AUTOR: IVO MARTINS 
EDIÇÃO: Revista O Papel do Jazz #4    DATA: Abril de 1998 






A origem é o fim.
Karl Kraus in Palavras em Verso, I.


Direcção, espaço por baixo de um sítio qualquer, lugar errante de povos, que nunca tiveram tempo para se
fixarem. O sol tórrido, a luz e as cores, todas essas referências que se tornam em sinais de brilho, num horizonte,
sempre a tremer de calor. Uma passagem secreta, que aproxima mares e terras de ninguém, ou de todos. Do
"Sul", saíram e chegaram pessoas que se deixaram expulsar por ordas de homens, demasiado sérios e levianos,
também.

É um imaginário profundo, que fica na nossa parte mais baixa, num longínquo desaparecer de pontos visíveis,
olhados como estranhos, por vezes desumanos (Brad Shepik and the Commuters - The Loan).

Deste lado pode vir uma música, não se sabe de que "Sul", mas que ele é tão cientificamente achado ou
geograficamente assinalado, parece que ninguém pode duvidar.

Os mapas ajudam-nos a encontrar o "Sul" e com ele temos pelo menos a sensação de que nunca nos perderemos.
Apesar de tudo, convém admitir que na música não existe nem nunca existiu, um "sul" absoluto, o último e logo o
total - Complexidade/Pluralidade. Esse empreendimento não serve para nada na descoberta que queremos
encontrar. Pela música, organizaram-se estranhamente imensos "a Sul", entre desfiladeiros, portagens e outros
caminhos dissimulados, num território sempre em movimento (Jorge Pardo - 2332).

Por razões de ordem prática e sempre as mais simples nas suas manifestações, o "Sul" pode ser também o
contrário do "Norte". Mas quando o "Norte" se fecha sobre si, o "Sul" passará a ser um lugar aberto entre espaços
de largura e liberdade infinitas, ficando sempre à espera de nos ajudar na "arte da fuga". Por lá vão passando
extensas misérias, nunca extintas, uma espécie de fatalidade próxima das catástrofes naturais. Marginalidades,
locais de exclusão, no "puro triunfo de um hedonismo como a humanidade nunca conheceu"(1),(Chano
Dominguez - Hecho a Mano ).

O "Sul" é triste, mas apesar de tudo, consegue aliviar as nossas tristezas. Mágico, dirão alguns, atraídos pelos
seus horizontes magnéticos. No "Sul", não sei se existem auroras boreais, por entre a "persistência da fome, da
doença, da total exclusão de milhões de homens de um mínimo de dignidade ou até da hipótese de sobrevivência
... mas a constatação de que esse fenómeno coexiste com o espectáculo de uma civilização aparentemente dotada
de todos os meios para a abolir"(2), faz com que o "Sul" seja ainda mais intrigante nos seus porquês (Jean-Marie
Machado - Chants de la Mémoire ).

Seremos sempre gente do "Sul", a periferia de um continente sem exterior chamado Norte, por mais divisões que
nos tentem desenhar. Gente do "Sul"... do mundo, povos que se souberam perder nos outros, sem precisarem de
tomar por empréstimo o que não lhes pertencia e com isso construíram grandes impérios de humilhações (Carlos
Maza - Zapato Kiko ). A música, essa, será evidentemente influenciada por este estado de vários sentires, que se
vão acumulando, até sem consciência, nos modos e nas atitudes. "Toda a arte pertence ao seu contexto social,
mas a grande arte por definição, transcende esse contexto e tem uma linguagem universal"(3). Começa-se com
um processo simples e localizado, que depois interage num enorme conjunto de valores, situando-se
posteriormente acima de qualquer fórmula reguladora (Dino Saluzzi - Cité de la Musique).

O "Sul" poderá ser revelado nos mais diversos lugares, perdendo deste modo o seu valor orientativo. As grandes
metrópoles são aquelas que realizam esse mecanismo, dado o seu total descomprometimento geográfico.

