AUTOR: IVO MARTINS 
EDIÇÃO:
Programa Guimarães Jazz 2003 - Câmara Municipal de Guimarães/ Associação Cultural Convívio/ A Oficina     DATA: Novembro de 2003 







                                 INTRODUÇÃO


Uma proposta de festival deve ser interpretada como um ordenamento: o seu interior é simples e é impossível detectarmos uma lógica de escolha. A disposição auditiva que se orienta segundo uma sequência linear de vários dias de concertos, alinhados e desalinhados, não será capaz de intervir na forma como passaremos a ouvir esta música, uma vez que em todas as obras de arte existe uma enorme pluralidade de opções e trajectos. Deste modo, o programa do Guimarães Jazz 2003 pretende fazer uma rápida revisão exploratória sobre alguns dos elementos que melhor exprimem a matriz africana no jazz, reconhecendo que tudo o que se apresenta poderá ficar, simbolicamente, reduzido a um mapa - uma cartografia de movimentos e trocas que deriva da extensão dos povos pelos vários continentes e da sua mistura em todas as partes do mundo. Cada uma destas rotas encerra trajectos que contêm uma poderosa força de irradiação criativa, exposta num processo de assimilação alargado e intenso. O jazz aconteceu de uma forma suficientemente audaz, através de uma actividade criadora inconsciente, que ainda hoje o faz renascer entre as ambiguidades dos actos de prazer e sofrimento, no cenário natural de uma nova experiência urbana em grande escala, que começou a aparecer nos Estados Unidos desde o final do século XIX. As variedades sugiram a um ritmo alucinante, como que edificadas a par com as grandes metrópoles; quarteirões ilimitados de sons, que entretanto passaram a ser assimilados e reestruturados por milhares de pessoas, simultaneamente. O seu ponto de partida é desconhecido e os projectos aqui propostos, revelam-se como alguns pontos sensíveis das suas passagens. A música não pode ser compreendida como um espaço destituído de trajectos, quando nela estão reescritas as geografias de muitas intensidades e densidades, acontecimentos e afectos passados, bem como todas as memórias presentes, que preenchem as superfícies desenhadas dos roteiros migratórios no decorrer dos nossos tempos. A experiência de viver surge-nos como o elemento catalisador de todo os processos de acumulação e sedimentação cultural - um fenómeno que convoca permanentemente mecanismos de selecção e adaptação ao meio. As actividades do pensamento e das sensações, as delicadas singularidades das concepções, as possibilidades de cruzamento pela comunicação de diferentes linguagens, não antagónicas, permitem explicar a diversidade musical que há no jazz e a multiplicidade de culturas a partir do qual este se desenvolveu. O excesso e a diferenciação nos tipos e nos géneros, partem de uma energia fervilhante de existência e criatividade. O Guimarães Jazz 2003 acompanha este irromper exuberante de música, desejando realizar uma pequena tentativa de representação sobre o jazz que se pode conhecer no conjunto dos concertos que compõem o seu programa. Este propósito tem África como elemento essencial de uma centralidade que, não sendo a única referência, aponta outros espaços a seguir - a América Latina e o Mediterrâneo, bem como algumas das suas periferias mais importantes. Apesar desta ordem aparente, detectada na identificação dos territórios musicais escolhidos, não podemos abdicar do facto de que uma das mais interessantes constatações, terá sido o que actualmente prevalece acima de todas as concepções; uma visão de extraterritorialidade musical, definida acima de qualquer conceito, que ultrapassa categoricamente as convenções herdadas, os cânones, os hábitos auditivos, os desacordos, as dissonâncias, para além do que se pode distinguir entre o verdadeiro e o falso, o bem e o mal.
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                                 TEXTOS

