias liberais da modernidade e nas quais era considerada a existência de um relacionamento indissolúvel na ligação do capitalismo ao individualismo, foi ultrapassado por uma fase ainda mais subjectiva que transformou a visão simplificada e universal de olhar o mundo, num velho problema essencial da humanidade: a resposta sobre o futuro da cultura ocidental, na apresentação sempre contraditória da forma rígida e definitiva, através da qual esta se passa a desenvolver e, de certa maneira, se deixa submeter. No meio de um desenvolvimento disperso e fragmentado, percebemos a consequência da necessidade de redefinir as mais amplas manifestações das nossas formas de actuação e a nossa própria insistência em encontrar processos de resolução locais – múltiplas soluções de descoberta que revelam formas de expressão estruturadas em variantes culturais, fora do pressuposto do monolitismo e exclusivismo global. A dispersão de um contexto que, durante muito tempo, teimou em estruturar a sua compreensão numa prática de racionalidade que pretendia assumir uma dimensão universal, fez-se reaparecer em muitos momentos de contraponto sobre esta ideia e sobre este relativismo total das nossas acções como uma necessidade de auto-afirmação, elemento básico de identidade. Visto inicialmente como um meio de sobrevivência, no reino das antíteses, dos opostos, da falta de supremacia e do hegemonismo obstinado do Ocidente, o pluralismo dinâmico, aberto ao confronto e ao hibridismo, aparece agora na reconstrução de uma plataforma aberta, localizada na ultrapassagem dos limites extremos de uma concepção de modernidade pós-universalista. A diferença como modelo de integração dos indivíduos, com origens em diversos grupos e assente numa coexistência de sistemas culturais predispostos à sua contaminação, começa a caracterizar de maneira clara as visões e os valores do nosso tempo. A possibilidade de não existir um parâmetro único e, paralelamente, a impossibilidade de tornar mensurável uma métrica de interesses, obriga-nos a pensar numa constante redefinição para a reconstituição do simbólico. Estes redimensionamentos estruturais permitem que se mantenham e definam muitas das situações culturais que, aparentemente, entrariam em colapso perante as mudanças rápidas das estruturas sociais e económicas actuais. Neste sentido, a experiência da Orquestra de Jazz de Matosinhos reafirma de uma maneira natural a proeminência destas novas formas de pensar a realidade presente, recolocando a importância da ideia de lugar sobre o imenso espectro de opções espaciais em permanente alteração. A superfície aberta pelas formações de interesses dos seus músicos e pela necessidade de pertença a um local, funciona como pressuposto de entendimento onde todos poderão preservar ou adquirir conhecimentos. Este colectivo incentiva o desenvolvimento de mecanismos de relacionamento que pretendem zelar pelo legítimo processo de construção de uma identidade assumida, actuando como elemento imprescindível de sobrevivência no difícil momento que estamos a atravessar.