Imaginem o prazer que se sente, quando na uniformidade banal da vida, e onde as diferenças nas raças, nas
etnias, nas classes sociais e padrões de discursos que têm sido sistematicamente dissolvidos, somos ainda capazes
de detectar o ressurgimento do "Sul" e de outros lugares longínquos, através da referência musical (Night ARK -
in Wonderland ). Será como navegar na " Net " da nossa imaginação, onde encontramos em simultâneo o
passado, o presente e o futuro.

Precisamos de pensar a música como um meio que favorece o individualismo e a liberdade, e que está acima de
qualquer maioria, desprezando aquilo que vem sucessivamente afirmando-se como " o politicamente correcto ".
"À globalização ideológica e política sucedeu, sob os nossos olhos, a forma de poder mais sedutor que os homens
inventaram: a da globalização cultural". "No momento em que parece ter desistido de querer fazer a nossa
felicidade social, o poder empreende a cruzada mais bem sucedida de nos instalar do nascimento à morte num
parque de atracções planetário"(4), (Maria João featuring Mário Laginha - Danças ).

A coisa musical situa-se num momento em que não necessita de apresentar quantificações (maiorias/consensos),
nem nunca será a consequência do desenvolvimento abstracto dessa quantificação insensível, " o politicamente
correcto ", uma espécie de neo-estalinismo , agora à sua mesa, isto é, comida para cão.

O "Sul" ficará para o Jazz (descida aos meus infernos) como um ponto de transição, uma insurreição útil,
insubjugado a uma cultura sem alma, que o pode salvar da força uniformizadora a que vamos a estar sujeitos
(Bernardo Sassetti - Mundos ). A cultura, ao permitir a possibilidade de serem a todo o tempo estudadas as mais
diversas formas de manifestações locais, por uma pessoa qualquer, sem que haja obrigatoriamente uma relação
ou uma dependência necessária entre ela e o local de origem, proporcionará que, a partir desse conhecimento,
sejam elaboradas novas formas criativas, deixando perspectivar para um futuro muito próximo um estado
Multicultural , que nada tem a ver com conceitos do tipo regionalista/representativo - artes, ofícios, povos e
regiões. Sabe-se dos perigos. Não houve nunca momento mais trágico nas relações entre poder e cultura que o da
era totalitária, oscilando,..., entre a servidão voluntária e a oposição sacrificial "(5). "Assim, para gente
representativa da intelligentsia europeia (ou de uma parte dela), o obstáculo do poder, mesmo apenas na sua face
política, fê-los passar, em menos de vinte anos, do êxtase maoista, da osmose divina entre o Estado e a sociedade
civil, pela dissolução (suposta) daquele no poder mágico das massas, ao niilismo nobre do anti-poder , à arte e
seus êxtases profanos, mas seguros, quer dizer, ao jardim privado , que já era para Voltaire a única solução para
"esquecer" um mundo onde o mal existe"(6) , (Pino Minafra - Sudori ).

Sobre as fronteiras e do papel que elas desempenham na separação dos territórios, neste caso musicais, gostava
de citar Henrique Vila-Matas, em " História Abreviada da Literatura Portátil ", diz de uma forma curiosa: "Valery
Larbaud (...) era o típico homem mundano e culto, que sem desdenhar nenhuma particularidade singular,
aspirava a uma cultura internacional sem fronteiras. (...) Dele conta-se que a sua vocação de viajante foi precoce:
encantava-o o cheiro do couro, os comboios, a paisagem contínua que parecia imóvel e, no entanto, ficava para
trás. Tinha apenas cinco anos quando cruzou a primeira fronteira, a da França com a Suiça, e ficou espantado
por não ver a linha vermelha e lilás que nos mapas, tão atentamente esquadrinhadas e que foram o seu primeiro
jogo, marcava o limite entre ambos os países"(7).