Gianluigi Trovesi Dirige Uma Orquestra

A música italiana é uma das linguagens que melhor ultrapassa a aparência das particularidades a que se encontra submetida. O grau de aplicabilidade prática que exibe nos mais diversos contextos, bem como a sua mobilidade, asseguram-lhe um conjunto de características peculiares que a demarcam e distinguem das restantes. A história musical de Itália possui condições de percepção singulares, que lhe permite retirar dos seus conteúdos, como se de autênticas visões de uma sublimidade transcendente se tratassem, todas as exigências à realização da arte. A passagem do tempo e as necessidades estéticas dos homens encontram, neste terreno fértil de actividade criativa, condições excepcionais de pesquisa. O projecto “Gianluigi Trovesi Dirige Uma Orquestra” vem no seguimento de outras experiências anteriormente levadas a efeito por este colectivo. Uma das finalidades mais interessantes a cumprir será mostrar a relatividade que constitui a aplicação de uma máxima universal sobre toda a música. A variabilidade das propostas musicais presentes na obra deste instrumentista e compositor, as referências utilizadas, os modelos harmónicos escolhidos e a originalidade alcançada, reafirmam a existência de zonas de indistinção e de indiscernibilidade, que permitem refazer permanentemente as suas ideias e delegar na sua música amplas tarefas de resolução interpretadora sobre a realidade circundante. Esta capacidade de reler a actualidade e fornecer elementos essenciais de compreensão sobre a mesma, excede quaisquer condições de origem e circunstâncias à sua realização, tornando-a uma mistura complexa de diversas influências artísticas e não artísticas, conferindo-lhe um raro sentimento de liberdade. A experimentação realizada a partir desta música é a combinação de uma imensa panóplia de elementos históricos, estéticos, sociais, culturais, étnicos, populares, que cruzam o tempo e o espaço, sem limitarem as suas ramificações, ou actuarem de forma exclusiva e anuladora. Pelo contrário, o seu carácter aberto e tolerante, conduz esta tendência a um admirável modelo de valores, que reflectem o lado mais despreocupado, irónico, cáustico e bem-humorado da nossa existência, incitando-nos a olhar a crise em redor com sabedoria e distância. A música de Trovesi surge-nos possuída por uma dimensão orquestral, remetendo-nos a um trajecto de imaginários passados, agora transmudados em novas representações mais presentes e futuras. Em cada momento de criação existe sempre uma decomposição e uma destruição, que operam reinvenções. Estes movimentos rápidos, cheios de intensidade, criam uma tensão essencial à renovação de uma poderosa energia irregular, manifesta numa inconstância criativa, da qual se alimenta o próprio fenómeno de fazer música; sem este movimento de criação não seria possível redescobrir os paradigmas através dos quais vão passar a estabelecer-se todas as condições necessárias a novos processos de indução da surpresa, entre outros mecanismos de encantamento e paixão.