Mark Turner & OAM Trio

A simplificação da linguagem tem exercido sobre os músicos, e sobre muitos outros artistas, um intenso fascínio. Depois de ultrapassada a fase das grandes construções conceptuais sobre a arte e a filosofia, aparecem formas de análise e algumas atitudes que vão passar a concentrar a sua atenção em coisas de menor envergadura, mais fáceis de entender. As áreas onde recaiu em tempos essa atenção eram estruturadas ao ritmo das preocupações dos meios informativos. O empolar dos assuntos do dia tornou-as invisíveis, abrindo uma nova espécie de representação que não pode oferecer um entendimento ético sobre o mundo. O desenvolvimento das nossas experiências criativas pode alcançar uma prática de exploração que se tornará crucial para o futuro, explorando a vulgaridade da linguagem como projecto não ortodoxo da elaboração de significados e da resolução de problemas. Procuramos uma interessante maneira de combater o cepticismo e a descrença generalizada, ao tentar encontrar um espaço que nos salve do distanciamento irónico em que nos encontramos, de forma a evitar a concretização de uma perda fatal da nossa fé. A dúvida aparece-nos disfarçada numa atitude de desconfiança sobre a razão, impedindo o prazer de gozar as certezas simples do nosso dia-a-dia e as aquisições naturais dos conhecimentos. A arte situa-se neste terreno difícil de actividade, onde variadas forças em confronto podem entrar em colapso, destruindo rapidamente todas as manifestações que desejem evitar os olhares de um duro cepticismo. Poderemos adquirir uma posição preponderante sobre o que nos cerca e fazer como aquele indivíduo, que ao saber que não pode ganhar, comporta-se de uma forma suicida perante a necessidade de enfrentar um mundo completamente destituído de razões susceptíveis de serem alcançadas. A busca de simplificações e de explicações sustentadas na humildade das nossas procuras interiores utiliza formas vulgares de linguagem que podem permitir a reconstrução do nosso quotidiano, ao restabelecerem compromissos de descoberta sobre um mundo transformado numa concepção inacessível. Com a valorização do simples acto de pensar, a rotina, como tudo aquilo que não nos permite sair do habitual, pode ajudar-nos a imaginar respostas sobre a valorização do que se poderá fazer para sair deste impasse. A música, ao ser uma manifestação criativa, também sofre dos problemas da escolha de linguagem, dimensionada numa querela que se situa entre o lado mais céptico e racional, e o seu oposto mais intuitivo e ingénuo – um encontro de uma duplicidade que se fascina na simplicidade da beleza das coisas vulgares e quotidianas. Devemos preocupar-nos em encontrar o fluir inacabado dentro do espaço comum de vida – to flow seria «o estado em que as pessoas estão tão envolvidas numa actividade que mais nada parece importar».
A pertinência destas manifestações não traz consigo situações tão espectaculares como aquelas em que as redes de informação e de imagens se apresentam diariamente. O valor deste método de situar a criatividade reside na importância do seu significado, que não está relacionado com o tamanho ou com a espectacularidade dos acontecimentos. As imensas possibilidades de adestramento da nossa capacidade imaginosa, quando confrontada com o discurso apocalíptico recorrente, tolhem-nos por completo. A música de Mark Turner e do OAM Trio cumpre precisamente este pressuposto de simplicidade, criando espaços depurados e utilizando linguagens simples, susceptíveis de nos induzir na procura de respostas sobre os problemas que enfrentamos. A sua eficácia não revela uma perda de significados relativamente às grandes narrativas do nosso tempo, nem pode ser considerada uma faceta menor no contexto das músicas contemporâneas. A experiência do prazer não se nos afigura uma situação tão mundana e leviana que impeça a descoberta de formas de superação artística, convidando a repensar o estético e a mostrar uma imagem de nós próprios, na mesma força, como aquela que muitas vezes sentimos estar associada às manifestações mais radicais das experiências quotidianas.



