AUTOR: IVO MARTINS 
EDIÇÃO: Revista Op. #20    DATA: Setembro de 2006 





Dizia ele que a nossa vocação é “estarmos em viagem entre os seres humanos, sempre os peregrinos do possível” -
uma deslocação sem chegada, que pode ser entendida como forma de se estabelecerem diálogos globais sobre as
culturas.
Na sua condição de judeu em fuga numa Europa em colapso com a ascensão nazi, tornaram-se presentes na sua
obra as questões do tempo e do espaço, que cada vez mais se nos apresentam relativos. Este sentimento a emergir
do centro de uma crescente mobilidade, levanta agora outras interessantes possibilidades à identidade do ser
humano, que se sujeita ao desaparecimento rápido de referências, exposto a uma situação de perda constante,
sobre a qual a leitura de George Steiner nos pode dar pistas úteis.

O seu pensamento remete-nos para um estado que se pode denominar por "pensamento situado", no qual as
ideias se refazem sobre um patamar existencial que se alarga acima das estruturações vulgarmente construídas
pelos homens que não conseguem evitar o sofrimento. As pessoas que se angustiam face às cenas correntes do
quotidiano, não aguentam a disseminação de sentidos que lhes apresenta demandas claras sobre a necessidade
de se estabelecerem itinerâncias para as ideias… as quais se alteram no seu próprio movimento. A narrativa de
George Steiner assenta numa contaminação de diálogos edificados num discurso sobre grandes horizontes,
possuído por uma carga fortemente autobiográfica.
O fim das fronteiras rígidas entre história e filosofia obriga a reconhecer que todo o discurso histórico contém,
em si mesmo, filosofia.

“Com que direito podemos tentar forçar um ser humano a assumir um nível mais elevado nas suas alegrias e nos
seus gostos?” …se a sua relação com os outros se faz de uma forma precária e transitória; quando toda a
temporalidade é pensada enquanto diversidade de tempos, estranha sequência de momentos, que escapa às
tentativas de ordenação e organização da história, e nos fala de filosofia como uma falsa prova de civilização
baseada em modelos ficcionais. Encanta-nos com a beleza das tarefas do aperfeiçoamento, no domínio sempre
fugidio da sensibilidade, ao mesmo tempo que nos remete para a arte, toda ela assente em frágeis bases de
decadência, insociabilidade, ou outros comportamentos cheios de ordenações patológicas. Avisa-nos sobre o
desumano e sobre a descompensação irritante do meio académico que emerge de uma transparência sem futuro.

“A esperança e o medo são ficções supremas que extraem a sua força da sintaxe. São tão inseparáveis uma da
outra como da gramática. A esperança contém um medo de não-consumação. O medo tem em si um grão de
esperança, o pressentimento de poder ser superado”…mas a actualidade nega esta realidade, ou porque os medos
se reorganizam seguindo novas conjugações sobre a falta de esperança, ou porque a esperança se apresenta cada
vez mais disfarçada de ilusão, no repositório cansativo de discursos salvadores. Os medos redefinem as nossas
sociedades; as esperanças saem enfraquecidas de uma luta desigual que se satisfaz no consumo.

São várias as conclusões de Steiner para com as diferenças pouco rígidas entre as grandes construções da
humanidade… como se existisse um permanente conflito de verdades. O seu objectivo é o de viajar, avançando
para além dos seus limites, numa actividade de crítica, desmistificação, desconsagração, que jamais estará
concluída. Emigrar irrompe como acto de permanência, num exílio querido e estratégico. A criatividade precisa
de uma contra-tendência que estimule novos compromissos.

A família, na figura tutelar do seu pai, exerce sobre Steiner uma profunda influência, que o leva a cultivar os
valores da civilização do Ocidente. Uma escrita total, uma cultura de uma dimensão planetária… a tal viagem do
espírito sobre um ser civilizado e riquíssimo em citações, em imitações de virtude e sabedoria. O cruzamento de
referências, sobreposição de ideias; a criatividade olhada como o inevitável caminho de vida; a saída airosa para
uma morte certa, onde o filósofo e o poeta têm a liberdade de viver depois do seu tempo. Todos estes temas são
abordados de uma maneira insidiosa, extremamente insinuante, estimulando-nos a seguir caminhos iguais, e a
acreditar que eles nos podem fornecer resoluções práticas para a individualização. Por vezes, a sua obra também
nos remete para o espesso conceito de experiência do tempo: “temos de ser capazes de uma partilha recíproca do
passado, de modo a viver conscientemente o presente mútuo”. Se essa experiência não fosse reflexiva,
unidireccional, não teríamos um conhecimento mútuo, talvez tangencial, quer ao nível da comunicação
interpessoal, quer ao nível colectivo da experiência social e política.