Danilo Perez Trio

É fácil falar de diferenças. Trata-se sobretudo de dizer o que distingue as várias músicas entre si, ainda que relativamente à sua natureza íntima elas se pareçam eternamente iguais. Neste sentido podem soar como repetições sucessivas, mesmo quando tentamos executar o nosso movimento de separação e entendimento. Sentimos que na existência de uma ideia está sempre exposto, de forma subjacente, um sentido mínimo comum através do qual se desencadeia um processo único e universal de obter o mesmo efeito em locais diferentes. Quando caímos num estado de espírito mais ou menos dividido entre diferenças e comparações, adquirimos vários tipos de dúvida que se revelam como os sinais característicos da perda de uma fé. Mais tarde percebemos que o que nos restou está condensado num conjunto de estímulos, que não conseguiram opor-se ao lado racional das nossas incertezas, e então reparamos que nunca será pela análise lógica da música que alguma vez entenderemos a sua essência. Na música estarão para sempre incrustados muitos elementos de carácter aleatório que vão sendo concretizados em escrita, a qual se assume como uma tarefa fundamental à sua realização. Esta escrita deverá ser vista como um plano simplificador da audição, que se renova permanentemente no tempo sem nunca adquirir uma forma final e absoluta, nem uma solução definitiva ou eterna para o acto de criar. Repetir poderá ser também uma espécie de retorno, um movimento vertiginoso dotado de uma força capaz de seleccionar, expulsar, criar, destruir assim como de reproduzir sem voltar ao mesmo. A arte destes músicos, liderados por Danilo Perez, pode circunscrever-se nesta grande ideia de repetição universal que nos rodeia, sem que nunca tenhamos de voltar ao nosso local de partida para a compreender. O geral formado pelas várias diferenças é um encadeamento; são repetições que se associam umas às outras num movimento acima das vontades de quem apreende ou interpreta. A sua aplicação compreensiva numa realidade circundante tem um potencial infinito, que poderá ser bloqueado através do artifício da sua conceptualização ao gerar-se um novo elemento introdutor de referências que a situem no tempo e no espaço. Por isso podemos definir esta música como jazz, com influências claras da cultura latino americana, do lado setentrional de um continente. Este processo de descodificação não aparece como uma solução incapaz de resolver os problemas que resultam da sua constante repetição. Falar de diferenças é fácil, mas a síntese que realizamos quando olhamos para determinado objecto reflecte-se numa operação extremamente complexa, onde todas as tentativas de descrição apresentam terríveis défices em relação a tudo o que é observado. Neste sentido reproduzir torna-se, acima de tudo, uma paixão de repetição.



Marital Solal, piano solo

O piano adquire um significado central na simbologia daquilo que é, e cada vez mais será, o dilema da arte em geral no futuro. Em que lugar devemos estar situados entre o aquilo que pode ser considerado como música ou como máquina? O aparecimento da palavra árvore deve ser entendido como uma metáfora, uma tentativa de aperfeiçoamento causada pela necessidade de se alcançar uma resolução para as várias questões que a actividade de um solista coloca, relativamente à sua forma de aprendizagem, estilo, linguagem e meios que utiliza quando confrontado com os inúmeros reflexos produzidos pela sua música, em todas as pessoas que se dispõem a escutá-lo. Os trabalhadores contemporâneos têm tendência para vender competências, em detrimento da sua própria força de trabalho e da sua capacidade de aprender e inovar em permanência - faculdade que pode ser actualizada em todos os contextos, se o pianista for capaz de imprimir à sua arte novas assimilações regeneradoras. Martial Solal encarna esse conjunto de experiências que intervêm no momento de concretização da música, através do desenvolvimento de uma técnica apurada de tocar piano que nunca poderá ser quantificada. A hora do relógio deixou de ser uma medida de tempo com interesse e já não pode funcionar como unidade fiável de medição, quando tudo o que se cria é bem mais difícil de medir e consequentemente de vender. A arte passou a ser algo mais do que o próprio acto criativo, constituindo uma actualização natural, onde o acumular de competência é um elemento base. Neste sentido a árvore atrás referida, surge-nos como uma estrutura formada pelos diferentes ramos do saber que convergem para um tronco comum ligado ao acto criativo, em direcção à figura do solista, o qual se apresenta como uma reserva fundamental de inteligência acumulada. Esta assegura a passagem de todos os conteúdos do saber através do tempo, representados por tudo aquilo que se acumula e pelo que está simbolizado na obra conservada, na competência que se actualiza constantemente, na resolução inventiva e na solução de um problema criado por todas as novas situações vividas. Esta forma de evolução da nossa actividade anuncia uma mudança no sistema produtivo, onde os acontecimentos artísticos passaram a ser a sua verdadeira economia. Cada criador individual torna-se portador de um conhecimento híbrido e universal que se alarga nas suas capacidades de desempenho, através de interacções cada vez mais mundializadas, em redes de conhecimentos e em sucessivas descobertas de novas aplicações, ao ritmo das mais recentes invenções técnicas. O piano a solo surge como a verdadeira ampliação de uma imensa comunidade circundante e o pianista representa o seu lado mais frágil, porque não pode deixar de ser profundamente humano.