Vienna Art Orchestra

Um conjunto de corpos em interacção, unidos na busca de uma finalidade sonora, aproxima-se do conceito de máquina. Existe uma totalidade que ultrapassa a soma das partes e constitui uma ideia chave nesta experiência colectiva. Tudo se encontra entretecido numa unidade que, sendo muito apelativa nas formulações mais actuais de identidade, faz com que os indivíduos e as organizações procurem desenvolver e promover as anunciadas vantagens como formas de se adquirir um estado absoluto de bem-estar. Se considerarmos tudo o que nos aparece extremamente dividido no contexto de um espaço onde paira uma espécie de angústia de uma totalidade perdida, este modo de sentir torna-se uma tarefa evidente e repetida capaz de caracterizar os tempos presentes. A máquina substitui a ideia de ligação solidária entre os indivíduos, que se organizam através de actos combinatórios, compostos por exercícios físicos e pensamentos, paradigmas das motivações sociais que nos envolvem e nos aliciam para modelos de organização seguindo as esperanças cegas das retóricas de salvação. Na teologia cristã medieval a palavra para salvação é salus , que significava saúde. Existe pois uma relação entre o mundo espiritual e os processos físicos que nos regem, organizados num elo plausível, efectivado nos conectores políticos e nos activadores económicos relacionados entre si. A orquestra vista como um modelo actuante de prática musical evoluiu e desenvolveu-se, tentando optimizar os seus recursos e criando novas concepções de espaço sonoro. A sua música fez uma aproximação à lógica mecanicista do gosto pela racionalidade, que lhe conferiu uma identidade própria e um estatuto crucial na definição da sua importância, tornando-se num elemento actuante dentro do processo criativo. Toda a música que resulta do funcionamento deste corpo compósito e múltiplo, através dos vários instrumentos que utiliza, introduz a ideia de sistema interactivo naquilo que podemos apelidar de «elo retumbante» – uma ligação que impõe uma ordem de processos físicos, de forma aleatória, e que vai criar resultados declaradamente diferentes dos produzidos por uma peça ou por uma máquina isolada. A realidade presente é constituída por muitas parcelas e é inteiramente inconcebível sem uma visão interdisciplinar que abra o conhecimento alcançado a partir da conjugação de tantas áreas de saber distintas, a outros modelos de reflexão que nos façam mudar a forma como pensamos. Os problemas estéticos reflectidos na tipologia do objecto artístico, actualmente produzido, avisam que o pensamento binário do racionalismo ocidental aparece num formato residual, relativamente ao modelo de raciocínio clássico, o qual não pode albergar ou explicar muita coisa. Precisamos de outras formas de olhar o mundo que abandonem o sistema cartesiano dualista, o mesmo que opõe a ciência à superstição, o conhecimento ao erro, o facto à conjuntura e o corpo à mente. A alternativa já não ocupa um lugar marginal no conceito de arte ocidental, não por esta ser mais tolerada ou por existir uma forma consolidada de abertura dentro do sistema de pensamento corrente, mas por revelar uma necessidade de mudança como parte intrínseca da realidade. Neste sentido, a orquestra é um facto cultural, interpenetrado pela relação somada de cada uma das suas partes, entretanto estabelecidas em rede, no limite desta organização. Podem colocar-se algumas questões resultantes dos problemas da existência e da sua representação, mas nada permite saber o que lhe vai acontecer no futuro nem aquilo que a poderá substituir. A abordagem que reconheça a importância desta acção combinada, por uma série de subtis influências geradas sobre o que poderá vir a ser a orquestra, reconhecida como espaço de criação, pode ajudar a redefinir imaginações e ideias, actuando sobre o seu devir e reconfigurando forças numa nova visão que disponha os seus recursos utilizando modelos mais abertos de estratégia criativa e incentivando a temporalidade dos projectos, na incerteza dos resultados e na ironia dos conteúdos. Este mecanismo complexo de instrumentos, pode funcionar como uma ideia global que se exprime e modifica, que se recolhe ou exibe, que se desvaloriza criticando, actuando de acordo com o conceito que se pretenda desenvolver num determinado período de tempo. A Vienna Art Orchestra é um exemplo excepcional de gestão artística independente e marginal, sem cair nas facilidades das rupturas fáceis e esperadas que se enfeitam em imagens num conteúdo vazio de intenções criativas. O significado atribuído a esta máquina de expressão sonora não nega que cada entidade possa construir, pela boa utilização dos meios que dispõem, uma identidade que nos dissuada de fazer das suas partes um fetiche de diferenças individuais, ao impedir-nos de tomar erradamente o seu todo pela simples soma dos seus instrumentos, como algo que aconteceu de uma maneira ocasional e surgiu como um apontamento de sorte, num espaço de tentativas e de puro jogo.