Quando nos fixamos no "Sul", talvez isso possa ser o acto reflexo da nossa tradição como história assimilada de
um longínquo inconsciente colectivo que se estende muito para lá desses limites. Antes do jazz existia a música de
fundo popular, esta "é mediadora entre o homem e as forças da natureza; por ela, o homem reintegra-se no
universo, recupera a unidade perdida; porém, no caso do índio e do latino-americano em geral, esse reencontro
possui também um sentido histórico e ineludivelmente social e político"(8). Curiosamente esta constatação
aplica-se integralmente ao processo de gestação do jazz. A diferença só se encontra no quando e no durante .
Síntese, reintegração, intercâmbio, assimilação, influencia,... são termos conhecidos e omnipresentes em todas as
"Américas", "Europas" e "Áfricas" musicais (Renaud Garcia-Fons - Alboreá ). Culturalmente, sempre fomos
habituados a ficar no "Sul" e, aí, qualquer procura criativa pode, como é fácil admitir-se, ser ou não ser melhor
sucedida. O "(...)jazz, criado por uma minoria oprimida no próprio seio do império, via-se constantemente
forçado a adoptar formas novas, perante o perigo de uma absorção total pela música de consumo norte-
americana; isto obrigou os músicos de jazz a assimilar toda a herança musical do Ocidente, ainda que mais não
fosse para a desagregar". "A asfixiante situação do subproletariado negro numa sociedade rigidamente segregada
e a sua impotência face aos poderosos meios de difusão de massas ao serviço da deformação dos seus valores
culturais impuseram uma dinâmica mais intensa ao processo evolutivo do jazz"(9), (Eddie Palmieri - Vortex ).

As inevitáveis interrogações surgem-nos sempre quando se tenta estabelecer uma ordem para um determinado
conjunto de acontecimentos. O futuro , o presente e o passado já não são o que eram e saber conviver entre os
riscos inerentes à procura de respostas para as inquietações que necessariamente experimentam todos os que
com a maior dedicação buscam o segredo da criação, será a atitude mínima, artística e eticamente exigível. Do
outro lado, apenas se pode encontrar um conformismo subliminar, que reflecte "uma incapacidade arrepiante
para tomar parte nem que seja indirectamente no momento da criação, com o inevitável empobrecimento das
suas mentes e pela pequenez das suas imaginações"(10), (Lluis Vidal trio, featuring David Liebman, Orquestra de
Cambra del Teatre Lliure).


(1) Eduardo Lourenço, O Esplendor do Caos, Gradiva, 1998, p. 54.
(2) Eduardo Lourenço, O Esplendor do Caos, Gradiva, 1998, p. 55.
(3) Camille Paglia, Vamps e Vadias, Edições Relógio d' Água, 1997, p. 172.
(4) Eduardo Lourenço, O Esplendor do Caos, Gradiva, 1998, p. 120.
(5) Eduardo Lourenço, O Esplendor do Caos, Gradiva, 1998, p. 118.
(6) Eduardo Lourenço, O Esplendor do Caos, Gradiva, 1998, p. 122.
(7) Henrique Vila-Matas, História Abreviada da Literatura Portátil, Assírio & Alvim, 1997, pp. 40-41.
(8) Leonardo Acosta, Música e Descolonização, Caminho,1898, p. 148.
(9) Leornado Acosta, Música e Descolonização, Caminho, 1898, p. 214.
(10) Camille Paglia, Vamps e Vadias, Edições Relógio d' Água, 1997, p. 320.
                                        O SUL
                       DISCOGRAFIA BREVE


Brad Shepik and the Commuters - The Loan / Songlines . 1997
Um trajecto que nos situa entre a música dos Balcãs, do Médio Oriente e Celta, com jazz ao fundo. Este jovem
guitarrista tem desenvolvido uma intensa actividade nas várias linguagens que se vêm revelando no contexto da
música improvisada. Com Dave Douglas toma parte no projecto Tiny Bell Trio e Paradox Trio . Partilha a
liderança do grupo Babkas (três trabalhos editados pela Songlines) e do associativo Pachora (Knitting Factory)
,no qual toca entre outros instrumentos guitarra portuguesa. Trata-se de um compositor e arranjador notável
que associa estas características á facilidade do seu improviso.