ONJ, Orquestra Nacional de Jazz (França)
Direcção: Claude Barthelémy


Esta orquestra pode ser considerada como um projecto nacional, que pretende congregar alguns dos mais talentosos músicos fixados em França, funcionando em regime de residência e assegurando a manutenção deste colectivo durante, pelo menos, três anos. Neste sentido, a ONJ adquiriu um estatuto fundamental no lançamento de jovens valores do jazz europeu e francês, ao mesmo tempo que se transformou numa organização capaz de acumular informações e estabelecer um corpo de disponibilidades para a realização de todas as formas de experimentação. Assumiu um papel de espaço flutuante, deslocalizado , entregue às mobilidades de ocasiões como um factor estratégico de criação, que podemos perceber se pensarmos como é difícil limpar o terreno das forças instaladas, refractárias à inovação. Os conteúdos musicais alteram-se conforme as ideias do seu director musical e o processo de renovação de identidades e papéis, alojado na definição e concepção do associativo, enquadra-se num curioso mecanismo de trabalho em igualdade. A dissolução de pontos de referência não significa que deixe de existir organização mas, pelo contrário, uma disposição conjugada como um sistema de acções face a face, mutuamente confirmadas e ritualmente dirigidas. Por outras palavras, podemos dizer que se trata de um ponto de encontro; um espaço indutor de colaborações mútuas e descomprometidas. O grande colectivo de músicos teve desde sempre o efeito eficaz de proporcionar uma prática pedagógica intensa sobre os seus elementos. O exercício de grupo estimula ambientes de interacção em presença das respostas de uns a outros. A orquestra pode ser um veículo de propaganda e simultaneamente de serviço público, o que é perfeitamente assumido no modelo organizacional desta associação de jovens músicos, patrocinada pela estrutura oficial da cultura francesa. Com um novo director musical, o guitarrista Claude Barthelémi, este conjunto de instrumentistas vai desenvolver algumas das suas ideias musicais, já concretizadas em várias obras que editou como líder. Estas ideias têm por base o cinema, cabendo a cada um dos músicos interpretar um papel de actor musical, numa atmosfera que procura retirar do espaço sonoro criado, a expressão máxima de cada personagem artística, através da composição, dos arranjos e da separação e reorganização das linguagens. O resultado muito aberto dos horizontes sugeridos pretendem estabelecer confrontos e tensões, numa evidente homenagem a todas as músicas decadentes. Acelerações, rupturas, raízes do jazz de Nova Orleães e estruturas que remetem para a música electrónica contemporânea, são alguns elementos possíveis de detectar na ordem e desordem permanente de que este projecto vai vivendo.



Anthony Braxton Quartet

Procurando retomar de uma forma sempre intensa alguns temas históricos do jazz, Anthony Braxton desenvolve um conjunto de citações e alusões, seguindo o caminho aparentemente próximo do plágio, entre os recursos da cópia e a releitura atenta das obras passadas, solucionando, com uma competência invulgar, todos problemas de proximidade com as interpretações originais. Ao utilizar como base de trabalho alguns velhos temas, recorrentes de um processo de dissemelhança estilística, este projecto procura reestruturar discursos convencionais, sobrepondo-lhes outros tidos como mais actuais. A estilização e a contra estilização encontram-se permanentemente a convergir e a divergir de sentido, levando as novas configurações à própria negação do tema original, através da denúncia e do reconhecimento. A sátira surge-nos como elemento fundamental de regeneração e consequente destruição, a partir da qual se evidencia o desenquadramento do modelo original enquanto meio expedito de resolução para as necessidades estéticas contemporâneas. A prática levada a efeito nesta abordagem de recuperação do passado, expropria e cria condições para que o próprio discurso auto-regenerador seja profundamente destrutivo. Neste sentido, a diferença não passa por um duplicado mas, pelo contrário, por um efeito que ultrapassa as suas características iniciais, através das mutações que uma nova interpretação subentende. Esta postura paradigmática dos tempos presentes não deve ser entendida como uma atitude de reafirmação do passado, uma vez que redefine noções de verosimilhança e coloca um desafio sobre tudo o que uma música preexistente pode permitir em acções desconstrutivas. Todos nós estamos permanentemente a repetir o mesmo; são poucas as ideias originais ou aquelas que nos suscitam surpresa. Quando encontramos alguém que, de uma forma simples e humilde, resolve alguns dos problemas do nosso tempo, apresentando propostas interrogativas e estimulantes, podemos atingir um sentimento único de satisfação pessoal, capaz de abrir caminho a experiências futuras. Este modo de ser é uma brilhante lição sobre as questões actuais da criatividade e dos seus limites. Anthony Braxton apropria-se inteligentemente de umas tantas frases identificativas do tema original, recorrendo a uma maneira extremamente hábil de actuação estratégica, onde lhes é aplicada uma dose de incerteza que se impõe contra as soluções memorizadas e tudo o que seria facilmente previsível. Assim se cria um estado de ruptura, transformado numa espécie de momento isento de história, onde só um profundo conhecedor da mesma é capaz de evitar o perigo dos standards e reverter todo processo à consumação do acto criativo.