AUTOR: IVO MARTINS 
EDIÇÃO:
Programa Guimarães Jazz 2004 - Câmara Municipal de Guimarães/ Associação Cultural Convívio/ A Oficina     DATA: Novembro de 2004 







                                 INTRODUÇÃO


Temos cada vez mais dificuldade em nos situarmos num mundo onde a realidade é progressivamente manipulada e definida pela omnipresença de imagens comerciais. Estas imagens dimensionam-se em artefactos produzidos em série, num contexto saturado de solicitações, onde nada pode alcançar um estado capaz de exprimir a totalidade do que nos cerca. Neste sentido, a arte surge como uma tentativa, sempre parcial, de captação e interpretação da realidade em permanente mutação. A música não pode escapar a este momento totalizador, que veicula uma frieza inquietante. Ao sugerir tensões e ambiguidades, desvia-nos a atenção da alquimia das emoções pessoais e do sentido poderosamente revolucionário das percepções imaginosas. O Jazz, como todas as imagens da nossa vida, assume uma narrativa onde o impacto e mistério se vão acumulando através do poder de acesso a uma história rica em fragmentos, ao mesmo tempo que se apresenta pouco articulável em ideias coerentes - modificações resultantes de um regime de alteridade que se expande pelo mundo. A clausura existente neste espaço de imaginação e de memória, que se situa no tempo actual, difere daquela que, no passado, forneceu referências mais livres de interesse e elementos úteis aos nossos processos de compreensão, os mesmos que agora nos aprisionam a um apurado sentimento de perda e de encobrimento. Neste território de actuação, o artista é o receptor de uma enorme confusão causada por muitas solicitações redentoras. Ele aparece num pequeno ponto solitário e central que se desenvolve no interior de uma galáxia de ideias e que, no caso concreto do Jazz, se organiza através de um arco musical envolvente, comportando-se como uma atmosfera comercialmente protectora. A arte exprime-se pelo aparecimento de angústias e dúvidas, e pelo desenvolvimento de demónios que deixaram de reflectir o interior de uma alma complexa na sua luta pela sobrevivência, no momento em que criatividade perdeu definitivamente as suas características de superfície articulada pela intimidade individual, em confronto com o religioso, o social e o político. Os poderes sagrados e naturais, capazes de tornar o artista numa personagem grandiosa do nosso tempo, são inerentes à constituição de uma finalidade última de existência: a arte como um derradeiro momento de liberdade. A cultura massificada funde-se na multidão de personagens, seres comerciais usados como elementos propiciadores de consumo, peças obedientes de uma indústria de entretenimento em expansão. O mais interessante e o mais estranho de todas as personalidades recentemente construídas por uma sociedade que se estrutura no empobrecimento e no vazio dos seus conteúdos culturais, é conseguirem provocar um enorme fascínio, capaz de superar em nitidez e proximidade a realidade de onde partiram, sendo mais reais do que o próprio real. O Jazz confirma essa ideia de miragem, onde não pode existir uma distinção clara entre todas as imagens que o constituem. A arte e o sucesso são vistos como acontecimentos de glorificação e de ascensão. As relações antigamente estáveis entre músicos, instrumentos, géneros, tipos, discursos, narrativas, e o seu contexto exterior, são agora aspectos marginais numa conjuntura que se define por uma óptica de comércio e lucro, tendo relegado para as suas margens os assuntos da estética, da ética, da autenticidade, da originalidade e da criatividade. O Jazz é actualmente uma espécie de ideia platónica, uma idealização para uma minoria perdida no meio de um amplo processo de uniformização sócio-cultural, onde o fenómeno se desenvolve muito para além do facto de representar um país ou uma civilização. A música deixou de se estruturar de uma forma socialmente solidária para com os povos