Jorge Pardo - 2332 / Nuevos Médios . 1997
Continua na exploração nas sonoridades do flamengo, neste caso, cada vez mais apuradas, utilizando um
processo de cruzamento daquela música e os sons do jazz. "Quem pensava que a trajectória musical de Jorge
Pardo estava totalmente definida, enganou-se. Misturando ingredientes como fantasia e paixão, além dos
propriamente musicais, nasceu 2332 , o último disco de um improvisador como não há outro neste país"(11). Se
conhecermos alguns dos trabalhos anteriores, ficamos cientes da coerência do percurso percorrido. Em Veloz
hacia su sino, Nuevos Medios, 1993 e 10 de Paco de parceria com Chano Dominguez, Nuevos Medios, 1995,
colocam-nos perfeitamente na direcção correcta, autêntica e, por isso, artisticamente credível.


Chano Dominguez - Hecho a Mano / Nuba . 1996
Conseguiu transpor para o piano, muito do fraseado da guitarra do flamenco, revelando-se no resto, um pianista
competente e promissor. Depois do disco estreia CHANO, Nuba, 1993, com a publicação desta obra, a segunda
como líder, o músico arrisca e consegue dar mais um passo em frente no resultado aqui alcançado. Confirma-se a
sua faceta de compositor e encontramos a confiança de quem sabe estar no centro de um género musical que não
se reduz ao formato rítmico dos seus vários estilos, passando a ser, a própria essência do flamenco, uma fonte da
sua motivação.


Jean-Marie Machado - Chants de la Mémoire / Hopi . 1997
Pianista com origens em Portugal e Marrocos concretiza neste trabalho, uma obra/viagem num imaginário que
nos reconduz, desde França o país onde se fixou aos outros dois pontos de partida. Um disco que se divide em
duas partes. Na primeira segue, sobre um olhar para trás, os caminhos de Villa-Lobos, George Harrison e de
Louis Armstrong. Explora os seus territórios melódicos orientando-se por interessantes reminiscências
orquestrais. Na segunda embrenha-se por insondáveis esteiras musicais da cultura Celta, narrando algumas das
manifestações que induzem uma sabedoria mais primitiva e directa. "Depurar a escrita, conservando a
complexidade"(12), são os dois mais visíveis compromissos onde se consolidam actualmente as suas ideias de
compositor.


Carlos Maza Grupo - Zapato Kiko / OWL . 1994
Jovem pianista e guitarrista cubano que produz uma síntese notável de influências musicais, próprio do
movimento errático de uma vida nem sempre harmoniosa ou prevista nas suas mudanças. Com pouco mais de
um ano chega ao "sul" de França proveniente do Chile, outro país do "sul" do mundo, como refugiado político.
Experimenta o dor do exílio e alimenta a esperança de um retorno assumido entre manifestos e canções
militantes. Uma nova alteração de percurso obriga-o, ainda jovem, a atravessar outra vez o mar agora em
direcção a Cuba onde se fixa. Entre ideias heterodoxas nascidas de muitos confrontos e contradições, ouve todos
os géneros de músicas, felizmente, livre da pressão comercial e das suas respectivas modas. A sua música é um
cruzamento indefinível da tradição popular, do clássico, do contemporâneo, e do jazz, sem privilegiar uma forma
ou um estilo, criando uma sonoridade pessoal e sem filiação.


Dino Saluzzi - Cité de la Musique / ECM . 1997
Assim como o piano atingiu o lugar de prestígio que actualmente ocupa no contexto de várias músicas, o
bandoneon consegue alcançar o seu espaço de dignificação no tango. Dino Saluzzi bandoneonista argentino há
muitos anos radicado na Europa é um dos principais músicos do tango da era post - piazzola . Liberdade de
expressão harmónica e anulação dos limites entre os estilos, será o que melhor caracteriza a sua música. Se a
estrutura e os elementos do tango ainda persistem na sonoridade que desenvolve não se pode excluir dali o jazz,
sem que essa atitude não deixe de ser demasiado superficial. O jazz habita na música deste compositor que
trabalhou em bandas sonoras para películas de Godard a quem dedica a última composição deste disco, que não
pode entender-se unicamente como uma obra sobre o tango. Ele está incorporado dentro de um discurso próprio,
elaborado, onde o jazz, os ritmos e modelos musicais europeus se entrecruzam num corpo único, numa
contenção técnica e apaixonadamente conseguida.