Bobby Hutcherson Quartet

O jazz pode ser considerado como um conjunto de mensagens que funcionam numa configuração sonora dinâmica, reenviando para o seu exterior outras mensagens, as quais são interpretadas sempre de maneira diferente. Quem lhe atribui um significado tem um papel essencial neste sistema de troca de informação, onde a obra musical actua como uma manifestação de espírito traduzida, compreendida e assimilada, numa matéria mental e afectiva. Se a inteligência tem, cada vez mais, uma dimensão colectiva, a música terá, na mesma proporção, uma simbologia mais inteligente. Tudo o que está à nossa volta é capaz de nos suscitar atenção e, nesse sentido, obrigar-nos a pensar. A música deixa antever outras formas de entendimento que escapam aos usos e costumes, onde todas as explicações que lhe dizem respeito são sempre muito incompletas. Aqui, as relações estabelecem compromissos entre os membros de cada colectivo. Alguns músicos assumem o estatuto de representações vivas de uma linguagem, o que a torna mais acessível ao mundo exterior, onde a arte aparece ao serviço dessa actividade empírica. Um dia este formato de manifestação poderá deixar de existir. Haverá no futuro um momento de dissociação histórico no qual passaremos a enveredar por outras vias de concretização. A expressão mais convencional da sua representação será posta em causa pela capacidade criativa do artista e pelo desenvolvimento tecnológico dos seus suportes. Há-de chegar o momento em que deixaremos de pensar em palcos, concertos, músicos, produção, público... Tudo se vai repetindo ao ritmo demolidor de um transporte colectivo. A apatia e o olhar no vazio são as sintomatologias apáticas de um pensamento sem objecto, que percorre a nossa consciência num trajecto rotineiro de regresso a casa, após um dia intenso de trabalho. O subúrbio aparece como metáfora para uma paz possível, rodeada de uma violência quase endémica, onde muitos casos sociais anunciam uma decadência inevitável. Bobby Hutcherson simboliza um intervalo, ao impedir que a consumação imediata deste cenário de vida, tão pouco agradável, se adense ainda mais. A sua música salva espaços, num tempo cheio de partículas reais, fornecendo um oceano de ideias sonoras que lhe conferem uma energia própria, potencial, transitória, capaz de transformar tudo o que toca - uma forma fotográfica que se anima numa extraordinária captação de símbolos transfigurados. Tudo é linguagem na medida em que pretende transmitir conteúdos intelectuais. Um movimento mínimo do saber pode trazer algumas soluções a este dilema circunstancial em que nos encontramos. Ao jazz caberá de certeza algum papel.