humilhados, tal como muitas das manifestações musicais urbanas que existiram no passado, por não passar de mais uma forma de expressão no meio de tantas outras coisas materialmente atractivas. A música perdeu para sempre a sua função de ícone e a sua capacidade de incentivar mudanças urgentes nas sociedades por onde proliferou. No pólo oposto do seu estado original e do espaço singular da grandeza como acto criativo, o Jazz transforma-se num local onde os inúmeros elementos que nele intervêm são meras unidades intermutáveis e relacionáveis numa série infindável de identificações e conceitos, agora associados à imagem absorvida pela sua própria realidade. Tudo caminha para um momento disforme de rarefacção cultural, onde qualquer figura é um espaço ambíguo e incoerente, redefinido no jogo instantâneo de muitos momentos caracterizados por uma total ineficácia criativa. Os afro-americanos emprestaram à cultura do Jazz a riqueza dos seus fragmentos históricos, a variedade da sua experiência baseada na pessoa marginal que soube correr riscos, que assumiu ter ambições e actuou a partir do seu sentido de improviso. O artista encontrou-se numa posição em que foi obrigado a testar permanentemente os seus limites, recusando-se a escolher os vários papéis padronizados que a sociedade coercivamente lhe estabelecia. A sua liberdade construiu-se a partir da renúncia, edificada na capacidade de desenvolver, pelo contacto com o perigo, um aperfeiçoamento de estilo. De escolha em escolha tentou ultrapassar a visão da cultura como forma opressiva, impedindo que a sua prática se limitasse à selecção de uns quantos ideais pré-determinados e artisticamente correctos. O músico afro-americano conseguiu adquirir, através de um legado histórico muito complexo, importantes referências de credibilidade, assentes na sua própria narrativa, apoiada nas tradições e no pensamento social e político que influenciou de uma maneira muito peculiar a sua cultura. O Jazz é uma dos exemplos extremos deste relacionamento. Quando se verificou o encontro do Jazz com a música tradicional europeia, revelou-se de uma maneira transparente o que ele trazia dentro de si – momentos de profunda rejeição e de um radical processo de auto-negação. Neste encontro de músicas e abordagens, firmado numa matriz civilizacional coincidente, com experiências de vivências históricas diferentes, foi relativamente fácil verificar como se fez a definição de papéis dos seus interventores. No lado oposto deste processo comparativo situou-se o campo europeu da música que enfatizou o elemento de abstracção estética do Jazz, muito distante dos problemas de liberdade e de raça que este transportava. Como dizia Nietzsche, «aquilo que não nos mata, torna-nos mais fortes». O Jazz é uma narrativa que reitera e consciencializa um estado de superação sobre as suas próprias ironias, onde a justiça e a democracia permanecem distantes e incapazes de resolver os seus problemas. Por vezes sentimos que estamos submetidos a uma sensação oposta de fascínio e desilusão, onde o declínio se expande de maneira tentacular por todas as partes do mundo, e nos faz ficar mais despertos sobre a destruição cultural que vem acontecendo.
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Ron Carter

O olhar do público ou do fã torna-se, em última análise, no olhar do eu sobre o corpo objecto. A inocência e a trivialidade que exprimem a exibição dos corpos são um facto corrente dos nossos dias. Vivemos uma era em que tudo deixa transparecer a necessidade de auto-promoção para podermos existir e onde corpo assume um papel fundamental na determinação dos limites do nosso ser, servindo como cartaz promocional para um ego individual diminuído ou cheio de poder. A publicidade massificada ajuda a manter o estado de irrupção excessiva dos sentidos que expõe exibições redundantes sobre cada pessoa, numa manifestação sem precedentes, onde os corpos seleccionados pelas suas características