Night Ark - In Wonderland / Emarcy . 1997
Todos os trabalhos têm uma história. Por vezes é a sua simplicidade que nos faz questionar - Afinal quem são os
seus autores?O ano passado o percurssionista Arto Tunçboyaciyan pretendeu honrar a memória do seu irmão,
um compositor turco, que havia falecido no ano anterior. Para o efeito, escolheu em Istambul os seus
companheiros da Night Ark com o fim de realizar uma bela homenagem. Reuniu, então, dois cantores populares
locais e dois músicos de passagem, no caso Dino Saluzzi e o filho José Maria. Grandes momentos de música
teriam sido vividos segundo rezam as crónicas da altura. No passado Outono, felizmente, essa experiência foi de
novo retomada e reuniram-se quatro poderosos instrumentistas : o contrabaixo preciso e subtil de Marc Johnson,
o pianismo lírico e arrebatador de Armen Donelian, as percurssões inteligentemente trabalhadas de Arto
Tunçboyaciyan, acrescidas, por vezes, da voz e o oud de Ara Dinkjian. Esta obra encerra uma história que
deambula nas inflexões inspiradas das músicas populares da Anatolia e da Arménia.


Bernardo Sassetti - Mundos / Emarcy . 1997
Este trabalho é um processo de afirmação interior. Assumir frontalmente um impulso que o leva só na aparência
a buscar outras paisagens musicais distantes da sua origem cultural pode ferir algumas sensibilidades, que se
sentem mais à vontade quando a música, como as coisas, estão sujeitas a ordens e outras arrumações
explicativas. " Mundos - da tradição à aventura. Mundos representa uma viagem a várias paragens. É a memória
de um percurso, do meu percurso que começa com a música clássica e, até hoje, foi passando por diversos estilos
e sofrendo várias influências de ritmos, danças e cantares do mundo e, é claro, do jazz que definitivamente me
marcou e a todas integra. (...) Mundos, na aparente imensidão do termo, tem para mim um significado bem mais
amplo do que a consabida viagem à volta do meu quarto - o quarto onde está o meu piano -, ou mesmo de uma
viagem imaginária de uma Alice às possíveis Wonderlands"(13).


Maria João, featuring Mário Laginha - Danças / Verve . 1994
"Que Danças seja ou não um disco de jazz, tanto se me dá. Sendo um disco do que seja, Danças é Maria João
aquela rapariguinha que nos roubou o coração no festival de jazz de Donosti - 1985 voando por sua conta, y
cómo! Neste seu disco de consagração explora o inconsciente colectivo do Lusitano - não necessariamente
identificável com o fado - e estando nele, chega muito, muito mais acima. À estratosfera, mais/menos. Laginha -
um Jarrett bem assimilado e melhor interpretado - vivifica estas danças que brotam da terra. (...) São mil vozes
numa garganta - Danças é qualquer coisa menos monótono - mil matizes que dão vida a histórias de amores
perdidos ou encontrados, canções de crianças, populares... Maria canta, grita, sussurra, grunhe, há uma
respiração para o parto sem dor passado ao dobro da velocidade - Um Dia Inteiro -, a vida em suma encarnada
numa música que respira. (...) Há uma coisa em Maria João, e é a última. É espontaneidade, necessidade básica
de respirar, instinto, comoção para tirar partido ao pouco ou ao muito que se tem e com ele construir uma
catedral"(14). O facto de ter citado um dos brilhantes críticos de Espanha ajuda a entender a importância desta
obra fora do nosso país. Aconselha-se a leitura da entrevista de Maria João nos Cuadernos de Jazz , Setembro-
Outubro, 1995.