Matt Wilson Quartet

Uma das capacidades fundamentais do músico de jazz contemporâneo é a sua base de trabalho reflectir uma permanente disponibilidade de integração em novos contextos de sobrevivência. A partir de uma actuação crítica, por vezes radical, sobre tudo aquilo que existe à sua volta, o músico desenvolve um modelo de acção, apoiando-se no que foi tido durante muito tempo como uma fonte segura e válida de afirmação artística. Esta ideia deve ser inerente a qualquer acto criativo. Quando em determinado momento da nossa história ideológica alguém começou a pôr em causa todas as certezas assumidas no passado, verificou-se uma enorme derrocada na ordem estabelecida até então. A conclusão que se retira destes movimentos irregulares, que configuram uma nova via de colocar questões a partir de matéria preexistente, é o aparecimento de um estado de reflexão negativo, como modo de análise, a partir do qual se deixa de acreditar nas certezas que validaram algumas das mais importantes estruturas de organização do nosso saber. Assim deixa de existir conhecimento, originalidade, representação, e história, na medida em que não nos permitimos a posse da mais pequena certeza, numa recusa radical sobre o seu significado enquanto forma estável de categorização. Chegamos a um momento onde as actividades artísticas passaram a ser ramificações de um modelo criativo que se construiu através de um processo de inversão de sentido dos conteúdos utilizados. Admite-se agora que tudo pode ser objecto de tratamento criativo e concluí-se que existe uma maneira de fazer arte a partir da sua própria deformação. A música deste grupo de pessoas, dirigidas por Matt Wilson, aplica estes modelos de simplificação e imitação sonora, introduzindo-lhe uma componente de paródia. As deformações realizadas sobre o simulacro da certeza, organizadas na totalidade dos elementos caracterizadores de uma música através da aplicação de processos de ridicularização mais ou menos evidentes, anunciam novas formas de questionar o nosso tempo. O grau de desagregação imprimido reitera a ideia de que a melhor solução para a arte será considerar que não há verdade alguma, nem erro, nem ficção nem mentira, e que estes pressupostos são manifestamente insignificantes enquanto veículos portadores de qualquer valor afirmativo. Muitos conceitos aparecem agregados nesta música entre intensidades e associações - pastiche, sátira, paráfrase, citação, são alguns dos elementos detectáveis. Este quarteto revela um lado jovialmente burlesco do espectáculo, privilegiando o humor como objecto de auto-depreciação. A graça já não resulta do processo de explorar incapacidades de adaptação, nem de subverter as lógicas mas, pelo contrário, encontra-se na elaboração de gags musicais numa mecânica deliberadamente cheia de comicidades estimulantes, que convida de uma forma ostensiva ao diálogo nas representações, situação vulgar nos cafés concerto do passado, onde o público interpelava com gracejos e em voz alta os seus artistas.