fotogénicas se empenham em conquistar espaços de sobrevivência. Todos procuram achar uma nova plasticidade para a sua imagem, que passou a ser um produto manipulado numa perfeição que actualiza as visões do corpo sem mácula, no meio de muitos utensílios futuristas. A maior parte das estrelas de cinema, dos cantores pop e dos manequins tem de projectar o seu corpo como se fosse uma espécie de subtexto sexual. Por vezes essa narrativa é pura performance . A moda ajudou a alargar esse processo, ao substituir um acto de apresentação de roupa, por uma coreografia altamente personalizada e teatralmente sexual dos corpos em movimento. Os corpos, a moda e a perfomance , fundem-se sob o olhar disciplinador e castrador das câmaras, produzindo em figuras gravadas uma mercadoria electrónica. O mundo está permanentemente a ser inundado por imagens em série, que nos ocupam a atenção e nos submetem a uma nova mitologia, assente no fascínio e no glamour da cultura mass-media , que passou a endeusar o design comercial e a atribuir aos publicitários a suprema tarefa de excitar a estimulação de desejos. A análise crítica daquilo que é a realidade presente não pode ser reduzida à retórica mundana e vazia de uma mera sátira de costumes, onde as ironias abundam por entre desastres, anorexia, desfiles de beleza, pornografia, culturismo, cosmética, silicone, cirurgias plásticas, corrupção, overdoses e política. A criação de uma ilusão já não possui o efeito utópico de uma profecia, sentida como a possibilidade de encontrarmos um corpo belo, que seja sinónimo de saudável e que, nesse sentido, justifique todo e qualquer sofrimento. O que veicula este estado de procura absoluta de bem-estar, inseparável da busca da forma ideal, é a náusea que as pessoas sentem das suas próprias imperfeições. A combinação da música, movimento, escultura e corpo gera um consumado artefacto multimédia, misturado nas suas origens eclécticas e desenraizado nas referências que utiliza, compondo uma performance cinética e audiovisual digna da teatralidade dos grandes espectáculos. O corpo perfeito, o corpo recuperado através de uma cosmética poderosa, conseguida pela prática intensiva de exercício e terapias biomédicas é, além de um evidente sinal de dor e de auto-punição interior, um fac-símile da visão ideal/irreal daquele que o possui, apresentando-se como uma espécie de ícone da superação dos limites. Este corpo, alterado por factores de restrição e de medo, transforma-se num espaço estranhamente desmaterializado, como o sorriso perfeito de uma estrela de cinema. Existem imensos perigos implícitos à fixação de imagens de perfeição. O seu poder de embalar em fantasias o paraíso consumista em que habitamos, onde a felicidade cega requer todas as compras de equipamentos para que se possa alcançar uma metáfora do bem idealizada no corpo perfeccionista, torna os objectos desta visão em corpos dolorosamente reinventados através da fotografia comercial, para depois se revelarem como únicos símbolos de perfeição na degradação circundante. As dificuldades de viver nesta realidade construída por mecanismos de transmissão de imagens seriam inultrapassáveis se o mundo estivesse absolutamente afastado da música ou da arte. Essa falta roubar-nos-ia um dote biológico indispensável ao conhecimento e à auto-preservação, arrastando a nossa cultura a parâmetros irreconhecíveis. A música de Ron Carter é o momento ideal para se dar forma a uma cultura que soube viver abaixo dos mitos da perfeição localizados nas nossas fantasias utópicas. Ron Carter soube situar-se por fora do limbo das ideias ultra estandardizadas da moda corrente, revelando uma atitude de resistência perante as tendências da nossa cultura que só encoraja a agressividade e a competição. A sua música destitui os locais privilegiados de transformação utópica e aplaude aquele que descobriu que todos esses momentos nada valem, quando afirmou que «o imperfeito é o nosso paraíso».