Pino Minafra - Sudori / Victo . 1995
Sud Ensemble o grupo de músicos italianos que acompanham Pino Minafra neste trabalho representam o núcleo
duro de uma pesquisa musical alargada levada a efeito noutros projectos de forte conotação transalpina. A
Italian Instabile Orchestra (IIO) pode ser considerada o epicentro donde partem essas ondulações de intensa
actividade telúrica manifesta no jazz lírico e abrasivo que exploram. São o fiel-depositário das culturas saídas do
baixo mediterrâneo, o que confere uma especificidade muito própria ao jazz italiano. Curiosamente, estes
elementos caracterizadores, tão difíceis de se acharem, não são devidamente reconhecidos. "A começar pelos
organizadores dos Festivais. Sabem que nenhum grupo de jazz italiano experimental nunca foi convidado a
participar nessas enormes locomotivas festivaleiras como o Umbria jazz ?"(15).


Renaud Garcia-Fons - Alboreá / Enja . 1995
Esta obra leva até aos limites da embrieguez e do entusiasmo o canto do seu instrumento - o contrabaixo. Escolhe
com propósito o acordeão eclético de Jean-Louis Martinier o qual vai exercer com rigor o papel de estabelecer
ligações entre as músicas mediterrânicas (especialmente hispanizantes) e orientais enriquecendo, desta forma, a
sua proposta. Utilizando dois contrabaixos para poder libertar-se nos movimentos empreendidos com um
instrumento de cinco cordas, do seu companheiro Yves Torchinsky ambos interagem de uma maneira judiciosa e
complementar nas acentuações voluntárias e voláteis do líder. O ouvinte é atravessado pela preeminência do
lirismo e do canto, sem voz, que escuta intuitivamente. Esta substância que o contrabaixo, por vezes, sabe tomar
da voz humana, como Garcia-Fons consegue fazer magistralmente com a utilização do arco.


Eddie Palmieri - Vortex / Palmetto . 1996
A escolha deste músico relaciona-se com o importante papel que desempenhou na ligação de duas culturas
musicais de raízes comuns, O Latin Jazz conceito controverso e muitas vezes fonte de equívocos e de utilizações
abusivas. Trata-se de um termo que se refere à fusão mutilforme surgida do diálogo entre o jazz e a música afro-
cubana. Os pianistas Eddie e Charlie Palmieri são, entre outros, figuras destacadas desta transição. Foram um
ponto de referência para várias gerações de músicos de origem latina (especialmente portoriquenha) nascidos em
Nova York no Bronx e Manhattan e, mais tarde, quando se verifica a deslocação do centro de interesses para uma
forma ou para outra - Jazz ou Afro-Cubano . Nos constantes avanços e recuos, próprios da crescente evolução a
que foi sujeita, esta música de dupla essência cultural é uma das correntes mais criativas do jazz contemporâneo.


Lluis Vidal Trio, featuring Dave Liebman, Orquesta de Cambra del Teatre Lliure / FSNT . 1995
Deste trabalho fazem parte, entre outras composições (standards como Stella By Starligth e Gnid de Tadd
Dameron e originais dos dois músicos), a interessante "suite" de título Portugália , na qual se concretiza uma
abordagem à música do folclore português, através dos conhecidos temas: Vai-te embora, Ó Papão , O Milho
Verde e Papagaio Louro . A música escrita e arranjada por Lluis Vidal revela imensas qualidades, não havendo
nada dizer relativamente aos resultados alcançados. Deve-se ter em atenção a Orquestra de Cambra del Teatre
lliure, que causa uma extraordinária impressão, sendo um alicerce fundamental na configuração desta obra.


(11) José Maria García Martínaz, Entrevista Jorge Pardo, Cuadernos de Jazz, Novembro/Dezembro, 1997, pp. 14-15.
(12) Arnaud Merlin, Jean-Marie Machado, Les Chants de la Mémoire, Jazzman, Janeiro, 1998, p. 22-23
(13) Bernardo Sassetti, in Mundos, Emarcy, 1997.
(14) José Maria García Martínez, Maria João, Danças, Cuadernos de Jazz, Julho/Agosto, 1995, p. 51.
(15) Andrea Petrini, Entrevista Pino Minafra e Bruno Tommaso, Jazzman, Março, 1996, p. 8.