Randy Weston Trio

Houve um tempo em que era preciso vencer resistências e dificuldades de todos os géneros para podermos existir. Hoje em dia encontrámos muitas obras que fornecem indicações preciosas sobre esses problemas do passado. Cada análise histórica parece um movimento contínuo, como um rio que se divide em mil braços. A sua estrutura é ritmo - um suceder de relações que se decompõem e compõem em novas figurações. Neste sentido torna-se difícil fazer um ajustamento duradouro para cada uma delas e para a própria estrutura entretanto criada, de onde surgem constantemente novos corpos, ainda mais vastos e complexos. Compreendemos que as explicações sobre a música são como projecções que ocultam andamentos infinitos numa ordem variável. Quando falámos de projecções estamos a pensar no espectro das cores que se unificam em luz. Estas associam-se em relações de complementaridade e contraste, fazendo com que cada cor, através do seu limite, se reconstitua num todo e posteriormente se reúna às restantes na imensidão do branco. A música de Randy Weston é uma elaboração de luzes que partem de fantasias pela associação de cores provenientes de um espaço de claridade quente e equatorial. Uma luz e uma cor para África; uma música que adquire expressões condensadas de valores em claro e escuro, onde a alegria emerge como a evidente conotação clarificadora que nos conduz à luz. O seu efeito sombra restitui um lugar de tristeza. As conjugações destes elementos fornecem aumentos, diminuições, aclaramentos e escurecimentos, que sendo tantas vezes parciais, totais, ambíguos, mutáveis e misturados permitem desenvolver apuradas simbologias de incandescência. Encontrámos assim uma espécie de terceiro estado de luz, a elevação a um mundo óptico que diz respeito a projecções. A música assume-se como uma figura irradiante de luminescência sobre um conceito de velocidade que pode explicar a sua duração. Todos conhecemos os efeitos do sol sobre o nosso corpo. As sensações de calor, de cor, percepções de forma e distância, signos que exprimem o nosso estado de espírito num determinado momento. Esta integridade elaborada a partir de uma enorme riqueza de princípios só poderá ser desenvolvida por um homem com uma personalidade artística que se revela como uma das mais sólidas que podemos encontrar, num mundo depauperado de momentos verdadeiramente inesquecíveis. O ritmo aparece como um instinto fatalista contra o tédio, num devir alegre sobre as nossas representações do mundo. Toda a componente rítmica tem uma dinâmica que acompanha o culto da naturalidade e do rejuvenescimento. O peso e a gravidade das emoções ficam desprovidos de lastro numa ideia musical aberta e flexível. Verifica-se um aligeiramento dos signos, desdramatização dos discursos, apoiados numa neutralidade lúdica que se exprime no fim das hierarquizações e estratificações.



Jorge Lima Barreto & Eddie Prévost: Palolo Revival

Um concerto pode conter uma grande história; adquirir uma forma de narração que lhe fique para sempre associada. Pode possuir uma imagem identificativa capaz de suscitar um movimento de interesse sobre a obra de arte, que se afirma num contexto visual e sonoro do seu decorrer ou vice-versa. Este concerto apresenta-se sob uma fórmula delirante e extrema, como a ilusão sublimada de um mundo que não sendo dominado e pacificado desta forma, seria destrutivo. António Palolo é o artista plástico que vai fornecer a componente visual deste projecto. À boa maneira de todo o movimento Pop Art , presente numa fracção considerável da sua obra e das suas atitudes, este concerto pretende dar a conhecer um dos mais importantes artistas plásticos do final do século XX em Portugal. Quando se associam imagem e música improvisada, deseja-se simultaneamente exaltar a componente subjectiva dos artistas e encontrar uma dimensão para este domínio criativo tão pouco explorado. As linguagens confundem-se e influenciam-se desenvolvendo um processo de redefinição do objecto afastando-o da sua realidade. A linguagem pode ser uma imagem de síntese. Podemos colocar algumas interrogações sobre os limites da interpretação do real, um dos aspectos mais recorrentes do fenómeno artístico contemporâneo. A música não deixou de utilizar as técnicas mais vulgares do conceito pós-modernista, o que nos impossibilita de referir a existência de uma inversão sobre a ideia de colectivo que nos é proposta. O individualismo reitera-se numa dinâmica associada à concepção deste projecto, através do qual se expandem e fomentam movimentos de libertação, que vão muito além da raiva de romper com a tradição ou de contrariar caminhos de expressão pré-estabelecidos. A arte que se reproduzia numa visão de ódio sobre o que estava instituído acabou. O músico passou a situar-se dentro do próprio espaço de actuação, formulando uma nova recepção para a sua obra. Esta redefinição do espaço pode envolver uma deslocação no papel de centralidade, atribuindo ao observador uma viragem na concepção euclidiana da cenografia musical. Como diziam os futuristas, “doravante colocaremos o espectador no centro do quadro”. Sentimos que este novo estado de experimentação pode permitir que se encontre toda a força do impacto da música directa, impelida pela força que lhe está associada. Impacto também da imagem, que nos surge agora num plano e escala cinematográfica. Segundo Brecht “toda a arte moderna, devido às suas produções experimentais, se baseia no efeito da distanciação e provoca espanto, suspeição ou recusa, interrogações sobre o que é uma obra e a própria arte”.