George Steiner impele-nos para um espaço de universalidade, que além de estabelecer novas relações de ordens
entre ideias, as vai recriando progressivamente. O texto surge como algo que contém ainda características
reminiscentes do sagrado, apesar de ter sido sujeito a sucessivas descargas do conteúdo divino. Uma
secularização incompleta, que nos transporta para a ideia de “ontoteologia”, encontrada por Heidegger - a vida
humana como tragédia, um estado incompleto, no pressuposto que ela é também uma fatalidade; uma
impossibilidade de escape, que se assume numa frase sobre as vantagens do não nascimento; o crime de existir. O
sagrado como tradição de uma procura de sentido é uma manifestação de vontade de recuperação das origens da
vida.

Vivemos uma época que se vai estabelecendo entre o normal e o monstruoso, onde todos os sistemas
classificatórios são realidades em ficções, onde só o irónico aprova distinções entre elas. “Em inúmeros sectores, a
alegre proliferação de mediocridade e de provincianismo tem avançado insidiosamente pelas clareiras
inspiradas, rasgadas nos anos 40 e 50. E se não houver mais nenhuma diáspora de qualidade?” Os movimentos
de pessoas podem causar diminuições sérias à herança cultural quando, para se salvarem, tiverem de definir
novos meios de comunicação instrumentais, de forma a garantirem a sobrevivência. Esta visão persiste na
actualidade e adensa-se à medida que vamos sentindo a pretensão de autoridade com que a experiência histórica
nos está a ser constantemente atirada pelos políticos do presente -nada existe para ser salvo.
As abordagens de Steiner sobre a música não são menos estimulantes. A relação estabelecida entre o silêncio e o
som audível expressa-se num confronto entre o que se diz e o não-declarado. As semelhanças e as diferenças
sobre muitas e interessantes matérias que se vão desenvolvendo no decorrer dos seus livros, tornam-no num autor
que analisa o acto criador como um processo extremo de liberdade.

“Estamos a entrar numa civilização do aleatório, e da dúvida fundamental e total, sem aposta, é possível, então,
que certas grandes categorias da arte não subsistam”. Por detrás da máscara do construtor atarefado e modesto,
esconde-se um ser humano jogador, determinado a vencer a todo o custo. Sobressai o carácter lúdico da vida,
despoletado na confusão dos acontecimentos históricos e nas manifestações de experiência pessoal. A ideia de
catástrofe perpassa em toda a sua obra - a desilusão de uma totalidade perdida; o perigo de uma destruição sem
sentido que ponha em causa o futuro da humanidade. Avisos, chamadas de atenção sobre a burocracia moderna,
e todos os seus efeitos nefastos numa sociedade que se vai afastando, de forma gradual, dos seus sonhos. Os
momentos finais são negativos e “em Bagdad, durante a Guerra do Golfo, os galos cantaram estridentemente
toda a noite”. Estranha premonição.


George Steiner, A Gramática da Criação, Relógio d’Água, Lisboa, 2002;
George Steiner, As Lições dos Mestres, Gradiva, Lisboa, 2004;
George Steiner; Antoine Spire, Barbárie da Ignorância, Fim de Século, Lisboa, 2004;
George Steiner; Cécile Ladjali, Elogio da Transmissão, D. Quixote, Lisboa, 2005;
George Steiner, Heidegger, D.Quixote, Lisboa, 1990;
George Steiner, No Castelo do Barba Azul, Relógio d’Água, Lisboa, 1993;
George Steiner, Paixão Intacta, Relógio d’Água, Lisboa, 2003;
George Steiner; Ramin Jahanbegloo, Quatro Entrevistas, Fenda, Lisboa, 2000.