Dewey Redman

Quando finalmente percebemos que somos uma consequência de um processo de auto-criação individual, damos um importante salto nas nossas vidas. Não retiramos nada que pertencesse aos deuses, nem os deuses nos legaram algumas das suas qualidades sobrenaturais. Nesta passagem abrupta da existência humana, situada num antes para um depois em que deixamos de acreditar, dá-se uma visão revelada através da forma simples de um oposto, que pressupõe um apurado processo de aperfeiçoamento analítico e de superação ontológica. A crença nas nossas capacidades e possibilidades, perante o meio adverso formado pelas várias culturas existentes e pelas suas construções belicosas, confirmam que sempre existiram e vão continuar a existir pessoas que souberam chegar à sua libertação individual, ao contrário de outras que se deixaram ficar enredadas numa fatalidade determinada pelos seus deuses e pelos seus representantes mais terrenos. Se quiséssemos localizar os primeiros indícios do nascimento desta oposição teríamos de procurar muito atrás, no meio das nossas histórias. Hoje este problema continua perfeitamente actualizado, ao existirem pessoas que, de uma forma cúmplice, mantêm vivo este confronto. Apoiados numa série de ideias conformistas de olhar o mundo, desejamos e clamamos por mudanças urgentes, ou alguma reforma que altere a disposição das instituições e das organizações que se foram instalando no terreno do nosso quotidiano. A aspiração redentora para o mundo é traduzida em função do seu lugar, do seu tempo, da sua economia, da sua política, da sua cultura, factores que sempre ocuparam a parte fundamental da história do Homem. Tudo parece indicar que o confronto de interesses culmina numa clivagem inultrapassável sobre a nossa natureza, sendo portanto um problema insolúvel. Apesar de podermos ser portadores de sabedoria e de conhecimentos que actualmente ultrapassem todas as expectativas, a dupla natureza das nossas origens faz com que os acontecimentos continuem a dirigirem-se indeterminadamente, ora para o bem, ora para o mal. As oposições e os confrontos fazem parte da nossa vida como se estivéssemos permanentemente no centro de uma tragédia, onde as personagens entram em contradição, não sendo capazes de defender nenhum ponto de vista que não o seu. Cada uma delas se sujeita de uma forma cega e radical à lógica absolutamente incompatível da negação do outro , numa luta sem tréguas e sem compaixão, esquecendo-se que neste difícil contexto poderão nunca ter razão, pois nunca haverá uma última palavra no plano lógico das coisas e das pessoas. A essência deste momento não é ser razoável, nem adoptar uma atitude de compreensão perante os problemas que nos envolvem. O lado contrário é o mais importante ponto de referência desta postura, e a única finalidade existente será levar até às últimas consequências este estado de contacto antagónico, de forma a encontrarmos uma definição para os nossos papéis e atingirmos uma sensação agradável de utilidade que justifique viver.
Ao aparecer, a determinada altura da tragédia, a ideia de auto-limitação, esta vai tornar-se num elemento indispensável dentro do seu contexto, justamente porque somos terríveis e porque nada no exterior pode limitar verdadeiramente esta faculdade de se ser terrível. O dilema vem na sequência de uma impossibilidade, na qual o homem nunca terá mecanismos suficientes de dissuasão contra as tendências de gostar de explorar confrontos e antagonismos, nem de fazer prevalecer sobre os outros formas não violentas que resultem desta prática. Assim sendo, como podemos conseguir sobreviver dentro deste problema que se estrutura de maneira extremamente redutora, ao enfatizar a importância dos opostos? Tudo está preparado, desde logo, para suprimir todos os que não seguem os movimentos apaixonados da dominação. O homem é, como se disse, uma auto-criação, e este facto induz em nós uma dose razoável de compreensão, situada nos vinte séculos de obras grandiosas e de monstruosidades criminosas que foram cometidas em nome das melhores razões. Viver neste momento difícil pode depender da forma como estabelecemos os nossos compromissos sem nos deixarmos arrastar pelas simplificações contraditórias. Incentivar uma liberdade que se situe por fora desta espiral de violência que submete tanta gente sempre acompanhada por uma retórica justificativa e jocosa razoável em palavras de persuasão, poderá ser a melhor maneira para enfrentarmos os contornos grotescos da vida. A música de Dewey Redman estabelece a inteligente relação entre duas grandes formas históricas que se definiram durante muitos anos e que determinaram as nossas visões sobre o mundo. Estruturadas na oposição, tradição versus modernidade, os lados destes dois elementos do nosso contraditório diário requerem soluções. Evitar anulações e não ditar conteúdos permite entretecer cada uma das suas partes, criando e imaginando objectos de arte que se revelam como processos essenciais de reflexão e de reconstituição do nosso entendimento.